sexta-feira, setembro 28, 2018

Ser consequente na defesa dos direitos humanos

Este ano de 2018 celebra-se em todo o mundo o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos direitos humanos. As comemorações em vários países convergem para 10 de Dezembro, o dia em que em 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou por esmagadora maioria a carta dos direitos humanos. Em Cabo Verde a passagem de mais um aniversário da Constituição – aconteceu ontem, dia 25 de Setembro – é um bom momento para relembrar a importância dos direitos humanos. Foi em 1992 que tais direitos se viram efectivamente integrados na Lei Magna de Cabo Verde. Na Lei de Organização do Estado (LOPE) aprovada em 1975, logo a seguir à independência, foram simplesmente ignorados. A Constituição de 1980 já os registou, mas restringiu-os de seguida sujeitando-os aos ditames da lei ordinária (art. 47) e proibindo o seu exercício contra as instituições do regime de partido único (art. 34º).
O Mundo sentiu a necessidade da uma decla­ra­ção solene dos direitos humanos na sequência dos horrores da segunda guerra mundial e em particular do profundo choque que foi conhecer a forma sistemática como o Estado nazi agiu para esmagar indivíduos e proceder ao aniquilamento de grupos étnicos, com destaque para os mais de 6 milhões os judeus liquidados nos campos de concentração de Auschwitz, Dachau e Treblinka. Às víti­mas da ferocidade nazi jun­taram-se depois os muitos milhões enviados pelo comunismo para os gulags e os campos de reeducação para relembrar da importância de se salvaguardar os indivíduos da prepotência e violência do Estado. A Magna Carta forçada ao rei inglês João, há mais oitocentos anos, já era sinal dos tempos que o exercício do poder deveria verificar-se dentro da lei e que os indivíduos em caso algum devem ser atropelados nos seus direitos. Séculos depois a declaração dos direitos humanos da revolução francesa e a Bill of Rights americana serviram para consolidar o princípio de que democracia é um governo de poder limitado em o que governo além de se sujeitar à lei na prossecução dos seus objectivos deve respeitar os direitos do indivíduo, não os comprimindo em caso algum.
Em Cabo Verde a inexistência de direitos fundamentais estabelecidos, ou de sensibilidade para os defender, abriu caminho para todas as espécies de abusos. Vítimas do regime ao longo dos anos podiam ser encontradas em todas as ilhas, acusadas por crime de lançar boatos, ou presos por mais de três meses sem culpa formada, ou acusados de desobediência por reagirem a autorizações de saída e outros esquemas de controlo das autoridades. Em S.Vicente e S.Antão em particular várias pessoas foram torturadas e houve mortes. Nas outras ilhas aconteceu o mesmo, mas em menor escala. O regime sempre esteve preparado para responder a qualquer desafio ao poder da sua clique dirigente. Por isso é que considerá-lo como quase benigno, tomar os factos e o que aconteceu às vítimas como acidentes ou como excessos de militantes, só serviu para camuflar a sua natureza de sistema repressivo e iliberal instalado no país desde de 1975.
Em simultâneo, deixando de fora as instituições que constituíam esse sistema, não se motivou ninguém para pôr a fim a práticas e desalojar uma cultura institucional desrespeitadora dos direitos fundamentais nesses anos todos. Não é a toa que recorrentemente vêm à tona casos de violência policial, ou que se notam tensões entres os operadores de justiça devido a acusações múltiplas sobre quem é responsável pela falta de eficácia da Justiça. Assim é, em parte, porque o Estado nunca assumiu que torturou e matou. Mudam os governos e nenhuma entidade quer assumir a responsabilidade do Estado perante quem foram as suas vítimas. Mas na falta dessa assunção plena pelo Estado ao mais alto nível como se pode reorientar as instituições para abandonar as práticas anteriores e evoluir no sentido do que se espera no regime democrático.
Este ano de comemoração da declaração universal dos direitos humanos devia ser aproveitado pelos órgãos de soberania para, em nome do Estado, pedir desculpas pelo atropelos graves cometidos contra pessoas nos primeiros 15 anos após a independência, acompanhadas de eventual compensação para os que mais sofreram com a sua família a violência do Estado. Seria um acto de justiça e um acto consequente com a adopção da Constituição de 1992 que com todo o seu catálogo de direitos dos cidadãos foi uma clara reacção a ausência desses mesmos direitos no regime anterior. Também marcaria a disposição firme de lutar contra derivas iliberais que se vêm manifestando nas democracias, comprimindo os direitos dos cidadãos, atacando a independência dos tribunais e procurando condicionar os órgãos de comunicação social e a actividade jornalística na sua tarefa de escrutínio de todos os poderes.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.

