A polícia judiciária procedeu a uma busca nalguns gabinetes e serviços da Câmara Municipal de S.Vicente no dia 27 de Abril. A PJ considerou necessária montar um cerco ao edifício da câmara e congelar durante mais de quatro horas o funcionamento dos serviços. Funcionários e utentes apanhados no local a tratar dos seus assuntos foram bloqueados à saída. Munícipes necessitados dos serviços da edilidade foram impedidos de entrar.
A intervenção policial em S.Vicente causou estranheza e perplexidade na ilha e no resto do País. A operação levantou sérios problemas quanto ao respeito pelo princípio da proporcionalidade na utilização da força policial.
Muitos questionam se, para os fins pretendidos com a busca, foi adequado desencadeá-la quando simples utentes presumivelmente sem qualquer relação com a matéria em investigação encontravam-se no edifício. E que, por isso, viram os seus direitos restringidos pelas autoridades policiais, confinados que foram ao espaço da Câmara sem capacidade de livre movimentação.
Também se questiona se era indispensável que a investigação fosse feita no horário normal de funcionamento dos serviços da câmara municipal. Se o objectivo das buscas era a captura de indícios ou factos no fluxo de dados ou na interacção dos serviços com os municípes durante o expediente diário. Porque só assim se pode explicar que, funcionando os serviços em horários único, não se fizesse a busca depois do expediente ou antes, notificando no momento e local certo e de forma coordenada os visados pelos mandatos de busca e poupando os outros funcionários, os eventuais utentes e a imagem da instituição.
Ainda se questiona se o aparatus e a disposição das forças policiais na definição de um perímetro de segurança à volta do edifício da Câmara Municipal contando, segundo alguns relatos, com suporte em standby de elementos da polícia militar, se justificava. Se era proporcional com a possibilidade de resistência que razoavelmente podia-se antecipar. Não parece que haja registos de sinais por parte dos visados nas investigações que podiam oferecer resistência de qualquer espécie. Pelo contrário declarações públicas proferidas em várias ocasiões por titulares dos órgãos municipais de S.Vicente convidavam a posturas mais proactivas das autoridades na investigação. Precisamente para que o mais rápido possível se chegasse ao completo esclarecimento de acusações feitas e consequente despolitização do processo.
Segundo órgãos de comunicação social no local, finda a busca, a polícia judiciária acabou por sair do edifício da Câmara Municipal com vários documentos e um computador. Para trás ficaram o stress e inconveniências provocados em funcionários e cidadãos durante as horas de confinamento. E também a forte beliscada na imagem da instituição Câmara Municipal de S. Vicente. Os tumultos populares, aparentemente considerados na montagem da operação e contra aos quais as forças da ordem se prepararam e se equiparam até o pormenor do colete à prova de balas, não aconteceram. Mas uma sensação de desnorte e descrédito parecia invadir todos os que presenciaram a cena e puderam constatar a forma ligeira, desrespeitosa e intimidatória como foi tratada uma instituição venerável de S.Vicente que é a sua câmara municipal. E para quê?
Não se cumpriram todos os mandatos de busca. A presidente da câmara municipal, quem oficialmente responde em juízo pelo órgão, esteve ausente. Mesmo objecto do mandato judicial não foi requerida a sua presença nem se procedeu à busca do seu gabinete. Para um observador de fora isso parece estranho e naturalmente que convida a interrogar que outros factores, que não os de eficácia, pesaram nas decisões tomadas, tanto na escolha do momento como em limitar o escopo da operação. Complica ainda mais as coisas o ataque, coincidente com a operação policial, deferido contra a câmara por elementos da estrutura local do partido que suporta o Governo, a questionar a legitimidade do presidente substituto da câmara municipal. Os mesmos que têm sido protagonistas das denúncias a conta-gotas, numa clara manobra de instrumentalização da Justiça e de incriminação e julgamento de pessoas e instituições, através da comunicação social.
