sexta-feira, outubro 16, 2009

Avançar com a revisão constitucional

No Relatório sobre a Situação de Justiça entregue na Assembleia Nacional a 2 de Outubro, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) reitera a sua convicção de que “a instituição do concurso público como único meio de acesso à carreira judicial, permanece de indiscutível valia.  E explica: Concurso público, “ ao mesmo tempo que acode imperativos constitucionais e de transparência, postula a prevalência do critério do mérito na selecção”.
O posicionamento do CSMJ mostra-se necessário porque, não obstante a Constituição ter criado, dez anos atrás, o Tribunal Constitucional e instituído o princípio do concurso para o preenchimento das vagas no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tudo continua como antes. A não definição de um horizonte temporal para implementação das normas constitucionais deu azo a que se assistisse, durante toda esta década, à politização permanente da questão, resultando na situação actual. Ainda hoje, o País não está dotado de um tribunal constitucional. Os juízes da única instância de recurso judicial, administrativo, fiscal, aduaneiro e militar continuam a ser designados por órgãos de poder político. A reforma do sistema de justiça continua emperrada porque as forças políticas não chegam a acordo em como, e quando, materializar as alterações do sistema, estabelecidas na revisão constitucional de Novembro de 1999.

O último episódio deste drama político iniciou-se há um ano atrás quando o partido no Governo, sem adequada consulta prévia dos outros partidos e recusando contactos ao mais alto, tentou impor legislação que consolidaria um sistema híbrido na justiça caboverdiana. Segundo a proposta de lei do Governo, um dos juízes do Supremo Tribunal Judicial seria designado pelo Presidente da República, e não através de concurso público. A recusa da Oposição em validar tal proposta mostrou a urgência de se proceder a uma revisão da Constituição. Revelava-se imperativo eliminar a alínea l) do nº 1 do art. 134º da Constituição da República que confere ao PR o poder de nomear um juiz do Supremo Tribunal
Desencadeado o processo de revisão constitucional, os três projectos de revisão apresentados por deputados das duas bancadas parlamentares convergiram na supressão do referido artigo, sem que tenha havido qualquer negociação prévia. Um consenso sobre o obstáculo maior à reforma de justiça ficou assim estabelecido logo após a entrada do último projecto de revisão. É só ver o artigo 10º, o n º1 do artigo 23º e o nº 2 do art. 23º respectivamente, e em ordem de entrada, dos projectos de revisão do deputado Humberto Cardoso (MpD), do projecto de 21 deputados do PAICV e do projecto de 18 deputados do MpD. A questão que se pode colocar é porque ainda não se foi avante com a revisão constitucional para ultrapassar esse obstáculo e, na sequência, prosseguir com as reformas do sector.
Analisando as iniciativas políticas, que se sucederam a partir de não aprovação do pacote de Justiça, nota-se a repetição do mesmo padrão de comportamento que, nestes últimos dez anos, manteve o status quo actual. O início do processo de revisão constitucional a 10 de Novembro de 2008 não impediu o Governo de, duas semanas depois, propor de urgência e fazer aprovar com a sua maioria o alargamento do Supremo Tribunal de Justiça. Apesar das justificações apresentadas, mostrou-se, posteriormente, que não era a eficácia da justiça, que poderia resultar do aumento do número de juízes, o móbil principal da iniciativa. No Relatório sobre a Situação da Justiça de 2009 lê-se que o aumento de juízes “sequer foi acompanhada da alocação de meios financeiros necessários à aquisição de mobiliários e equipamentos para os gabinetes dos dois novos Juízes Conselheiros”.

O que o Governo pretendia era renovar o STJ no modelo antigo, em que o Presidente da República e a Assembleia Nacional designavam juízes, e insuflar-lhe mais cinco anos de vida. E é o que veio a acontecer quando, em Janeiro de 2009, conseguiu o apoio da então liderança do MpD, na base da promessa de um mandato limitado para o novo STJ. Mandato esse, porém, que só poderia ser limitado em sede de revisão constitucional. Revisão, que ainda está por acontecer, cujo processo é interrompido periodicamente por acusações, num jogo em que o MpD não dá mostras de ganhar.

O processo de revisão constitucional, que poderia levar à supressão dos principais obstáculos à reforma de justiça, até porque já nos projectos iniciais era claro que havia o entendimento de base para isso, foi posto nas mãos de uma comissão eventual. Composto por deputados do PAICV, por deputados do MpD e o pelo deputado da UCID, sem que este tivesse apresentado qualquer projecto, a comissão partidarizou em extremo os seus procedimentos. As acusações periódicas, o posicionamento público permanente sobre as questões mais delicadas, a rejeição da discussão de questões de regime também abertas em projecto de revisão apresentado, levou a que os seus trabalhos resultassem num impasse.
A constituição dá aos deputados o poder de apresentação de projectos de revisão, com exclusão do Governo e dos Grupos Parlamentares precisamente para evitar que o processo seja completamente sequestrado pela lógica partidária. Por isso, quando não se seguem os procedimentos certos, quando não se deixa imbuir do espírito que imana do processo e que o distingue de outros actos legiferantes o caminho fica aberto para a barganha partidária ou mesmo intra-partidária.
O facto dos dois grandes partidos se encontrarem em ano de eleição de líderes e de definição de estratégias para o futuro não facilita entendimentos ao nível constitucional. Há naturalmente uma turbulência interna que dificulta o traçar de posições claras. Por isso não estranha que não se chegue a compromissos certos em muita matéria. Ou que compromissos, aparentemente já assentes, sejam postos em causa no dia seguinte.
Não admira, pois, que, em tal ambiente de definições políticas futuras, uma matéria como é  a supressão do poder do Presidente da República em nomear um juiz do Supremo Tribunal de Justiça não sejam apanhada no torvelinho das sensibilidades intra-partidárias. E que isso constitua um obstáculo para se fazer a revisão mesmo que publicamente se apresentam outras razões. 
É claro para todos que a eleição de José Maria Neves com o apoio ostensivo de quem já mostrou comandar votos dos militantes, pelo menos na Praia, não parece ter aquietado as sensibilidades. Pelo contrário. Manifestam-se em frentes como remodelação ministerial, candidato presidencial e, ainda privadamente, na questão da composição dos órgãos a sair do congresso. E tudo leva a crer que também o descarrilamento periódico dos trabalhos da comissão eventual traduz essas tensões internas.
No actual momento de redefinição das forças políticas, poderia, talvez, ser vantajoso para todos avançar com a revisão constitucional pela razão por que se justificou, em primeiro lugar, o arranque do processo: Supressão da alínea l) do n.1 do artigo 134 da Constituição. Outras questões também importantes podem esperar um aprofundamento do debate nacional e a aproximação de posições necessária e, eventualmente, serem consideradas numa revisão extraordinária. O MpD e o PAICV têm conjuntamente deputados suficientes, mais de quatro quintos dos deputados, para, a qualquer momento, dar à Assembleia Nacional poderes extraordinários de revisão.

Em relação às leis de Justiça, a revisão constitucional mínima retiraria o impedimento estrutural. Ficaria espaço para as duas bancadas negociarem os entendimentos necessários para criação, ou não, de tribunais de relação, para o reforço da inspecção judicial e para uma maior autonomia administrativa e financeira do sector judicial. O consenso essencial existe. Falta agir em consequência e não procurar justificativas para não o fazer.  

       Publicado pelo jornal A Semana de 16 De Outubro de 2009

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