quinta-feira, julho 31, 2025

Responsabilidade de salvaguarda das instituições no respeito pela ordem constitucional

 

Ao longo das últimas semanas à volta das comemorações do dia nacional de Cabo Verde, o 5 de Julho, repetiu-se sempre uma pergunta em entrevistas, reportagens e pronunciamentos públicos: se valeu a pena a independência. A questão aparentemente não faz muito sentido considerando que ninguém disputa a independência e celebra-se o dia nacional com alegria de ser ter um país que vive na liberdade e com o orgulho de quem sabe que o povo soberano escolhe os seus governantes, há pluralismo, separação de poderes e o primado da Lei, e a justiça é assegurada por tribunais independentes. Quando repetida todos os anos a pergunta só faz sentido se é, de facto, um convite para, por um lado, se validar o processo de há 50 anos que desembocou na independência e, por outro, para justificar a ditadura de partido único que foi formalmente implantada no dia 5 de Julho.

Devia ser evidente que os objectivos no dia nacional de celebração da unidade da comunidade nacional à volta dos princípios e valores compartilhados são prejudicados quando o foco é posto no processo que atropelou direitos políticos de muitos, levou à prisão e deportação de outros e impediu que a generalidade da população pudesse livremente decidir sobre o seu futuro e o destino do país. Também não se pode ignorar que reabrem-se as feridas e cavam-se mais as fracturas na sociedade e nas instituições quando com essa questão “se a independência valeu a pena” se força as pessoas a aceitar a justificação que a ditadura era necessária em 1975 para depois houvesse uma abertura em 1990. Neste quesito nem se refreia de usar argumentos similares aos da época colonial de que era preciso dar tempo para que os povos se tornassem maduros para a independência. Não se tem pejo em afirmar que depois da independência são precisos anos de ditadura antes de se "abrir" a porta da liberdade e democracia ao povo.

Com o pretexto da necessidade de preservação da memória histórica, repete-se mais um acto que só teria sentido nos tempos da ditadura. Despeja-se integralmente a historiografia oficial do PAIGC como se tratasse de uma operação de agitprop (agitação e propaganda). Nas homenagens faz-se a idolatria dos combatentes da liberdade da pátria que, como se pode ver em várias cerimónias públicas, são os mesmos que vieram da Guiné em 1975 e protagonizaram a ditadura do partido, ficando alguns outros combatentes a fazer de pano de fundo. Não se sabe onde fica o resto da história do país, do seu povo e das suas personalidades como se tudo tivesse iniciado nas matas da Guiné. Na prática, ignora-se, distorce-se e cooptam-se pedaços da história para servirem de precursores da “luta de libertação”. Claro que aqui não há nada de novo quando a perspectiva imposta é a de um partido de vanguarda que forja nações mesmo a mil quilómetros de distância do território pátrio.

O problema é como isso pode acontecer numa democracia com pluralismo de pontos de vista, espírito livre e crítico e comprometimento com a verdade, sem que também as suas instituições sejam abaladas. No dia 17 de Julho, as Forças Armadas de Cabo Verde resolveram aderir ao esforço de preservação da memória histórica com uma conferência destacando os rostos da ditadura, notando-se a ausência do Presidente da República e do Governo. A data escolhida foi a do juramento de bandeira dos primeiros soldados incorporados nas Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) que, como disse o então primeiro-ministro Pedro Pires, no seu discurso nesse dia, era um exército de revolucionários, de militantes do partido e que pertencia à mesma organização das FARP na República da Guiné-Bissau. A grande questão que se coloca é que particularidade da memória histórica é que as Forças Armadas de Cabo Verde apartidárias, defensoras da ordem constitucional e da independência do país, pretendem preservar com esse acto e eventualmente que mensagem querem passar.