A fonte na PJ citada pelo Jornal Asemana de 30/4/2010 deixou claro a multiplicidade de intenções que rodearam a acção policial: “ A operação foi espectacular, um sucesso. Mais tarde veremos os resultados. O mais importante em tudo isso foi mostrar que a PJ e o Ministério Público estão atentos a qualquer situação de criminalidade e têm total autonomia para investigar os processos que têm em seu poder”. Que se saiba não houve desmentido da PJ em relação a essas declarações. Supõe-se, então, que o móbil da operação foi fundamentalmente espectáculo, para mostrar autonomia. Os resultados vêm em segundo lugar. O problema que não se dá “show” de autonomia perante câmaras municipais, com as quais não há qualquer relação orgânica ou tutelar. Menos ainda com uma câmara da oposição sujeita à pressão do governo e a uma longa e perversa guerrilha dos responsáveis locais do partido que suporta o Governo. Muito pelo contrário.
Ninguém põe em causa que se faça investigação criminal e que se procure ser o mais eficaz. Mas às forças da lei exige-se que não se poupem em esforços para conduzir todo o processo com respeito pelos direitos das pessoas e a agir tendo sempre presente o princípio da proporcionalidade.
Na democracia o Estado detém o monopólio de violência e deve ser o garante do exercício pleno das liberdades e da segurança dos cidadãos. O Estado realiza-se no papel de garante da Liberdade e da Segurança posicionando as forças da ordem na primeira linha de defesa dos direitos dos cidadãos e da legalidade. Para isso mostra-se fundamental que crie e mantenha mecanismos institucionais múltiplos no interior e no exterior das forças de segurança para controlar abusos e manter as forças imunes à corrupção e impermeáveis a tentações de instrumentalização política.
O desafio que o assumir pleno desses papéis coloca ao Estado, no momento em que emergem novas e mais complexas ameaças, tende a passar de lado
Uma barreira levanta-se entre a população que exprime o sentimento de insegurança e o Estado que lhe dá em troca dados estatístico a provar que está enganada. “É só impressão” dizem as autoridades. Pessoas queixam-se de abusos da polícia, humilhações e mesmo de agressões nas esquadras e o Governo não responde, não comunica com a sociedade. Não diz se a polícia abriu um inquérito interno. Se a Tutela mandou sindicar a situação. Quais foram os resultados. Se houve processo disciplinar e/ou processo criminal. Se foi criado algum órgão para rever os procedimentos policiais com o fito de evitar essas situações. Se nos currículos na escola de formação da polícia está-se a pôr maior ênfase na capacitação para uma relação de confiança com a população.
O governo, ao não agir para pôr a Polícia a salvo de tentações de abuso de poder com meios institucionais adequados, falha na protecção da instituição policial, falha no incentivo a uma melhoria permanente dos métodos da instituição e falha em criar o ambiente indispensável de confiança entre a população e a polícia. Tudo isso tem custos. A polícia exige mais meios para compensar a falta de colaboração da população. A eficiência no uso dos meios diminui porque, devido à falta de feedback e de pressão institucional, não se revêem os procedimentos na acção policial para os adaptar às novas situações. A sociedade fica mais violenta porque as pessoas não confiam na polícia e agem por conta própria e a polícia é obrigada mais vezes a recorrer a violência para se impor e compensar a sua menor capacidade de dissuasão e de persuasão.
O abalar das instituições do Estado e também da sociedade civil tem um efeito corrosivo na sociedade. Os indivíduos ficam mais soltos, potencialmente mais violentos e menos propensos a aceitar pressões de grupo ou da comunidade para evitar incivilidades e comportamentos anti-sociais. Quando se organiza Fórum para reflectir sobre a violência, um ponto importante devia ser avaliar em que medida certas políticas e acções das autoridades concorrem para abalar o tecido social e dissolver os laços que ligam os indivíduos às suas comunidades.
A humilhação a que foi sujeita a Câmara Municipal de S. Vicente claramente não serviu o interesse da comunidade nacional de elevar o respeito pelas instituições públicas. Serviu outros interesses que não os de uma investigação criminal que se quer sempre eficaz, discreta e conclusiva. Serviu interesses de espectáculo e de demonstrações “macho” para outrem. Foi aproveitado para mais uma machada política no quadro de uma guerrilha que vem de longe. Fragilizou as instituições envolvidas.
Espera-se que a Justiça seja feita para que a dignidade das instituições públicas seja reposta.
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