segunda-feira, setembro 25, 2017

Qualidade requer nova atitude

Arrancou um novo ano lectivo e os votos de uma nova largada na Educação em Cabo Verde são mais uma vez renovados pelas entidades oficiais em várias cerimónias públicas. A enfase este ano é posta na qualidade do ensino acompanhado de apelos à excelência e à inclusão. O ministério da Educação, como de costume, aproveitou para apresentar as suas inovações nos curricula. No ano passado, as novidades foram o alargamento do ensino bilingue e a introdução de cursos de empreendedorismo no ensino secundário. Este ano, para além de se integrar formalmente o pré-escolar no sistema, procura-se focalizar no ensino das ciências e da matemática, desenvolver competências no domínio do inglês e do francês e introduzir o mandarim e ainda alargar o ensino obrigatório ao sétimo ano de escolaridade. Como nos anos anteriores, levantam-se mais uma vez grandes expectativas de ganhos para as pessoas, para as famílias, para a economia e para o país em razão do esforço de investimento na educação por parte do Estado, mas também das famílias e dos próprios educandos que acreditam que é essa a principal via para mobilidade social e para o sucesso e prosperidade. A realidade em termos de resultados porém não tem sido precisamente essa, e para muitos que se vêem sem emprego  e sem outra opção de vida tem-se revelado como uma grande decepção e uma fonte de frustração.
Cabo Verde é um pequeno país sem recursos naturais apreciáveis. O seu único recurso real são as pessoas e a aposta óbvia deve passar pelo investimento no capital humano  e fazer do nível de educação das suas gentes um factor importante da atracção do investimento externo, da competitividade do país e da produtividade da economia. Se países maiores e com recursos muito superiores assim o fizeram, mais razões para ir por esse caminho têm os países pequenos e desprovidos de riquezas naturais. Sabem que a verdadeira riqueza das nações não está no que facilmente se pode extrair e vender, mas sim na capacidade de se organizar para a produção de bens e serviços com qualidade e eficiência e de manter-se capaz de inovar nos produtos e nos processos  por forma a garantir competitividade externa. É o que se nota sempre que se publicam indicadores internacionais de excelência na educação onde imediatamente se pontificam nos primeiros lugares países como Singapura, Taiwan, Finlândia, Estónia, Dinamarca, Irlanda etc….Ora, Cabo Verde na posição 123 no Index de Educação das Nações Unidas claramente que fica muito aquém do que seria de esperar. Já um outro pequeno país, as Maurícias, ocupam a posição 63 e são visíveis os avanços: passou do índice 0.574 no ano 2000 para 0.718 em 2013 enquanto Cabo Verde no mesmo período evolui de 0.442 para 0.483, ou seja, praticamente estagnou, particularmente em 2011, 2012 e 2013. 
 O Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) num estudo recente estima em 20% do orçamento anual do Estado os gastos que consistentemente Cabo Verde tem feito desde 1975 no sector da educação. E isso sem contar com os sacrifícios enormes suportados pelas famílias para manter os filhos na escola. Mas, como se pode ver pelos resultados, o retorno do extraordinário investimento que é realizado não tem sido o melhor, nem o desejado. É verdade que se conseguiu quase que erradicar o analfabetismo, levar o ensino secundário a todos os concelhos e conseguir a duvidosa proeza de, em cinco anos, se ter 10 universidades a funcionar. Preferiu-se massificar e não prestar a devida atenção à qualidade do ensino. Quando o aparelho do Estado - com