segunda-feira, agosto 27, 2007

Ganhos de civilização

Na semana passada o Senhor Presidente da República desencadeou o processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade de algumas normas da lei de investigação criminal, recentemente aprovada na Assembleia Nacional. Um acto quase inédito em Cabo Verde, não obstante as óbvias situações que, no passado, requereram tal uso do poder moderador do PR. Um exemplo recente disso foi a legislação sobre o IVA, que veio a provar-se inconstitucional em sede de fiscalização sucessiva e abstracta, requerida pelos deputados do MpD, mas que, nos três anos que vigorou, já tinha prejudicado enormemente os caboverdianos e a economia do país. O pedido formulado pelo PR ao Tribunal Constitucional incide essencialmente sobre a norma que reduz as competências do Ministério Público na condução e supervisão do processo de investigação criminal, a favor de uma liberdade excessiva da acção da polícia. Questões de maior importância enformam essa norma. A sua apresentação deixa ver a opção deste Governo em soltar as polícias de um certo controlo jurisdicional, exigido pelo Constituição e já com tradução consequente nos estatutos dos magistrados judiciais e do ministério público e no Código de Processo Penal, uma opção reveladora de derivas securitárias. A sua alteração significaria mudanças inviesadas no estatuto dos magistrados sem o processo legislativo próprio. A sua aprovação por maioria absoluta levaria à violação dos artigos 175º, alínea e, 159º, nº 4 e 160º, nº3, todos da Constituição, que prescrevem maiorias de dois terços dos deputados para matérias respeitantes ao estatuto dos magistrados judiciais e do ministério público. O grupo parlamentar do MPD veio a público relembrar que as preocupações do PR são as mesmas patentes no parecer unânime da Comissão Especializada dos Assuntos jurídicos e Constitucionais da A N. Com uma diferença, os deputados do PAICV, membros dessa Comissão, perante a teimosia e a arrogância do Governo, desculparam-se, retractaram-se e quase que se auto-criticaram, na Plenária, dando o dito pelo não dito. O resultado foi o espectáculo do Plenário da Assembleia Nacional, renegando o parecer unânime da sua Comissão de Assuntos Jurídicos e Constitucionais, só para satisfazer a ânsia de governantes em fazer aprovar leis sem a maioria estabelecida pela Constituição. É evidente que perante isso o PAICV não tem argumentos. E quando não tem, passa para a demagogia mais torpe e para insultos pessoais dos mais miseráveis. Na quarta-feira passada, na rádio e televisão, o País viu o PAICV, mais uma vez, a acusar a oposição democrática, o MPD, de aliança com criminosos e com o crime. E porquê?! Porque o MPD objecta quando o PAICV quer ultrapassar as garantias de defesa instituídas na Constituição, restringir gravemente os direitos dos cidadãos e retirar ao poder judicial, por um lado, a tutela e a defesa desses direitos e, por outro, as competências necessárias para garantir que o Estado, particularmente, a Polícia, aja e actue eficazmente, mas sempre dentro dos limites da Lei. O PAICV insiste com essa ideia peregrina, mas perigosa, de que, se a polícia tivesse mais poderes, ou seja, se estivesse mais solta das amarras da lei, o crime seria efectivamente combatido e todos se sentiriam seguros. A realidade histórica, nossa e de outros povos, prova que essa crença é absolutamente falsa e ilusória. Estados policiais e Estados com obsessões securitárias para cima dos direitos dos cidadãos e do controlo jurisdicional não diminuem significativamente o crime. Mas os abusos da polícia aumentam extraordinariamente. O Estado torna-se, de facto, no maior criminoso, prendendo, torturando e assassinando cidadãos, em muitos casos, aos milhares e até milhões, como é de conhecimento de todos. Nós em Cabo Verde temos experiência directa de várias situações durante o Regime do Partido Único, em que cidadãos ficaram completamente à mercê da violência do Estado, sofrendo prisão, sevícias e morte prematura. Porque não se lhes reconheciam direitos e porque os tribunais não tinham poderes para os defender e para conter a sanha do Estado e das Forças de Segurança. O 31 de Agosto de 1981 em S.Antão deve sempre lembrar-nos o que significa estar-se completamente indefeso perante a fúria do Estado e das forças policiais. O PAICV é que, na sua denegação da história, parece não querer aprender. De facto, os direitos fundamentais na Constituição e a independência do poder judicial nunca protegeram os criminosos. Eles nem chegam a um porcento da população. A Constituição protege sim contra abusos do poder a maioria de mais de 99 por cento, que não comete crimes. Mas também, aqueles que tiveram o infortúnio de infringir a lei, assegurando, a todo o momento, o respeito pela sua dignidade humana e o cumprimento das suas garantias de defesa. Isso é um sinal de civilização. É fundamental que o PAICV absorva definitivamente estes ganhos civilizacionais do povo de Cabo Verde, para podermos, tranquilamente, discutir a melhor política criminal e ponderar sobre a melhor forma de a executar.

terça-feira, agosto 21, 2007

RTC: servidão pública ou partidária?

