No Relatório sobre a Situação
de Justiça entregue na Assembleia Nacional a 2 de Outubro, o Conselho
Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) reitera a sua convicção de
que “a instituição do concurso público
como único meio de acesso
à carreira judicial, permanece de indiscutível valia. E
explica: Concurso público, “ ao mesmo tempo que
acode imperativos constitucionais e de transparência, postula a prevalência
do critério do mérito na selecção”.
O posicionamento do CSMJ mostra-se
necessário porque, não obstante a Constituição ter criado, dez
anos atrás, o Tribunal Constitucional e instituído o princípio do
concurso para o preenchimento das vagas no Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), tudo continua como antes. A não definição de um horizonte
temporal para implementação das normas constitucionais deu azo a que
se assistisse, durante toda esta década, à politização permanente
da questão, resultando na situação actual. Ainda hoje, o País não
está dotado de um tribunal constitucional. Os juízes da única instância
de recurso judicial, administrativo, fiscal, aduaneiro e militar continuam
a ser designados por órgãos de poder político. A reforma do sistema
de justiça continua emperrada porque as forças políticas não chegam
a acordo em como, e quando, materializar as alterações do sistema,
estabelecidas na revisão constitucional de Novembro de 1999.
O último episódio deste drama
político iniciou-se há um ano atrás quando o partido no Governo,
sem adequada consulta prévia dos outros partidos e recusando contactos
ao mais alto, tentou impor legislação que consolidaria um sistema
híbrido na justiça caboverdiana. Segundo a proposta de lei do Governo,
um dos juízes do Supremo Tribunal Judicial seria designado pelo Presidente
da República, e não através de concurso público. A recusa da Oposição
em validar tal proposta mostrou a urgência de se proceder a uma revisão
da Constituição. Revelava-se imperativo eliminar a alínea l) do nº
1 do art. 134º da Constituição da República que confere ao PR o
poder de nomear um juiz do Supremo Tribunal
Desencadeado o processo de
revisão constitucional, os três projectos de revisão apresentados
por deputados das duas bancadas parlamentares convergiram na supressão
do referido artigo, sem que tenha havido qualquer negociação prévia.
Um consenso sobre o obstáculo maior à reforma de justiça ficou assim
estabelecido logo após a entrada do último projecto de revisão. É
só ver o artigo 10º, o n º1 do artigo 23º e o nº 2 do art. 23º
respectivamente, e em ordem de entrada, dos projectos de revisão do
deputado Humberto Cardoso (MpD), do projecto de 21 deputados do PAICV
e do projecto de 18 deputados do MpD. A questão que se pode colocar
é porque ainda não se foi avante com a revisão constitucional para
ultrapassar esse obstáculo e, na sequência, prosseguir com as reformas
do sector.
Analisando as iniciativas políticas,
que se sucederam a partir de não aprovação do pacote de Justiça,
nota-se a repetição do mesmo padrão de comportamento que, nestes
últimos dez anos, manteve o status quo
actual. O início do processo de revisão constitucional a 10 de Novembro
de 2008 não impediu o Governo de, duas semanas depois, propor de urgência
e fazer aprovar com a sua maioria o alargamento do Supremo Tribunal
de Justiça. Apesar das justificações apresentadas, mostrou-se, posteriormente,
que não era a eficácia da justiça, que poderia resultar do aumento
do número de juízes, o móbil principal da iniciativa. No Relatório
sobre a Situação da Justiça de 2009 lê-se que o aumento de juízes
“sequer foi acompanhada da alocação de meios financeiros necessários
à aquisição de mobiliários e equipamentos para os gabinetes dos
dois novos Juízes Conselheiros”.
O que o Governo pretendia era
renovar o STJ no modelo antigo, em que o Presidente da República e
a Assembleia Nacional designavam juízes, e insuflar-lhe mais cinco
anos de vida. E é o que veio a acontecer quando, em Janeiro de 2009,
conseguiu o apoio da então liderança do MpD, na base da promessa de
um mandato limitado para o novo STJ. Mandato esse, porém, que só poderia
ser limitado em sede de revisão constitucional. Revisão, que ainda
está por acontecer, cujo processo é interrompido periodicamente por
acusações, num jogo em que o MpD não dá mostras de ganhar.