todas as suas ramificações na administração pública, nos institutos e empresas públicas - deixou de poder absorver pessoal saído das escolas, não havia economia, tornada competitiva entre outros factores, pela existência de mão-de-obra especializada ou bem formada, para os ocupar. A partir de um certo momento deixou de ser possível manter os jovens no sistema de ensino transitando-os do ensino básico para o secundário e por fim para as universidades e o resultado foi o acumular de pessoas classificadas que, segundo o INE, já constituem 36,3% dos desempregados.
É fundamental procurar saber por que, apesar dos enormes investimentos do Estado e dos particulares no ensino não se tem os resultados pretendidos nem ao nível de capacitação da mão-de-obra, nem tão pouco da acumulação de conhecimento, de experiência técnica e de capacidade tecnológica que poderia levar à emergência de uma verdadeira sociedade de conhecimento e ao estabelecimento das bases para a inovação. Não faltando escolas nem professores, a falha deverá residir algures no que se podia chamar de ecossistema da educação. Como dizia Hillary Clinton: “It takes a village”. De alguma forma o esforço dos vários intervenientes, professores, alunos e pais não deverá estar a ser potenciado porque não encontra o ambiente propício a isso, nomeadamente um ambiente que valorize o conhecimento, reconheça o mérito, fomente a liberdade intelectual e compense devidamente o espírito de iniciativa, os arrojos de criatividade e o gosto pelo risco. Ninguém deve esperar que os alunos tenham o gosto pela leitura e sejam abertos a ideias novas se nas escolas há gerações de professores e alunos que estudaram com base em apontamentos enquanto os manuais eram sistematicamente evitados tanto por uns como por outros. Ou então que o ensino e a proficiência dos alunos a português dê sinais de melhoria quando a língua portuguesa é hostilizada, porque considerada empecilho na relação entre o professor e o aluno e bem no fundo algo perturbador da identidade do cabo-verdiano.
A verdade é que o sistema de ensino tarda em perder muitos dos tiques do aparelho ideológico que assumiu nos primeiros quinze anos da independência e em que primou pela massificação e pelo igualitarismo sacrificando a qualidade e a excelência. Neste aspecto não tem ajudado o facto de a classe dos professores se ter constituído num campo de batalha para os interesses político-partidários onde todos querem ser hegemónicos e que em boa medida se sintam isentos de pressão para uma real mudança no sector. Por outro lado, o facto de a competência técnica ser em geral subordinado a factores entre os quais políticos e clientelares em matéria de nomeações para alto cargos, desde que no acesso inicial se cumpra o requisito inicial do diploma, tem efeito inibidor do impulso pelo saber, da vontade de superação permanente e até de as pessoas se destacarem pelas ideias, iniciativas e posicionamentos críticos.
É evidente que com estes constrangimentos dificilmente se pode construir uma sociedade que vá ganhar dinamismo como base na troca livre de ideias suportada por um ecossistema aberto ao novo, constantemente a contestar as suas premissas e pronta a valorizar formas criativas de abordagem dos problemas. Mas esse é o caminho que se terá que fazer para que haja retornos adequados ao investimento na educação e para que o país tenha a possibilidade de valorizar o único recurso que realmente possui e fazer dele o verdadeiro motor da sua prosperidade e sustentabilidade futura.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 825 de 20 de Setembro de 2017.

