Comemorou-se no passado dia 9 de Novembro o décimo quinto aniversário da Queda do Muro de Berlim. As imagens desse extraordinário dia ocuparam mais uma vez os ecrãs das televisões em todo o mundo. Milhões reviveram os momentos por que passaram no seu próprio país até conseguirem libertar-se do comunismo. Muitos outros milhões lembraram-se como a queda do Muro lhes trouxe esperança. Como regimes totalitários em todos os continentes de repente deixaram de meter medo e multidões derramaram-se nas ruas clamando pela Liberdade, pela Democracia e pelo direito a uma vida melhor, mais próspera, mais justa. Ao longo do 1989, nos então satélites da União Soviética, a revolução democrática já se tinha posto em movimento. Na Polónia, Lech Walesa, o líder do movimento sindical Solidariedade desde 1980, já tinha causado brechas suficientes no regime, abrindo caminho para um primeiro governo não comunista, em Setembro. Hungria, nos fins de Outubro, precipitava-se rapidamente em direcção ao multipartidarismo. Quase duas semanas depois da queda do Muro de Berlim, em Novembro, Checoslováquia viveu a sua Revolução de Veludo e o fim do jugo soviético. Na Roménia a experimentação comunista iria terminar de forma sangrenta com o fuzilamento de Ceaucescu e da sua mulher no dia de Natal. O ano 1990 arrancou com as imagens macabras dos Ceaucescu a assombrar todos os ditadores por esse mundo fora. Em Fevereiro, na União Soviética, o partido comunista deixou cair da Constituição o artigo 6º que o consagrava como força e guia da sociedade e do Estado. Dias depois, em Cabo Verde, o então partido único, o PAICV anunciava a abertura política. Num comunicado emitido a 19 de Fevereiro predispôs-se a abandonar a sua condição de força dirigente da sociedade e do Estado, o célebre artigo quarto, numa revisão constitucional a realizar-se na legislatura pós 1991. Eleições pluripartidárias só seriam realizadas em 1995. Samuel Huntington, o grande cientista político americano, considerou as democratizações em cadeia que se verificaram na sequência da queda do Muro de Berlim como parte de Uma Terceira Vaga de Democracia, que iniciara 25 anos antes com o 25 de Abril em Portugal. Cabo Verde falhou em apanhar a onda democrática de 1974. Por isso, em 1990, era um dos dominós em queda, no quadro do que Ken Jowit, recorrendo á analogia dos dinossauros, chamou da Extinção Leninista, ou seja, o desaparecimento repentino, acelerado e compreensivo de regimes leninistas em todo o mundo. A assinatura do Acordo de Independência de Cabo Verde a 19 de Dezembro de 1974 culminou acontecimentos, verificados no arquipélago poucos meses antes, que serviram essencialmente para entregar os destinos do país nas mãos de um único partido, o PAIGC. Uma cumplicidade tinha-se desenvolvido entre a cúpula desse partido e elementos chaves do Movimento das Forças Armadas (MFA), próximas do partido comunista português. Na sequência da denúncia de uma intentona contra os dirigentes do PAIGC, nunca provada, desencadeou-se, com a ajuda da tropa portuguesa, um movimento de supressão da oposição, da liberdade de expressão e do pluralismo. As forças políticas, UPICV (União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde) e UDC (União Democrática Caboverdeana) foram perseguidas e os seus dirigentes presos, enviados para o Campo de Tarrafal e posteriormente levados para o exílio em Portugal. As rádios calaram-se com a tomada da Rádio Barlavento em S.Vicente a 9 de Dezembro, passando a partir daí a transmitir a única voz do PAIGC. Para o Dr Almeida Santos, o negociador –mor da descolonização portuguesa e um dos signatários do Acordo, em entrevista concedida ao jornal Público de 11 de Abril de 2004, tudo se passou da seguinte forma:(…) os militares fizeram pressão para que houvesse descolonização rápida. Também houve um ultimato de lá para cá, a dar cinco ou oito dias para o Governo português entregar o poder ao PAIGC, sob pena de entregarem eles lá. (…) Chamei o Pedro Pires. Pedi-lhe que aceitasse uma consulta popular. Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face. Ganham a legitimação democrática do novo poder. Nunca mais será discutido. Se você o recebe da mão de militares, toda a vida será discutido. (…) Assinámos o acordo e ficou descolonizado Cabo Verde. Fiz uma lei eleitoral. Houve uma grande participação da população. Eles ganharam por 92 por cento. Elaboraram uma Constituição. Acabou. Salvámos a face". Com o Acordo consagrou-se o desvio dos caminhos da democratização iniciado pelo 25 de Abril. Enquanto Portugal ganharia uma Constituição liberal e democrática em 1976, Cabo Verde ficaria com um regime contrário ao exercício das liberdades e pouco eficaz em potenciar oportunidades e recursos disponibilizados para o desenvolvimento. Treze anos depois, em 1988, a cúpula do regime deparava-se com o fracasso das suas políticas económicas e com os sinais dos tempos evidentes nas políticas de perestroika (reestruturação) e glasnost (transparência) de Mikhail Gorbatchev na União Soviética. O III Congresso do partido, em 1988, com o lema um mundo em transformação, devia ser de fuga em frente. Perante a perspectiva de 40% de desemprego nas zonas urbanas num futuro próximo, expressa no Ante Projecto das Teses ao III congresso, pendia-se finalmente pela extroversão económica e pela atracção do investimento externo. Em resposta à pressão crescente para o exercício das liberdades ensaiava-se a introdução do conceito de sociedade civil, a par com a insistência nas organizações de massas. Mas, passado o congresso, tudo acabou por ficar, essencialmente, por aí: no campo das boas intenções. O partido voltou a insistir nos seus princípios leninistas de partido de vanguarda e de fidelidade ao centralismo democrático. A abertura económica viu-se bloqueada nas disputas ideológicas internas, reflectindo a desconfiança contra o sector privado nacional e o investimento directo estrangeiro. A ideia da sociedade civil, de acordo com João Pereira Silva, num artigo do jornal Tribuna de Março de 1990 ,“a questão política mais importante,... a questão da necessidade da existência de uma sociedade civil livremente organizada, [foi] ...resolvida por uma votação que cortou o debate a meio”. Uma segunda tentativa de fuga em frente viria verificar-se com a abertura política de 1990, sob a pressão irresistível de destruição do ecosistema que até ali tinha permitido a existência de regimes totalitários. Tarde demais. A dinâmica local e global era já outra e o regime iria cair a 13 de Janeiro de 1991. O facto de Cabo Verde esperar quinze anos para aderir à Terceira Vaga da democracia não custou ao País só em liberdades individuais. Também manteve incipiente a instituição de um Estado moderno e de Direito e impediu a constituição de um stock adequado de capital social e humano, hoje reconhecido como indispensável a um crescimento económico acelerado e à uma luta efectiva contra o desemprego estrutural. Países africanos como o Botswana e as ilhas Maurícias, que optaram por governos democráticos, um estado de Direito moderno e uma economia privada e de inserção dinâmica na economia mundial, deram saltos extraordinários. Dados oficiais coloca-os, hoje, respectivamente, nos 13000 e 12000 mil dólares per capita (PPP), enquanto Cabo Verde fica pelos 3400 dólares. Se se tiver em conta que, com a independência nacional, Bostswana partiu de uma base 80 dólares per capita e Cabo Verde de uma base de 200 dólares, vê-se o potencial de crescimento económico perdido. Poder absoluto, preconceitos ideológicos e falta de visão convergiram durante anos para atrasar o que podia ser uma evolução do País mais dinâmica, sustentada e abrangente. As sequelas desse atraso, não obstante as profundas reformas iniciadas a partir dos anos noventa, ainda se fazem sentir e constituem um extraordinário empecilho ao aproveitamento pleno das potencialidades do País e das oportunidades que recorrentemente aparecem. A Constituição da República, o contrato que une a comunidade de caboverdianos livres e obriga o Estado de Cabo Verde, os seus orgãos e os seus dirigentes, define como seus princípios básicos a soberania popular, o pluralismo de expressão e de organização política democrática e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais. A ética republicana exige que não se use a glorificação do passado como subterfúgio para imprimir uma nova vida a valores e princípios contrários à Constituição. Estão especialmente impedidos disso os titulares dos órgãos de soberania que juraram cumprir e fazer cumprir a Constituição. O passado deve ser visto à luz dos valores de hoje. Para que, quando evocado, a Nação se una, se engrandeça e se mobilize para construir o futuro de Liberdade e de prosperidade para todos.
1 comentário:
Seria fantástico se esse "contrato que une a comunidade de caboverdianos livres" tivesse sido referendado. Não concorda que foi um erro histórico que mancha o seu percurso?
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