O processo de revisão constitucional,
que poderia levar à supressão dos principais obstáculos à reforma
de justiça, até porque já nos projectos iniciais era claro que havia
o entendimento de base para isso, foi posto nas mãos de uma comissão
eventual. Composto por deputados do PAICV, por deputados do MpD e o
pelo deputado da UCID, sem que este tivesse apresentado qualquer projecto,
a comissão partidarizou em extremo os seus procedimentos. As acusações
periódicas, o posicionamento público permanente sobre as questões
mais delicadas, a rejeição da discussão de questões de regime também
abertas em projecto de revisão apresentado, levou a que os seus trabalhos
resultassem num impasse.
A constituição dá aos
deputados o poder de apresentação de projectos de revisão, com exclusão
do Governo e dos Grupos Parlamentares precisamente para evitar que o
processo seja completamente sequestrado pela lógica partidária. Por
isso, quando não se seguem os procedimentos certos, quando não se
deixa imbuir do espírito que imana do processo e que o distingue de
outros actos legiferantes o caminho fica aberto para a barganha partidária
ou mesmo intra-partidária.
O facto dos dois grandes partidos
se encontrarem em ano de eleição de líderes e de definição de estratégias
para o futuro não facilita entendimentos ao nível constitucional.
Há naturalmente uma turbulência interna que dificulta o traçar de
posições claras. Por isso não estranha que não se chegue a compromissos
certos em muita matéria. Ou que compromissos, aparentemente já assentes,
sejam postos em causa no dia seguinte.
Não admira, pois, que, em
tal ambiente de definições políticas futuras, uma matéria como é
a supressão do poder do Presidente da República em nomear um juiz
do Supremo Tribunal de Justiça não sejam apanhada no torvelinho das
sensibilidades intra-partidárias. E que isso constitua um obstáculo
para se fazer a revisão mesmo que publicamente se apresentam outras
razões.
É claro para todos que a eleição
de José Maria Neves com o apoio ostensivo de quem já mostrou comandar
votos dos militantes, pelo menos na Praia, não parece ter aquietado
as sensibilidades. Pelo contrário. Manifestam-se em frentes como remodelação
ministerial, candidato presidencial e, ainda privadamente, na questão
da composição dos órgãos a sair do congresso. E tudo leva a crer
que também o descarrilamento periódico dos trabalhos da comissão
eventual traduz essas tensões internas.
No actual momento de redefinição
das forças políticas, poderia, talvez, ser vantajoso para todos avançar
com a revisão constitucional pela razão por que se justificou, em
primeiro lugar, o arranque do processo: Supressão da alínea l) do
n.1 do artigo 134 da Constituição. Outras questões também importantes
podem esperar um aprofundamento do debate nacional e a aproximação
de posições necessária e, eventualmente, serem consideradas numa
revisão extraordinária. O MpD e o PAICV têm conjuntamente deputados
suficientes, mais de quatro quintos dos deputados, para, a qualquer
momento, dar à Assembleia Nacional poderes extraordinários de revisão.
Em relação às leis de Justiça,
a revisão constitucional mínima retiraria o impedimento estrutural.
Ficaria espaço para as duas bancadas negociarem os entendimentos necessários
para criação, ou não, de tribunais de relação, para o reforço
da inspecção judicial e para uma maior autonomia administrativa e
financeira do sector judicial. O consenso essencial existe. Falta agir
em consequência e não procurar justificativas para não o fazer.
Publicado pelo jornal A Semana de 16 De Outubro de 2009
sexta-feira, outubro 16, 2009
sexta-feira, outubro 02, 2009
Seriedade nas respostas
Nações ganham
em carácter quando, confrontadas com situações determinantes da sua
existência futura, reagem com maturidade e firmeza: Não escondem nem
suavizam os factos; avaliam corajosamente em como acções passadas
contribuíram para a realidade actual, sem cair na armadilha da vitimização;
e movem-se decididamente para um outro patamar de resolução dos seus
problemas.
As crises,
vindas de fora ou originadas de dentro, podem ser momentos definidores.
São oportunidades de mudança se a consciência nacional, sem subterfúgios,
absorve o impacto total dos seus efeitos e encara as consequências
de não alteração de rumo.
O mundo vive
uma crise profunda. Felizmente, evitou-se que a crise financeira não
resultasse numa reedição da Grande Depressão dos anos trinta do século
passado. Não se conseguiu, porém, evitar o desemprego de milhões
de pessoas, a travagem no crescimento económico, a brusca contracção
do comércio internacional e os efeitos da escassez de crédito.