Um dos princípios fundamentais das democracias é a subordinação das forças armadas ao poder civil democraticamente legitimado. Com isso, assegura-se o monopólio da violência do Estado e garante-se que o seu comando está sob quem tem legitimidade para o exercer no quadro estrito da legalidade democrática. Não se trata, portanto, de uma “milícia” ou de um braço armado do partido, para garantir, como dito no acima citado discurso, que tem que haver nesta terra disciplina e respeito pela Direcção do partido. Como baluarte da ordem constitucional e protector dos direitos fundamentais dos cidadãos, as FA não podem tomar como exemplo um exército cujos quartéis serviram em várias ocasiões (1977, 80, 81) de prisão e lugares de tortura e se viu envolvido na morte violenta de civis (1981). Proibidas de actividades políticas, as FA não deviam rever-se em dirigentes/comandantes instituídos por decreto do regime anterior que, reclamando-se da “luta de libertação”, legitimava a ditadura em Cabo Verde.

A última coisa que uma democracia precisa é de forças armadas a se verem anterior à república ou acima do Estado com base em alguma narrativa, seja da revolução do 25 de Abril em Portugal, de manter secular a república turca, de combater a corrupção em África ou de alguma luta armada. Para evitar esse tipo de situações é que, por exemplo, na Bélgica, o dia nacional, que anteriormente se comemorava a 27 de Setembro, dia da expulsão dos holandeses, passou para 21 de Julho que foi da entronização do rei após o juramento da lealdade à Constituição. Liberdade e responsabilidade caminham juntas em democracia e claramente que era de exigir a todos, que de uma forma ou de outra, são parte da história do país, o respeito pela ordem constitucional validada várias vezes nos últimos trinta e cinco anos pelo voto livre e plural de todos os cabo-verdianos.

O país pode estar num período pré-eleitoral e as lutas políticas mais aguerridas. Tem que haver, porém, consenso quanto aos fundamentos da república. A orientação futura da governação pode estar em discussão e é pela política que se vai traçar um caminho para a encontrar. Não é pela desestabilização das instituições, pelo instigar de lutas corporativas e pelo recurso a figuras míticas, personalidades e partidos providenciais, que se vai poder ponderar a complexa situação nesta fase de desenvolvimento, evitar as armadilhas e mobilizar as vontades para as reformas necessárias.

O discurso algo histriónico que se vem tornando norma, ampliado pelas redes sociais, mas cada vez mais assumido pelas forças políticas, tende a penetrar em todo o lado. Fustiga-se a justiça, agita-se nas escolas, desespera-se nos transportes e até às forças armadas quer-se incentivar o envolvimento em decisões estritamente políticas. O crescimento dos extremismos em todo o mundo devia servir de uma nota de cautela, mas afinal não é, como se pode comprovar em resultados sucessivos das eleições em diferentes países.

Provavelmente nem os seis meses das mudanças de Donald Trump, consideradas inacreditáveis até há pouco tempo, constituem choque suficiente para outros países se esquivarem de certas derivas complicadas. Cabo Verde também parece susceptível ao fenómeno. Aqui também há quem não mostre muita preocupação se, provocando reacções emocionais extremas perante todo e qualquer problema, não se acabe por tirar qualquer possibilidade de diálogo e de uma ponderação serena dos problemas do país. Infelizmente, os dias nacionais, que deviam cimentar o consenso para o dissenso poder prosseguir sereno e construtivo, são sequestrados nas tentativas de acerto de contas com a decisão do povo de viver livre e trabalhar para sua própria prosperidade e felicidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1234 de 23 de Julho de 2025.

sábado, julho 26, 2025

Acabar com o confronto entre o crioulo e o português

 Controvérsias à volta do ensino da língua cabo-verdiana continuam. A introdução de um manual de língua e cultura cabo-verdiana no 10º tem levantado objecções várias de personalidades e particularmente de alguns membros da equipa de estudiosos que vem trabalhando no projecto de introdução do crioulo no sistema de ensino. O manual terá avançado uma proposta de escrita pandialectal, ou seja, com elementos das nove variantes do crioulo, que não lhes agradou. Daí o confronto entre as partes na comunicação social e outros fóruns que se arrasta há meses, nem sempre de forma mais cordial. A intenção recentemente manifestada de recorrer ao poder judicial para suspender o uso desse manual via uma providência cautelar provocou uma resposta do ministério da Educação através de uma nota de esclarecimento.