O Festival da Baía das Gatas é o maior evento turístico de Cabo Verde. Realizado anualmente nos 3 dias do fim de semana de Lua Cheia em Agosto, é um factor chave de marcação de férias de verão para muitos estrangeiros e emigrantes e, também, para nacionais, residentes nas outras ilhas. O movimento nos hotéis, bares, restaurantes, lojas, táxis etc, que resulta da chegada de milhares de pessoas a S. Vicente contribui extraordinariamente para a economia da ilha. E aponta o caminho para o desenvolvimento de S.Vicente como a ilha/cidade de eventos. De facto, o fenómeno de Baía das Gatas, em que a cidade parece deslocar-se para mais de doze quilómetros durante dois dias, ilustra a disposição da população do Mindelo em participar massivamente e com entusiasmo em todos os eventos sejam eles, Carnaval, festividades de fim do ano, festival de teatro, festas de romaria etc. Visitantes, nacionais e estrangeiros, rapidamente envolvem-se em tudo. A leveza e a descontracção da interacção social convidam a uma participação activa, quase eufórica, no frenesim, criado pelos grandes eventos. Isso faz da experiência sanvincentina uma referência importante na perspectivação de um turismo em Cabo Verde que vá além do turismo de mar e sol. Não se compreende, pois, a omissão da Televisão Pública na transmissão do festival da Baía das Gatas para o país e para o mundo, limitando os efeitos económicos do festival e os seus objectivos de promoção de S.Vicente e de Cabo Verde como destino turístico. De facto não se compreende para quê ter uma televisão do Estado se ela não se sintoniza com as grandes apostas de desenvolvimento económico, social e cultural. Custos em estabelecer um link hertziano a partir da Baía e na deslocação do pessoal justificaram a ausência. Razões similares parecem não ter sido um óbice à presença da RTC em S.Nicolau a fazer a cobertura/propaganda do Governo em reportagens escandalosamente longos. Nada, porém, justifica que a RTC não potencie os vultuosos investimentos da sociedade, do empresariado local, das Câmaras Municipais e do Estado na promoção de Cabo Verde, designadamente os já feitos no âmbito da realização do festival de 2007. Por outro lado, ninguém pode acreditar que a RTC faça o bom uso do dinheiro da taxa de televisão e dos valores que lhe são transferidos do Estado, impostos pagos por todos, quando opta por gastar meios valiosos em futilidades televisivas ou servindo interesses partidários do Governo em vez de prestar serviço público. Tudo fica ainda mais estranho quando se percebe que a RTC, na Baía das Gatas, podia obter conteúdos únicos, sem pagar cachet ou direitos aos artistas ali presentes, e recusa-se. Ou seja, a RTC põe-se na posição caricata de querer que alguém lhe pague o acesso grátis a conteúdos valiosíssimos de Paulino Vieira e de muitos outros artistas nacionais e estrangeiros?! Conteúdos que, ao longo dos anos, poderiam constituir material de horas e mais horas de programação e de possível distribuição por outras vias?! Por aí vê-se que a RTC não dá muita importância à obtenção de conteúdos legítimos e de particular interesse para o país e para a promoção dos seus músicos, quando isso envolve algum custo ou esforço em particular. Provavelmente são os maus hábitos adquiridos no desrespeito pela propriedade intelectual e artística. Desrespeito notório no passar sistemático de filmes e de música sem pagar direitos, contribuindo para inviabilizar o cinema em Cabo Verde e retirando incentivos aos artistas e criadores nacionais. Desrespeito fatal para um país em que a cultura é um dos poucos bens exportáveis. Cultura que só pode constituir-se em valor, hoje e amanhã, se for devidamente protegida, se a pirataria for combatida e se os criadores forem justamente recompensados. O Governo que tem responsabilidades na comunicação social tem obrigação de exigir à RTC que preste serviço público. Uma das vertentes desse serviço é precisamente constituir-se em exemplo de respeito pelos direitos de autor. Uma outra vertente é que assegure as condições para expressão e o confronto de ideias das diversas correntes de opinião sejam elas políticas, filosóficas ou estéticas. Uma outra ainda é que dê espaço e amplifique os esforços de comunidades e ilhas em se darem a conhecer ao país e ao mundo, sem discriminação de qualquer espécie. Ficar de fora de um evento como o Festival de Baía das Gatas, com todo o alcance e implicações desse evento, revela o quão a RTC vem-se desviando das obrigações e do código de conduta exigível ao serviço público. E ser público significa, em essência, ser de todo o País: o Cabo Verde, física e culturalmente, diverso e plural.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Sem Rumo