segunda-feira, setembro 18, 2017

A ficar para trás

A decisão da semana passada da Autoridade Reguladora para as Comunicações (ANAC) em suspender o produto “D´Kel Bom” da CVMóvel suscitou reacções negativas a começar pela própria operadora de telecomunicações que estranhou em comunicado as acusações que estaria a praticar preços abaixo do preço mínimo. Da generalidade dos clientes que já se viam com um pacote apetecível incluindo voz e dados na internet, a reacção veio com particular azedume quando se viram impedidos de aceder ao novo serviço. A ANAC justificou-se realçando o seu papel na defesa do princípio da concorrência e nesse quadro com a preocupação em proteger o equilíbrio económico-financeiro dos prestadores de serviços regulados. Ao que os outros contrapõem onde é que ficam salvaguardados o direito dos consumidores a terem produtos com melhor preço e qualidade e a motivação para a inovação, factor essencial para se continuar a manter uma economia dinâmica, moderna e produtiva. 
Interrogações sobre o papel das reguladoras normalmente surgem sempre que os consumidores parecem ficar a perder e um ou mais operadores aparentam ficar em vantagem. O argumento de que se está a proteger o ambiente de concorrência não colhe completamente quando paira a dúvida se, com a medida específica tomada, não se está a prejudicar os consumidores e a pôr em causa a inovação. Garantir a concorrência justifica-se enquanto mecanismo essencial para se ter produtos conseguidos de forma eficiente, para dinamizar a economia e para propiciar ao consumidor o direito de escolha. Não é um fim em si mesmo. É mais um instrumento do progresso e de dinâmica dos mercados assim como analogamente a selecção natural é o mecanismo que possibilita a sobrevivência e a evolução da espécie. E é vendo pelos resultados que se pode avaliar se está ou não a resultar. 
É verdade que num mercado com as características de Cabo Verde foi um grande feito ter conseguido romper com o monopólio anterior da CVTelecom e abrir o espaço para a concorrência entre pelo menos dois grande operadores a Unitel T+ e a CVMóvel.  Os consumidores, a economia e o país globalmente ganharam com isso. A acção da agência reguladora ANAC foi fulcral no processo. Hoje, como bem reconhece a CVMóvel no seu comunicado, há equilíbrio de mercado com a CVMóvel detendo uma quota à volta dos 56% e a Unitel T+ à volta dos 43. Para chegar a esse ponto houve a preocupação em manter a todo o momento o equilíbrio económico- financeiro das empresas. O estabelecimento de preços mínimos serviu para isso. Com a concorrência assegurada, o problema que se coloca actualmente é como manter o sector das telecomunicações vitalizado e a contribuir para mais crescimento e maior produtividade e competitividade da economia nacional. 