A crise tem
um culpado identificado, o sector financeiro. Um sector que insistiu
em auto regular-se, seguindo os ditames do mercado, mas que veio a revelar-se
oportunista e ganancioso. Sorvia percentagens cada vez maiores dos ganhos
da economia ao mesmo tempo que, sem transparência, submetia tudo e
todos a riscos excessivos, camuflados nos seus instrumentos financeiros
complexos. O resgate do sector implicou extraordinários recursos que
vão pesar nos bolsos dos contribuintes e na economia por vários anos.
O mundo pós-crise
que emerge reclama respostas novas e firmes. Nesse sentido vão as medidas
postas em práticas em vários países e absorvidas na última reunião
do G-20, designadamente, um plafond para os vencimentos dos executivos
bancários e regulação do crédito de certos produtos financeiros
como os “derivatives”. Em vários países a economia está-se adaptar
ao novo ambiente de menos exuberância financeira, maiores constrangimentos
em energia e expectativa de alterações climáticas. O processo de
globalização reajusta-se ao menor fluxo internacional de capitais,
à crescente influência da China, Brasil e Índia, e ao fim da divisão
entre países exportadores com enormes reservas externas e países importadores
com crédito barato, disponibilizado pelos outros, e défices fiscais
excessivos.
São os novos
tempos. E por todo o lado surgem novas respostas. Na América luta-se
por uma nova estrutura de cuidados de saúde, pela eficiência energética
e pela qualidade do ensino a todos os níveis. Em Portugal a preocupação
incide sobre a necessidade de inovar e exportar. Na China expande-se
o mercado interno para compensar a diminuição de exportações, etc.,
etc.
Aqui em Cabo
Verde finalmente constata-se que se vive novos tempos. Mas não os novos
tempos do resto do mundo. Aqui proclama-se que os novos tempos resultam
do governo ter cumprido grande parte do seu compromisso. A auto-satisfação
não deixa ver a crise no mundo e no País. Por isso as novas respostas
anunciadas mais parecem medidas de gestão de expectativas em ano pré-eleitoral
do que actos de governação responsável. O 13º mês para os funcionários
do Estado e outras despesas surgem sem que se explicite como e quanto
irá crescer a economia de modo a gerar receitas para as cobrir.
O discurso
de sedução do Governo parece colocar o País sempre fora deste mundo.
Primeiro, a crise não o atingia. Depois, quando os capitais escassearam
e o fluxo turístico diminuiu o Governo apressou-se a declarar que o
País estava protegido dos efeitos da crise, não obstante o aumento
do desemprego e a quebra de receitas públicas. O optimismo dos
governantes mantém-se alto à custa de empréstimos externos e das
obras onde os aplica, sem muita preocupação com a relação custos
e benefícios.
A realidade
nua e crua é passada ao lado. Não foram atingidas as duas grandes
metas do Governo constantes do seu Programa (página 8):
atingir taxa de crescimento económico a dois dígitos; reduzir a taxa
de desemprego a níveis inferiores a dois dígitos.
Esta falha grave não é assumida. O governo desculpa-se dizendo que
o desemprego é estrutural. Esquece que, para a nação caboverdiana,
o acto de apresentação do Programa ao Parlamento significa que o governo
ponderou devidamente as suas propostas e que as deve ter considerado
absolutamente realistas. O voto de confiança que solicitou e recebeu
do Parlamento suporta-se nessa assunção básica. Não pode, anos depois,
simplesmente varrer para debaixo do tapete o compromisso central de
governação.
Porque é
que não explica aos caboverdianos as razões do insucesso da luta
contra o desemprego, mesmo em tempo de vacas gordas? Como é que da
expectativa, gerada em 2006, de baixa de desemprego para menos de 10%,
se chegou, três anos depois, em 2009, à situação actual de 22% de
desemprego? Não se concretizaram os investimentos externos previstos?
Ficaram aquém dos resultados esperados a estratégia de desenvolvimento
do hub aeroportuário e do serviço internacional de transbordo?
Não se encontrou um novo rumo para o sector industrial? A agro-pecuária
não se expandiu o suficiente e não evoluiu para produtos de maior
valor acrescentado? Será que já beneficia de um mercado nacional unificado?