É curioso que precisamente quando os que muitas vezes se intitulam de activistas do crioulo perecem estar à beira da vitória, no seu propósito de introdução do crioulo no sistema de ensino, acontece essa fractura tão ostensiva. Aparentemente há quem preferira que com o suporte do alfabeto oficial se ensinasse nas ilhas a respectiva variedade e que não fosse para já adoptada uma escrita “padronizada”, mesmo com contribuições de todas as variedades. Os outros provavelmente mais apressados e considerando o objectivo maior da oficialização e correspondente uso na administração pública e nas escolas, teriam antecipado ao que a dinâmica do uso das variedades do crioulo poderia produzir no futuro.

Na nota do ministério de 14 de Julho, assumida pela Equipa Produtora do Manual, recusa-se, porém, a ideia de se estar a padronizar a língua cabo-verdiana. Afirma-se que as variedades são todas elas “dotadas de igual valor identitário e linguístico”, dignas de ensino e de escrita e partes integrantes do património linguístico. Ainda contrapõe-se que “não reconhecer este princípio equivaleria a hierarquizar as variedades segundo o número de falantes, conferindo supremacia à variedade de Santiago e relegando as demais para um plano secundário”.

A fractura exposta neste confronto poderá estar a indiciar outras intencionalidades que não as de simples promoção do crioulo. De facto, há quem pense que há motivações ideológicas e outras por detrás da pressa para se enveredar por uma oficialização imediata, sem que tenham sido criadas as condições para tal, entre as quais a escrita padronizada, e mobilizados os recursos necessários para toda a máquina do Estado prestar os seus serviços na nova língua oficial. Uma pressa que pelo tipo de activismo não parece dar a devida atenção aos alertas que vêm de diferentes quadrantes quanto às consequências negativas na aprendizagem e na aquisição de competências linguísticas por causa da tensão negativa artificialmente criada com a língua portuguesa, que é a oficial e língua do ensino.

É evidente para qualquer observador que os cabo-verdianos não têm qualquer problema com a sua língua materna. É falada por todos, ouve-se no parlamento, o presidente da república faz pronunciamentos em crioulo, os cidadãos podem depor nos tribunais e são atendidos na administração pública também na língua cabo-verdiana. Não pode, pois, ser tomada como inferior até porque é veículo permanente de expressão de sentimentos, de troca de informações e conhecimento e de expressão cultural em particular na música. Carece ainda de ser escrita e padronizada, mas é uma questão de tempo para qual se devia serenamente engajar-se, sem prejudicar o sentido da unidade na diversidade que tem sido apanágio do povo cabo-verdiano.

O confronto de posições que hoje dividem activistas e estudiosos em relação à proposta pandialectal da língua cabo-verdiana foi precedida de fracturas criadas quando se avançou como o alfabeto fonético do ALUPEC, sem a devida consideração pelas posições contrárias e pela existência de um manancial cultural-literário em crioulo, poesia e prosa, produzida por figuras de vulto, ao longo de décadas, usando um alfabético etimológico. A razão primeira para a escolha do ALUPEC era distanciar-se do português pela escrita quando a origem lexical das palavras em crioulo é em mais de 90% está na língua portuguesa. Claro que motivações ideológicas do género que se enquadram na política de reafricanização dos espíritos teriam que gerar fortes resistências. Posteriormente, reforçaram-se com as políticas identitárias que vieram à tona e passaram a municiar bairrismos e pretensões hegemónicas no país com potencial risco para o que Cabo Verde tem de mais valioso - a unidade do seu povo.

É claro que perante a latente resistência ao ALUPEC, isso só foi possível porque o Estado e na vigência dos sucessivos governos, por acção, inércia ou omissão, acabou por impor esse alfabeto. Em 1998 foi dado como experimental e em 2009 foi oficializado pelo decreto-lei do governo nº 22/09. Curiosamente, agora quer-se impedir o uso do alfabeto pandialectal alegando que contraria o decreto-lei de 2009. A questão que se coloca é se o regime ortográfico de uma língua deve ser imposto unilateralmente pelo governo pela via de um decreto-lei. Ou seja, se não deve ser objecto de uma lei da Assembleia Nacional que é representativa de todos os cabo-verdianos.