Lá vamos nós outra vez. O Governo já lançou mais um balão. O balão nuclear. No passado recente foram lançados, entre outros, os balões do petróleo, do gás natural e da parceria especial com a União Europeia. Este último balão, já bastante inchado de expectativas criadas pelas sucessivas declarações do Governo desde 2002, viu-se repentinamente reduzido a uma bolha, não de sabão, mas de Cotonu. Segundo um despacho da Inforpress de 10 Julho, citando fonte governamental, a parceria especial deverá, afinal, ser a exploração de todas as potencialidades do acordo de Cotonu, o acordo assinado, no ano 2000, entre os países ACP (Africa, Caraíbas, Pacífico) e a União Europeia. Grande novidade. Mas não foi certamente isso que os caboverdianos imaginaram e sonharam ao ouvirem insistentemente o discurso da parceria especial. Decididamente que não foi a pensar em Cotonu que muitos, particularmente na emigração, votaram. Mas, como diz o brasileiro, o Governo nem está aí. E passa à frente. Agora temos o nuclear para resolver o problema da energia. Vieram os russos com uma proposta de venda de energia eléctrica a partir de uma barcaça com dois reactores nucleares. O Ministro da Economia, segundo o jornal asemana, já acha a ideia interessante, já anuncia que vai permitir a redução drástica dos custos de energia e já escolhe a ilha de Santiago para acolher o barco. Lançado, o balão expande-se por si mesmo no vacum, deixado pela ausência de políticas e de investimentos atempados para responder às necessidades presentes e de médio prazo do país e, particularmente, da cidade capital. Entretanto, questões sérias pairam no ar: a central é dos russos. Não a vendem. O preço seria superior a 200 milhões de dólares e iriam contra as normas do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Só pode ser operada por eles, e, sendo móvel, podem levá-la a qualquer momento. De 12 em 12 anos tem ser mesmo levada de volta para manutenção. Quem fica a fornecer energia? E no caso de manutenção ou avaria de um dos reactores, quem irá suprir a diferença energética? Quer isso dizer que a central flutuante não dispensa investimento em igual potência em terra, para cobrir todas as eventualidades? Se é assim, porque arriscar-se numa tecnologia que não pode ser transferida, numa produção que não pode ser controlada e numa relação com empresas de um país que já demonstrou vontade, em várias situações complicadas, de usar a carta de energia para pressionar os outros. Porque apostar num sistema que pode ser altamente ameaçador para o ambiente ou transformado em ameaça letal por desastres naturais ou acções terroristas, e que não deixa margem para a intervenção do país hóspede na prevenção ou contenção de estragos. O País gostaria de conhecer os pormenores do processo de decisão do Governo nesta matéria. Ou será que tudo isto é para ganhar tempo e simular trabalho no campo energético onde é cada vez mais evidente as consequências das omissões e das más decisões do Governo. De facto, a Rosenergoatom ainda não tem micro centrais atómicas. Está a construir um protótipo que ficará pronto em 2011 e que já está destinado para o porto de Severodvinsk, no mar Branco. Naturalmente que só depois de testar e certificar o protótipo é que outras micro centrais nucleares poderão servir os objectivos da empresa em vender energia e água para outros países. Considerando as urgências de Cabo Verde e o tempo necessário para adequar o país com uma dessas centrais, muito dificilmente se pode compreender a forma como o Governo aborda e agita uma matéria tão séria. Ou compreende-se: é o hábito arreigado de substituir actos de governação por propaganda e de gerar expectativas, inflamá-las e capturar votos no processo. Se as coisas correm mal, porque não se planeou adequadamente ou não se agiu em tempo, vem a outra parte, a desresponsabilização e o lançar culpas a governos anteriores, à oposição, a factores externos ou a agentes privados. A questão energética é vital para o Pais. É tempo do Governo deixar de se comportar nesta matéria como uma galinha tonta, saltitando de solução para solução (produtor independente, eólica, solar e agora nuclear), e governe.