A pesca deixou-se ficar essencialmente pela sua condição artesanal?
As promessas de uma economia de conhecimento, suportada numa população
jovem bem formada nas ciências, com competência linguista e qualificada
nas tecnologias de informação e comunicação, não se materializaram?
E a praça financeira, particularmente a offshore, conseguiu
ganhar dimensão e criar postos de trabalho qualificados e bem remunerados?
Em qualquer
país o sucesso na atracção de capitais externos, na execução de
estratégias de desenvolvimento e na criação de condições para competitividade
futura das empresas e para a inovação de produtos e processos depende
muito do ambiente de negócios existente. E nessa matéria Cabo Verde
não está bem. O relatório do Banco Mundial sobre a facilidade de
fazer negócios ainda situa Cabo Verde entre os piores. No Doing Business
2010 é o 146º em 183 países no mundo. Em Africa, ocupa o vigésimo
lugar, atrás do Lesotho, Malawi e Gambia.
Em ambientes
pouco facilitadores de negócios intenções de investimento muito dificilmente
se realizam, novos empreendimentos confrontam-se com demasiados obstáculos,
empresas existentes mostram relutância em crescer e em diversificar
e é excessivo o risco, seja de entrada, de inovação e de desenvolvimento
de novos mercados. Tudo isso ficou demonstrado nos últimos anos. Cabo
Verde teve oportunidades múltiplas de aproveitar o crédito fácil,
o crescimento do comércio internacional e a e forte procura de novos
destinos turísticos para fazer crescer a sua economia e lutar decisivamente
contra o desemprego. Falhou. A crise não provocou o falhanço, como
se vem sugerindo, à laia de desculpas. A crise, ao alterar drasticamente
as condições vantajosas então existentes, só veio revelar o tempo
perdido.
Reformas capazes
de alterar o ambiente de negócios são possíveis se houver visão
e vontade. Ruanda, o país dos tutsi e dos hutus e do genocídio de
triste memória de há 15 anos atrás, um país muito mais difícil
de governar do que Cabo Verde, conseguiu num ano passar do 143º lugar
na facilidade de negócios para o 67º. No almoço oferecido por Obama
a 25 chefes de Estado e de Governo africanos em Setembro, o presidente
do Ruanda, Paul Kagame, foi convidado conjuntamente com os presidentes
da Libéria e da Tanzânia para introduzir um tema de debate, como reconhecimento
pelas reformas realizadas.
Em Cabo Verde,
o foco não está nas reformas. O discurso oficial centra-se na governança.
Good governance é apresentada como recurso estratégico É mesmo
dado como o petróleo de Cabo Verde porque propicia recursos externos
que, actuando como uma renda, permite ao Estado manter uma posição
cimeira e controleira sobre a economia, a sociedade e os indivíduos.
Por isso, as reformas ficam para trás enquanto o
Governo concentra-se
em passar a imagem que mais se adequa às expectativas e à agenda dos
países doadores e de organizações multilaterais. Erguem-se todas
as bandeiras, abraçam-se todas causas e seguem-se todos os modismos
sem muita preocupação com os conteúdos e a sua aplicabilidade ao
País Opta-se pelo que gera fluxos monetários exteriores a curto prazo
e coloca-se em segundo plano a consolidação da economia nacional e
a sua sustentabilidade futura.
O mal não
está em projectar uma imagem boa para o exterior. O mal é
ficar por aí e subordinar tudo a isso. O mal é manter o
Estado num círculo vicioso que o faz incapaz de mudar e de introduzir
reformas na economia. E sem reformas dificilmente o país poderá tornar-se
atractivo ao investimento externo e produzir o ambiente de negócios
propício à criação e expansão de um tecido empresarial moderno,
competitivo e capaz de gerar postos de trabalho que ponham o desemprego
abaixo dos 10%.
A incapacidade
de fazer descer a taxa de desemprego para os níveis do ano 2000 prova
que como estratégia é insuficiente para garantir a sustentabilidade
da economia e propiciar qualidade de vida e níveis de rendimento crescentes
aos caboverdianos. De facto, a par das boas palavras de Hillary Clinton,
Cabo Verde precisa, e urgente, de boas palavras de potenciais investidores,
boas palavras dos empresários e boas palavras dos utentes dos serviços
do Estado. Publicado pelo jornal A Semana de 2 de Outubro de 2009
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