A alteração do regime ortográfico da língua portuguesa via acordo ortográfico de 1990 foi feita com a discussão e aprovação na Assembleia Nacional seguida da ratificação pelo presidente da república. A adopção de um regime ortográfico para o crioulo com vista à sua oficialização plena, devia, por analogia e tratando-se de matéria de soberania, ser feita através de uma lei da Assembleia Nacional, depois de submetida a profunda discussão pública, considerando que é matéria que em todos os quadrantes normalmente encontra resistência por parte de intelectuais, professores, escritores, jornalistas e outros segmentos da população. Infelizmente não foi e, tomado como uma imposição do Estado, acaba por gerar anticorpos.

Efectivamente, além de não ser abraçado por todos, torna-se um factor de divisão porque, tendo em conta as motivações iniciais de um afastamento deliberado do alfabeto português, retroalimenta as tensões criadas na sociedade cabo-verdiana com a política de reafricanização dos espíritos trazida pelo PAIGC no processo de independência. Com o crioulo visto numa luta identitária contra o português, particularmente pelos mais novos, não se pode esperar maior proficiência dos alunos na língua de ensino. E sem acabar com a hostilidade à língua portuguesa como se pode melhorar a qualidade de ensino nas ciências e na matemática e estimular a população a adquirir as competências linguísticas que um país do turismo e de prestação de serviços requer.

Cabo Verde completou cinquenta anos e devia ser o momento para o olhar criticamente, mas com firmeza, os desafios que tem de enfrentar, as reformas que deve fazer e a atitude que deve assumir para não só manter o país a crescer como fundamentalmente para dar o salto para um novo estádio de desenvolvimento. Nesse sentido, é da maior importância a aposta no capital humano, o recurso que realmente o país dispõe, e está inteiramente nas suas mãos potenciar. Mas para isso, resolver o problema da língua é central. Tanto a música em crioulo como a literatura em português contribuíram para a emergência da consciência da nação. Se nem em Angola, no Brasil ou nas outras antigas colónias não há conflito identitário com a língua portuguesa porque haveria de existir em Cabo Verde, onde a nação é vista consensualmente como anterior à independência.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1233 de 16 de Julho de 2025.

sábado, julho 19, 2025

Democracia e a não promoção da verdade

 Segundo a autora do livro “Democracia e Verdade: Uma Breve História”, Sophia Rosenfeld, a democracia insiste na ideia de que a verdade é simultaneamente importante e ninguém pode dizer definitivamente o que ela é”. Para a historiadora isso significa que há uma tensão intrínseca à democracia que não é passível de solução porque ninguém detém a verdade e é sempre possível debater na busca por uma representação mais próxima da realidade.

Da dinâmica gerada vem tudo o que permite a evolução de ideias e mudanças culturais, garantindo estabilidade e capacidade de adaptação aos novos tempos.

Complica-se tudo quando surgem forças que procuram resolver a tensão própria das democracias impondo a sua verdade, criando instabilidade e incapacidade de resposta adequada da sociedade no seu todo aos desafios circundantes por falta de espírito crítico e de cultura de debate. Assistiu-se a esse tipo de complicação nas celebrações do 50º aniversário da independência de Cabo Verde. Viu-se o presidente da república, conjuntamente com várias outras instituições do Estado, a homenagear os protagonistas e as suas opções no momento da independência, há 50 anos atrás. Ora, nos feriados nacionais celebram-se os interesses e valores partilhados da comunidade política que neste ano de 2025, como nos 35 anos anteriores, são completamente opostos aos dos primórdios da independência.

A França, por exemplo, celebra o seu dia nacional no dia da Tomada de Bastilha que foi a 14 de Julho de 1789. Ninguém espera que se celebre o regicídio, o período de terror ou o bonapartismo que se seguiram à movimentação popular. Da revolução francesa celebram-se hoje, nos 67 anos da V República, os princípios e valores da liberté, egalité, fraternité e da Declaração Universal do Homem e do Cidadão que são perenes e em que toda a república neles se revê. Nos Estados Unidos são homenageados os pais fundadores, hoje quase 250 anos depois da independência, porque foram eles que dotaram o país de uma Constituição democrática e liberal que fez do país uma superpotência e uma fonte de inspiração global para os povos desejosos de liberdade e democracia.

