O Primeiro-Ministro José Maria Neves em declarações à RCV disse que os consensos obtidos em relação ao estatuto dos titulares dos cargos políticos “estão a ser postos em causa designadamente pelo PAICV cujos dirigentes e militantes destacados estiveram na linha de frente das manifestações”. A nova líder do PAICV, também em entrevista à RCV, confirma que a sua comissão política discorda de várias opções assumidas no diploma aprovado, nomeadamente a actualização salarial que “não teria sido socializada” com esse órgão político. A divergência de posições entre o chefe do governo e a presidente do partido é clara e aberta. O jogo político já ultrapassa as fronteiras do partido e já foi para a rua: uma parte acusa a outra de estar à frente de manifestações e a outra responde que há que ouvir os protestos das pessoas.
Como fica a governação do país se a líder do partido que deve suportar o governo está aparentemente em colisão directa com o governo. Como conciliar a situação do PAICV como partido maioritário se a direcção do partido e a sua bancada parlamentar dão sinais de estar de costas viradas. Uma consequência desta situação pouco usual já é visível. Segundo o PM, no que respeita ao estatuto dos titulares dos cargos políticos, o consenso que já vinha desde 1997 foi agora posto em causa e teremos de repensar tudo isto e eventualmente até determinados aspectos da vida política nacional, ou do sistema político, designadamente o sistema eleitoral, o financiamento dos partidos políticos, o financiamento das campanhas eleitorais, etc.
Uma outra consequência poderá verificar-se no futuro próximo. Se se verificar um veto presidencial ao diploma legislativo, como irá proceder a direcção do PAICV? Irá trabalhar contra a vontade prevalecente na sua bancada parlamentar e no governo para evitar que haja uma maioria que confirme os estatutos aprovados? Por quanto tempo se poderá suportar a fricção aberta entre a liderança do partido e a presença institucional do partido no parlamento e no governo?
Num editorial recente este jornal chamou a atenção para o facto excepcional de o chefe do governo não ser chefe do partido. Argumentava-se que tensões podiam surgir entre membros do governo que foram rivais na luta pela liderança ou entre o novo líder do partido e o antigo líder que ainda se mantém com chefe do governo. Em qualquer das situações haveria uma perda inequívoca da eficácia do governo com o desenvolvimento de lealdades paralelas que inevitavelmente acabariam por surgir. Apontamos então que por uma outra via podia-se repor a estabilidade, previsibilidade e transparência no exercício do poder: ou o primeiro-ministro demitia-se e entrava o novel presidente numa posição cimeira no governo ou então o governo ainda por ele chefiado renovava a sua relação com a maioria parlamentar através de uma moção de confiança. Não tendo ido por uma ou outra via é que se chegou à situação actual de corte caricato entre o partido, detentor da maioria dos votos nas últimas eleições legislativas, e a sua bancada parlamentar. No mesmo sentido se constata a falta de sintonia e de articulação com o governo.
As manifestações populares na capital e em várias outras ilhas, pela juventude dos participantes, exuberância demonstrada e paixão colocada nos protesto têm “efeito de gasolina” neste ambiente político em rubro. O facto de serem raras – a última manifestação com fortes tonalidades políticas provavelmente aconteceu em 2006 contra a Electra então dirigida pela empresa portuguesa EDP – os governantes e em geral os políticos desabituaram-se com o descontentamento visível e ruidoso dos cidadãos. Quando se deparam com protestos mais vigorosos não dão a aparência de serenidade que é fundamental para o funcionamento do sistema político e da sociedade. Na verdade, não se pode deixar de ouvir as pessoas, mas também ninguém governa a partir da rua.
A extrema sensibilidade e mal-estar demonstradas perante o que o PM chamou de actualização já tardia dos salários dos titulares de cargos políticos fixados em 1997 revelam o quanto as pessoas percebem que vivem num ambiente de soma zero. O que é ganho para ti, deve ter sido subtraído de algum outro. Em ambiente de fraco crescimento, desemprego elevado e diminutas oportunidades, a desconfiança mútua aumenta, cresce o desespero e a falta de confiança nas instituições aprofunda-se. Cabe aos governantes e aos representantes legítimos do povo manter a sociedade inclusiva, combater a impunidade e renovar a crença num dia melhor derivado do trabalho e da capacidade de cada um dos seus membros.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 1 de Abril de 2015
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