Os dados do INE dos últimos dois anos têm mostrado uma queda tendencial na contribuição das telecomunicações na formação do PIB nacional. Os resultados anuais das duas operadoras têm revelado quebras significativas. Tudo aponta que as perdas no volume de negócios deriva de, entre outros factores, do facto de o negócio da voz ter diminuído consideravelmente à medida que as pessoas usam os serviços over the top (OTT) como Viber, Messenger e Whatsapp para chamadas e envio de mensagens. Nos dados estatísticos da ANAC vê-se claramente essa tendência na diminuição do serviço de voz e não se nota que tenha sido compensada com outros negócios designadamente de televisão por assinatura ou de disponibilização de conteúdos via streaming. Pelo contrário, constata-se a quase estagnação de um negócio que noutras paragens tem ganho um dinamismo extraordinário propiciando às telecoms uma outra via para rentabilizar os investimentos indispensáveis para estarem à altura de satisfazer os desejos cada vez mais exigentes e mais sofisticados dos seus clientes. Com a falta de regulação e a insensibilidade das autoridades, a pirataria digital, as transmissões ilegais e outros negócios ilícitos têm impedido que serviços legítimos de fornecimento de conteúdo consigam singrar. Todos perdem como isso, a começar pelos consumidores que ficam limitados por serviços medíocres e sem garantia, mas também empresas do sector que nunca conseguem angariar procura suficiente e o país que fica para atrás, porque sem possibilidade de retorno não há investimentos para continuar a modernizar-se. 
Há mais de uma década que se fala de economia digital, das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e de fazer de Cabo Verde uma Cyber Island como as Maurícias. Como muitas   promessas de clusters, hubs, praças financeiras e centros de transbordo, tudo ficou no mundo da fantasia dos governantes. O sector das telecomunicações em declínio é um sinal forte de como mais uma vez uma oportunidade - a possibilidade de desenvolver uma economia digital capaz de exportar serviços através designadamente de call centers e outros BPOs, business processing operations - foi desperdiçada. E aconteceu porque ou se ficou pelos discursos, ou se definiu mal as prioridades ou não se investiu estrategicamente para educar as novas gerações e criar o ambiente necessário para desenvolver o tipo de economia que se tem revelado mais promissor em fornecer empregos de qualidade. 
Sem uma economia vibrante a fazer uso das estruturas das telecomunicações não é de estranhar as dificuldades já visíveis nas empresas do sector. E certamente que não será a agência reguladora que as vai proteger disso em nome da concorrência mas com prejuízo para os consumidores e para as inovações necessárias à modernização do país. Nas deliberações regulatórias há que haver uma ponderação adequada dos vários factores em jogo para que todos saiam a ganhar. Também impõe-se uma política mais clarividente das autoridades para que Cabo Verde não fique pelas ofertas da ZAP enquanto o mundo é conquistado pelo modelo de negócios da Netflix ou que se continue com o 3G enquanto ou outros preparam-se para o 5G em 2020 e que por causa de obstáculos diversos só recentemente se enveredou por fazer chegar a internet de grande velocidade às casas via fibra óptica.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 824 de 13 de Setembro de 2017.