Nesse sentido, é um contra-senso, hoje na II República, homenagear como fundadores da república quem impôs ao país uma ditadura do partido único de tempo ilimitado que só soçobrou com a queda dos regimes de similar inspiração leninista no Leste da Europa e na União Soviética. Vai-se à frente com isso porque tem à sua disposição os recursos, os meios e as competências legais para agir, mas à custa de maior conflitualidade na sociedade, de maior pressão no sentido do conformismo e de menos espírito crítico. Não se pode é pretender que se esteja a promover a unidade nacional, a criar ambiente para consensos em relação ao futuro e a cimentar a confiança que permite reformas de fundo, essenciais para realmente se dar o salto em frente no país.

Parece que para certos sectores da sociedade os ganhos de curto prazo sobrepoem-se a tudo o resto. E neste momento a tendência é procurar ganhar com o tipo de polarização exacerbada da sociedade em que uma parte não ouve a outra e num jogo de soma zero só se ganha com a perda do outro. É a linha dos populistas modernos que se posicionam contra as elites, lançam a desconfiança contra o crescimento económico e refugiam-se em posicionamentos identitários para criar fracturas graves na sociedade, eliminando efectivamente o diálogo e a possibilidade de qualquer negociação ou compromisso.

Aqui em Cabo Verde percebe-se que a via encontrada para alargar as clivagens sociais e políticas foi de reviver a luta que nunca deixou de existir no país desde que às ilhas chegou o PAIGC, vindo da Guiné com o projecto de apoderar-se do poder em Cabo Verde. Conseguiu-se isso eliminando todos os adversários. Acabou por se instalar até ser desalojado do poder quinze anos mais tarde. Como sempre fazem os partidos com essa cultura política de quem se vê como instrumento da história, soube, de seguida, adaptar-se ao ambiente democrático, adoptar a linguagem adequada e a postura certa. Mesmo de regresso ao poder anos depois, por vias democráticas, não abandonou o essencial do legado dos tempos do partido único. Continua a defendê-lo cada vez mais explicitamente.

Ainda se vê no papel de demiurgo que tudo trouxe para o povo destas ilhas e reclama que o país lhe deve a libertação, o fim das fomes, a abertura política, a democracia e o progresso. Reivindicando a condição de partido africano da independência, continua a rever-se no papel de quem procura reafricanizar os espíritos. O instrumento mais recentemente criado tem sido o crioulo que se tornou o foco de uma luta de libertação tardia contra a língua portuguesa, não obstante os custos enormes dessa hostilidade para as novas gerações em termos de competência linguística, de sucesso escolar e da própria qualidade do sistema de ensino.

A isso deve-se acrescentar o sucesso conseguido em trazer a problemática da escravatura e a condição de escravo para o quotidiano do cabo-verdiano em que os modismos nos meios académicos das teorias crítica de raça ou do chamado wokismo ajudaram bastante. Também aqui não parece importar os custos dessas incursões no sentimento do cabo-verdiano que deixa de sentir uno na diversidade da sua vivência nas ilhas. Os custos acarretados são potencialmente de quebra na autoestima do cabo-verdiano e na relutância em se associar com outros e em, cada vez mais, se vitimizar.

E como o sucesso alimenta o sucesso, os ganhos recentes na guerra ideológica acelerada pelas questões de identidade confirmam a importância de se dominar na comunicação social, na cultura e fazer ressonância com modos de pensar e forma de estar em sectores-chave de influência académica e cultural. Daí que as comemorações, que juntavam o centenário de Cabral e os cinquenta da independência fossem demasiado apetitosas para serem passadas ao lado e demasiado difíceis de negar, para sectores ideologicamente hegemónicos na sociedade. O excesso do culto de personalidade, que já não se cinge unicamente pela idolatria de Cabral, mas que se espalha para quem se vê como a geração mais moral, não fica sem custos.

Entretanto, a sociedade entra por uma divisão e uma crispação reproduzindo fracturas antigas num tempo de conflito cultural e identitário que as favorecem em detrimento da unidade de propósito e de compromisso que precisa para enfrentar ameaças e aproveitar oportunidades. A satisfação pessoal que uns têm da visibilidade e aparente reconhecimento social, resultante do peso institucional e meios de quem os patrocina e oferece homenagens, tem contrapartida no descrédito dos mesmos e da função que exercem e no aumento do cinismo face a tanta hipocrisia.

E no finalmente esse reconhecimento não vai deixar de ser efémero porque suportado em alicerces frágeis e falaciosos que não resistem um debate aberto numa sociedade com espírito crítico e aderência aos factos. Também há que reconhecer que há certas ideias e práticas que há muito pertencem ao caixote de lixo da história. Sabem disso e por isso que se esforçam tanto por se camuflar com roupagem democrática para travar essa sua inexorável caminhada. Até lá os custos amontoam e são pagos por todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1232 de 9 de Julho de 2025.

sexta-feira, julho 11, 2025

Celebrar o 5 de Julho com um olhar de esperança no futuro

 

Nas vésperas do feriado nacional de 5 de Julho que no corrente ano corresponde ao 50º aniversário da Independência percebe-se que as celebrações continuam subordinadas a uma narrativa única da história de Cabo Verde. É essencialmente a mesma narrativa que o PAIGC usou para exigir que só podia haver independência sob a sua direcção e que no pós 5 de Julho serviu para legitimar a instauração da ditadura do partido único que iria manter-se nos quinze seguintes. A repeti-la, como mais ou menos nuances, e, na generalidade dos casos, a validá-la, tem sido o resultado do desfilar de memórias ao longo das últimas semanas em eventos, reportagens e entrevistas, com particular destaque para as recordações “heróicas” dos antigos dirigentes do regime.

Em qualquer outro sítio seria algo bizarro encontrar, em plena democracia, antigos dirigentes de regimes autocráticos a dominar o discurso político nas celebrações dos dias nacionais. O choque de valores seria gritante. Em Cabo Verde, porém, não é assim e, como que imposta por uma vontade férrea, a narrativa do regime de partido único sobreviveu as cinco décadas e continua a permear as instituições do Estado, o sistema de ensino e a comunicação social. É algo que até parece a realização do sonho de Gramsci da hegemonia ideológica que permite “liderar antes de conquistar o poder, de liderar a exercer o poder e de continuar a liderar depois de perder o poder". E quando perde, é só uma questão de tempo para regressar ao poder.

Nestes dias de comemorações do 50º aniversário, exemplos de bizarria abundam. Nesta segunda/feira, dia 30 de Junho, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) organizou uma “singela homenagem aos protagonistas do processo eleitoral de 1975 que culminou na eleição dos deputados da Assembleia Nacional Constituinte”. Não é de fácil compreensão quais as razões por que uma CNE com funções de administração do processo eleitoral numa democracia e competência para assegurar eleições livres, plurais e justas se disponibiliza para homenagear um processo eleitoral organizado seis meses depois dos acontecimentos de Dezembro de 1974: a tomada das rádios privadas, a proibição de outros partidos políticos e a prisão de setenta cabo-verdianos, considerados inimigos do PAIGC. Umas eleições acordadas depois desses acontecimentos no chamado Acordo de Lisboa de 19 de Dezembro de1974 que, segundo o então ministro português Almeida Santos, em entrevista ao jornal Público, seriam umas consultas populares em que “você, ( o PAIGC) ganham por 90 por cento e nós salvamos a face".

Ou seja, não se vê por que vir referenciar umas eleições com resultados previamente conhecidos – na realidade o PAIGC teve 92% - porque não havia adversários e a população estava a ser intimidada, Segundo a investigadora portuguesa Sandra Pires, uma nova missão que foi dada às forças armadas portuguesas (MFA) nesse período era ajudar o PAIGC a “bater definitivamente as forças conservadoras que ainda influenciam bastante certas camadas da população”. Também como homenagear uma Assembleia Nacional Constituinte eleita nesses termos que falhou até em cumprir com as funções que a lei eleitoral de Abril de 1975, artigo 2º, lhe estabeleceu de, em noventa dias, dotar Cabo Verde de uma Constituição. Depois de proclamar a independência, transformou-se numa outra entidade, uma Assembleia Nacional Popular que, através de uma Lei de Organização Política do Estado (LOPE), imediatamente transferiu todo o poder ao PAIGC que foi consagrado força dirigente da sociedade e do Estado.