segunda-feira, setembro 11, 2017

Orçamento das “soluções”

O Orçamento do Estado para o ano 2018 há mais de dois meses que é matéria de notícia nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais. O Ministério das Finanças (MF) arrancou com uma iniciativa inédita de pedir a entidades variadas designadamente associações empresariais, partidos políticos, sindicatos e organizações da sociedade civil, contribuições para a elaboração do orçamento. Não ficando por aí, o Ministro das Finanças a partir da primeira semana de Julho e até há poucos dias passou a receber pessoalmente contributos de personalidades diversas incluindo representantes de organizações internacionais, gestores de organizações financeiras, dirigentes comunitários e agentes culturais. Ultimamente o foco mediático sobre o processo de elaboração do OE virou-se para a chamada arbitragem política onde se reúnem o ministro das Finanças e o ministro de cada pasta acompanhados dos respectivos staffs. O objectivo das audições, segundo fontes do MF, é ter um orçamento inclusivo, realista de forma a englobar as sensibilidades e necessidades do país.
O problema com este exercício que parece configurar o que se faz no quadro dos orçamentos participativos é que não está previsto na lei de enquadramento orçamental. A Constituição é clara em matéria de elaboração do Orçamento do Estado. A iniciativa é da competência exclusiva do Governo que é quem tem todos os dados sobre as receitas e as despesas obrigatórias, define políticas de consolidação orçamental, de contenção do défice e de diminuição da dívida pública, estabelece as prioridades de investimento de acordo com o seu programa e os objectivos que prometeu realizar. A Assembleia Nacional através de uma lei de enquadramento orçamental votada por dois terços dos deputados define prazos, procedimentos e competências no processo da elaboração e aprovação do OE. A importância do orçamento como instrumento central da acção governativa e da sua coerência programática é realçada pela exigência de disciplina partidária no processo de votação que o partido que suporta o governo impõe aos seus deputados. E há razão para isso: a não aprovação do OE pode levar à queda do governo e a novas eleições. 
Considerando as limitações impostas pela Constituição e pela lei, abrir o orçamento para a participação alargada de entidades e personalidades públicas e privadas não vai mudar significativamente a sua orientação, as suas prioridades e os seus objectivos. Mesmo que essa fosse a intenção do governo, as receitas limitadas e a rigidez de grande parte das despesas não deixam muito espaço orçamental para acomodar a generalidade das sugestões e contributos a ponto de todos se reverem no orçamento aprovado. Há aqui um risco político a vários títulos que o governo pode estar a incorrer com o levantar de expectativas de instituições, de operadores económicos e de vários sectores da sociedade. Se forem defraudadas particularmente num orçamento que é oficialmente apresentado como o de “soluções definitivas” para vários problemas, as consequências podem ser gravosas, eventualmente afectando a confiança, a disponibilidade em apoiar reformas e mesmo a vontade em identificar e aproveitar novas oportunidades. Aliás, já antecipando o que pode vir a acontecer, já vieram alguns avisos de representares das câmaras de comércio.  
Os múltiplos e complexos constrangimentos do país à partida não aconselham que seja no processo de elaboração do orçamento que se deva procurar a melhor via para reunir consensos, criar vontades e mobilizar a sociedade para consecução de objectivos. No texto inicial da Constituição de 1992 e mesmo após a revisão de 1999 previa-se a possibilidade de a Assembleia Nacional aprovar as Grandes Opções do Plano a partir de proposta do governo. A antecipar o debate parlamentar, além do parecer obrigatório de órgãos como o Conselho para Assuntos Regionais, actualmente incorporado no conselho económico-social, havia espaço para discussões múltiplas com vários sectores da sociedade e audições públicas organizadas tanto pelo governo como pelo parlamento. Foi o que aconteceu com as Grandes Opções do Plano de 1997-2000 e posteriormente em 2002-05. Faz todo o sentido que os consensos e as vontades sejam criados num processo envolvendo o parlamento onde as opções de desenvolvimento são debatidas e aprovadas e depois encontram expressão financeira em orçamentos anuais ou plurianuais porque aí estão legitimamente representados todos os cidadãos no seu pluralismo e na diversidade dos seus interesses.
Procurar inovar em matéria de elaboração do Orçamento sem pelo menos alterar a lei de enquadramento orçamental não é certamente a melhor via para o chamado “orçamento inclusivo”. Além de se correr o risco de defraudar expectativas que naturalmente surgem no contacto directo com o titular das finanças pode-se estar a contribuir para alimentar o modelo do Estado distribuidor de recursos, em detrimento do Estado promotor do ambiente propício à criação de riqueza. Também seria de esperar que as arbitragens políticas fossem feitas no âmbito do conselho de ministros e presididas pelo primeiro-ministro. O orçamento é do governo. Fazer diferente leva a interpretações complicadas como a feita na página de Facebook do ministério das infra-estruturas em que num post se diz que o “Ministério das Finanças tem sido um parceiro estratégico do Ministério das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação garantindo o financiamento através do Orçamento de Estado para os projectos e programas de todos os sectores deste ministério”.
Nunca é demais relembrar que a democracia é procedimental e que o seu funcionamento equilibrado depende de todos os seus órgãos e instituições a funcionarem no quadro das suas competências próprias. Fazer política é fundamental para se realizar os objectivos da colectividade, motivar as pessoas e criar as condições para a prosperidade de todos mas deve ser feita estritamente no quadro constitucional e legal existente. Inovações que ultrapassam esse quadro só trazem problemas, sem nada resolver.   