Aliás, mesmo a plenitude das prerrogativas de soberania e independência ficou posta em causa com a transferência de poder para o PAIGC que era um partido supranacional que já governava um outro país, a Guiné-Bissau, em relação à qual ficou na LOPE  estabelecido que deveria elaborar um projecto de associação dos dois Estados. O simbolismo da entrega de soberania ao PAIGC ficou claro quando a nova bandeira foi entregue para ser içada no momento da independência pelas mãos do secretário-geral do PAIGC e quando se proclamou que as forças armadas eram o braço armado do partido. Não há, pois, qualquer razão para homenagens a um processo e os seus principais protagonistas que serviram para instaurar um regime de ditadura depois dos quarenta de Salazar/ Caetano.

O 5 de Julho é o dia da independência, mas é também o dia da implantação da ditadura do partido único. A promessa de liberdade não foi cumprida, nem tão-pouco a promessa da soberania. Não é por acaso que muita gente em Cabo Verde agradece ao Nino Vieira pelo golpe de Estado de 14 de Novembro na Guiné-Bissau. Permitiu que a soberania voltasse completamente para Cabo Verde, ainda para que fosse só para o PAICV. Para o povo só voltaria, de facto, com o 13 de Janeiro de 1991 e a Constituição de 1992.

Na narrativa da ditadura do partido único, o povo deve ser eternamente grato ao PAIGC/CV. Fala-se da fome, da educação e da saúde para a sua auto gratificação. Esquecem da extraordinária ajuda internacional recebida e do uso questionável que lhe foi dado por falta de visão, por opções ideológicas que fizeram o país perder oportunidades e também porque, entre manter o poder ou desenvolver o país, invariavelmente optou pelo controlo das populações. Não é á toa que Cabo Verde chega ao fim dos quinze anos de partido único com a economia estagnada e um rendimento per capita de 900 dólares.

A desesperança das pessoas no fim desses anos contrastava com a euforia e a generosidade que se sentia nos primeiros anos, mesmo com as restrições de liberdade do regime. Tais sentimentos acabaram por se esfumar perante o cinismo prevalecente. Passou a ser corriqueiro as pessoas se negarem a participar justificando que “acabou a militância” e a se desresponsabilizarem em relação à comunidade, dizendo que “não são os culpados pela morte de Cabral". O crescimento só viria depois, a partir dos anos noventa, com a liberdade, a democracia e a abertura para o mundo. Actualmente,  o rendimento per capita ultrapassa os 5 mil dólares e poderia ter sido mais se falta de visão estratégica e de mais competência não tivesse toldado o caminho nos primeiros quinze anos. Cabo Verde não estaria hoje à frente apenas de São Tomé e Príncipe, entre os países insulares (SIDS).

Neste 5 Julho que se pode celebrar todas as promessas da independência, como sejam a autodeterminação para escolher livremente os governantes e fazer as leis do país, o exercício pleno dos direitos, a começar pela liberdade de expressão, e a busca da felicidade, é tempo de se libertar da narrativa que tem tolhido o passo dos cabo-verdianos. Não é, porém, tarefa fácil no mundo de hoje em que questões identitárias estão a ser exacerbadas. A narrativa ganha mais oxigénio porque os princípios e valores que ainda promove entre os quais culto de personalidade e vanguardismo fomentam sentimentos anti-sistema nos países democráticos que facilmente podem ser aproveitados pelo populismo moderno.

Cabo Verde não está livre dessa tentação e não deve correr esse risco. Celebrar o 5 de Julho todos os anos deve, sim, significar continuar a libertar o país das amarras e mitos do passado que comprovadamente ameaçaram deixar o país para trás. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1231 de 2 de Julho de 2025.

segunda-feira, julho 07, 2025

O Partido Único em Cabo Verde - Um Assalto à Esperança

         O Partido Único em Cabo Verde            

                                Um Assalto à Esperança         

                                                                                                                             

A memória do passado é fundamental para se compreender o presente e visionar o futuro. O livro O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança procura contribuir para a preservação dessa memória. O livro foi escrito em 1992 e publicado na sua primeira edição, edição do autor, em Março 1993. 

 

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Penso que o meu livro ainda continua actual apesar de todos estes anos por duas razões principais: a primeira por que através de documentos designadamente livros, jornais, revistas, BOs e outras publicações devidamente datadas e contextualizadas procurou reproduzir o que então partido-estado e os seus dirigentes queriam fazer de Cabo Verde, as dificuldades que encontraram e as consequências da sua visão. Só foram citados documentos que podem ser acessíveis a qualquer pessoa para verificação.

 

A narrativa dos quinze anos procura ser o mais compreensivo e abrangente na sua abordagem revelando o impacto das políticas e medidas do regime em todos os aspectos da vida do cabo-verdiano seja político, económico, social e cultural. É a minha convicção que o essencial do está aí foi posteriormente validado. 

 

Notam-se ainda as marcas do regime nas instituições, na cultura política prevalecente, no baixo nível de capital social e de civismo. Justificam a crispação política existente, as dificuldades em adoptar a atitude certa para enfrentar e desenvolver no mundo de hoje, a crise de identidade e o conformismo do qual só se liberta pontualmente com chamamentos demagógicos e populistas para logo de seguida cair-se na frustração. 

 

Explicam por que foram efectivos as operações de resgate do passado, o branqueamento dos dirigentes do regime e o divisionismo no país criado por políticas identitárias comandadas pelo estado a partir do seu aparelho ideológico em todo o sistema de ensino, na comunicação social e na propaganda que através dos seus agentes produz e distribui. 


Uma segunda razão por que penso que o livro tem utilidade é que apesar dos vinte e cinco anos passados após a queda do regime do PAIGC/PAICV não se vêem muitos estudos sobre o que foram os anos de partido único. Os que existem preferem centrar-se sobre o momento da independência e a aura heróica que normalmente a acompanha e também o momento da abertura política de 1990 e a suposta generosidade e/ou sabedoria que os dirigentes repentinamente demonstraram. 

 

Para além disso tendem a suportar-se em boa parte nas interpretações que hoje os antigos dirigentes fazem dos seus actos passados e não o que disseram e fizeram quando exerciam o poder. Omisso fica realmente tudo o que se passou entre estes dois momentos e as reais motivações por detrás das políticas do regime. É essa omissão que também é um mutismo e uma amnésia cultivada que o meu livro procura suprir.

 

A questão da memória colectiva e memória história é de suma importância para qualquer sociedade. Como já celebremente tinha dito George SANTYANA quem não conhece a s sua história fica condenado a cometer os mesmos erros. São sempre graves as consequências de manipulação da memória colectiva de um povo mas é o que se faz em cabo verde desde que uma força política, o PAIGC,  surgiu nestas ilhas a reivindicar que nações são forjadas na luta pela independência e que o seu dirigente máximo é fundador da nacionalidade. 

 

Para se impor tinha que fazer esquecer que a experiência humana nestas ilhas de Cabo Verde tem mais cinco séculos de existência e que a a identidade cabo-verdiano que emergiu ao longo dos séculos dentro do império português já era conhecida muito antes da independência nacional. Em substituição dessas memórias outras, por exemplo de luta libertação, que as pessoas não têm experiência directa deviam ser implantadas e outras identidades impostas. Desestruturar a memória torna-se num objectivo claro de política. 

 

Forçam-se as pessoas a acreditar que verdade ou facto é o que é conveniente dizer ou aceitar. Na luta interminável que assim começa não há naturalmente liberdade intelectual que permita preencher os vazios, incoerências e fantasias na memória colectiva. Compreende-se assim o deserto da literatura sobre o regime de partido único. Contribuir para restauração completa e total da memória do povo caboverdiano é que me motivou a escrever este livro.

 

Uma 2ª edição foi publicada pela Editora Pedro Cardoso em Fevereiro de 2017.