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 823 de 06 de Setembro de 2017.

sexta-feira, setembro 01, 2017

“Direitos humanos não vão de férias”



Neste mês de Agosto, o grupo Jovens pela Paz lan­çou uma iniciativa de pro­moção dos direitos humanos sob a bandeira “Direitos humanos não vão de férias”seguindo o slogan das Nações Unidas em 2016 “os valores humanos estão debaixo de ataque” e “devemos defender a nossa humanidade comum”. Com a leitura e distribuição da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) juntos dos jovens nas zonas balneares, no Sucupira e nou­tros sítios onde com mais fre­quência se encontram, o gru­po pretende contribuir para “uma cultura de paz e sã con­vivência entre as pessoas”. O que o grupo visa com essa acção cívica de grande alcan­ce está em plena concordância com a Constituição da Repú­blica que logo no n.1 do artigo 1º “reconhece a inviolabilida­de e a inalienabilidade dos di­reitos humanos como funda­mento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça”. Pena que ainda subsista no país posicionamentos públi­cos que – por não assumirem que o Estado em Cabo Verde nem sempre respeitou os di­reitos humanos e que isso teve consequências trágicas para muita gente – não favorecem o florescimento de uma cultu­ra de defesa intransigente dos direitos fundamentais junto das instituições e da própria sociedade.
A constituição cabo-ver­diana em vigor desde 25 de Setembro de 1992 tem um ca­tálogo de direitos, liberdades e garantias que directamente se inspiraram na declaração universal dos direitos huma­nos produzida na sequência da Revolução Francesa de 1789 e também do Bill of Ri­ghts de 1791 que com o texto da declaração da independên­cia completam a constituição americana de 1787. O mesmo acontece com a generalidade das constituições liberais e de­mocráticas que depois da se­gunda guerra mundial e na se­quência da chamada terceira vaga de democracia que cul­minou com a queda do Muro de Berlim foram adoptadas por países que deixaram para trás os anos de má memória de regimes autoritários e tota­litários. A universalidade des­ses direitos e a atracção uni­versal que tendem a exercer sobre todos os oprimidos, os privados de liberdade e as ví­timas da injustiça fazem com que tenham muitos inimigos.
Hoje é uma realidade ines­capável que os direitos huma­nos estão sob ataque, e não só nos países tradicionalmente autoritários, mas também nas velhas e novas democracias. Há quem como Viktor Orban, da Hungria, que assume fron­talmente que quer construir uma democracia iliberal, ou Erdogan, na Turquia, que faz a democracia recuar dé­cadas com as suas reformas supressoras do pluralismo, da liberdade de imprensa e da independência dos tribu­nais. Há quem também usa a ameaça terrorista e a presen­ça de imigrantes e refugiados para criar legislação e instituir procedimentos de polícia que na prática atentam contra os direitos humanos. O perdão do crime de desrespeito pelo tribunais dado por Trump ao xerife do Arizona Joe Arpaio é um exemplo de como medi­das de minimização do poder judicial e legislação restritiva de direitos em nome da segu­rança podem conjugar-se para fazer da democracia o que ela não deve ser: o reino da dis­cricionariedade e da arbitra­riedade, onde nem todos são iguais perante a lei e o acesso à justiça é condicionado.
Resistir a essa ofensiva contra os direitos humanos deve ser a tarefa de todos. A iniciativa do grupo Jovens para a Paz e outras acções si­milares de sensibilização de jovens e da sociedade devem ser apoiadas. Não deve haver recuo em relação aos ganhos civilizacionais conseguidos com a instituição do Estado de Direito Democrático e com a consagração dos direitos fundamentais que nem po­dem ser matéria de revisão constitucional. Nesta luta, a preservação da memória do que aconteceu com as pes­soas, com a sociedade e com o país quando os direitos huma­nos não eram respeitados em Cabo Verde devia ser funda­mental. Mas não é.
Estranhamente, o Estado e todos os órgãos de soberania omitem-se e fazem por esque­cer que, por exemplo, em Ju­nho deste ano completaram­-se 40 anos do assalto violento das autoridades do regime de partido único em S.Vicente a dezenas de pessoas simples e pacíficas que não cometeram qualquer crime. Também não dão sinal que a um dia de mais um aniversário vão recordar com o devido destaque os acontecimento de 31 de Agos­to de 1981. Muito menos ain­da - depois de mais 26 anos de regime democrático - há qual­quer tipo de reconhecimento, de indemnização ou de sim­ples pedido de desculpa dirigi­do aos que foram directa e vio­lentamente vítimas do Estado e dos seus agentes durante os quinze anos de partido único. O contraste com o tratamento dado aos oficialmente consi­derados combatentes deixa qualquer pessoa perplexa. No BO de 11 de Julho de 2017 fo­ram “reconhecidos” mais 74 combatentes que terão direito a privilégios múltiplos entre os quais a possibilidade de uma pensão mensal do Estado até 75 mil escudos.
De facto, os direitos huma­nos “não devem ir de férias nem tão pouco perder a me­mória” do mundo e das cir­cunstâncias que antes os ne­garam. Haverá sempre pres­são para os restringir, para os secundarizar ou considerá-los empecilhos na prossecução de um suposto bem maior. A memória, a história e a cons­ciência da centralidade da dig­nidade humana devem consti­tuir um escudo impenetrável a qualquer ataque contra os direitos fundamentais e um travão efectivo a tentativas in­sidiosas de os limitar, sob que pretexto for.

         Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 30 de Agosto de 2017