quarta-feira, setembro 26, 2018

Com clareza ganha-se eficiência

Da Conferência Internacional comemorativa dos 20 anos da assinatura do Acordo de Cooperação Cambial entre Portugal e Cabo Verde saiu pelo menos uma novidade: O doutor João Serra, Governador do BCV, foi claro a defender que a adesão de Cabo Verde à moeda única da CEDEAO não vale a pena.
Justificou a sua declaração afirmando que “nós quase não temos relações económicas com a África: quer com a CEDEAO, quer com a África no seu todo. E continuou: “90% das nossas importações vêm da Europa, 90 das nossas exportações vão para a Europa, 90% das nossas remessas dos emigrantes vêm da Europa, 90% dos investimentos externos vêm da Europa” pelo que Cabo Verde não tem vantagens em alterar a sua ligação. O facto curioso é que insistiu em dizer que fazia a defesa dessa posição do “ponto de vista técnico”.
Os dois políticos presentes na abertura e no fecho da conferência, respectivamente o Vice-primeiro ministro e o primeiro-ministro, não aproveitaram a ocasião para clarificar qual é realmente a opção política definitiva quanto ao futuro da moeda nacional. Limitaram-se a apoiar o acordo cambial existente, mas relembrando o VPM o “enquadramento africano e a perspectiva de criação de moeda única africana” e o PM a necessidade da “âncora na Europa, mas sem prejuízo da integração regional”. Mesmo com os dados sobre as relações económicas com a África apresentados pelo governador do banco central a preferência foi manter uma posição ambígua sobre a matéria. Para revelar a sua posição o governador teve que se socorrer da sua condição enquanto técnico.
É evidente que o país nada ganha com a falta de clareza em questões fundamentais. Dissipam-se recursos, não se age estrategicamente e dificilmente se consegue manter a motivação e o foco da nação no que realmente precisa fazer para vencer os desafios do desenvolvimento. Várias serão as razões por que colectivamente se persiste nesta atitude tão perniciosa de não confrontar a realidade como ela se apresenta. Entre elas estará a sempre presente tentação de atirar os problemas para debaixo do tapete, como se aí desaparecessem ou se resolvessem por si próprios. Não deixarão de contribuir também os vestígios de amarras ideológicas e de sentimentalismos bacocos, que outrora serviram para legitimar regimes anti-democráticos e para sustentar engenharias sociais duvidosas, como projectos de construção de nações e do homem novo. Só assim se explica que, mesmo com a economia a funcionar em 90% com a Europa, quer-se é integração africana, e pouco interessa para o caso que o professor doutor João Estêvão, nessa conferência do BCV, tivesse demonstrado que desde do século dezoito a relação económica de Cabo Verde com África sempre foi marginal. Ou que recentemente, na sequência da rejeição da presidência cabo-verdiana da CEDEAO, o governo tenha achado por bem criar uma pasta ministerial de integração africana. Ninguém percebeu a estratégia por detrás dessa iniciativa. Talvez mais um caso de sentimentos a sobrepor-se a interesses.
Mais complicado ainda é que, sem se definir ao mais alto nível e sem ambiguidades o futuro da política monetária do país, se procure aprofundar o acordo cambial na perspectiva de aumentar a linha de crédito que suporta a convertibilidade do escudo caboverdiano. Inicialmente estimada em 50 milhões de euros, parece que hoje é considerada insuficiente não só porque a economia de Cabo Verde tem uma outra dimensão como, particularmente depois da liberalização de capitais, o BCV, segundo o governador na sua intervenção, perdeu a sua “função de prestamista de última instância”. O levantamento do controlo do movimento de capitais tem um preço: pode potenciar ataques especulativos à moeda cabo-verdiana. E como acrescenta o governador isso pode acontecer mesmo “num contexto de disciplina de disciplina macroeconómica”.
O aumento na linha de crédito de apoio cambial serviria também para apoiar em caso de acção de especuladores. O problema é se quem faculta a linha de crédito o faz contando com essa possibilidade e considerando os riscos inerentes. O economista americano Jeffrey Sachs, quando liderou a equipa técnica que dirigiu todo o processo de convertibilidade do zloty polaco nos fins dos anos oitenta e início de noventa, foi peremptório em dizer que a marca de maior sucesso do processo foi o facto de nunca ter sido necessário recorrer a linha de crédito criada para o suportar. Com isso reforçaram grandemente a confiança na sustentabilidade da convertibilidade do zloty. Nesta perspectiva, parece pior sugerir que alguma vez linhas de crédito similares sirvam para responder a ataques especulativos contra a moeda nacional. Ainda por mais, como é caso, quando não há clareza total do que se pretende no futuro com a “integração africana”.
Apesar das críticas vindas de vários quadrantes, optou-se por liberalizar completamente o movimento de capitais. Supõe-se que no processo de decisão tiveram em devida conta a história económica de vários países, em particular dos apanhados pela crise de 1997 e os problemas posteriores do Brasil, Argentina e Rússia, que aconselharam a manutenção de controlos na saída de capitais. No mesmo sentido aponta o caso recente da Turquia, que assistiu em poucos dias à queda do valor da sua moeda em 40%. No caso de Cabo Verde está-se para ver os influxos de capitais que a liberalização poderá facilitar e como os benefícios irão contrapor-se aos eventuais riscos. A vontade geral é que tudo corra bem. Para assegurar isso é importante clareza nas políticas, agir com pragmatismo e não deixar-se apanhar nem pela ideologia, nem por sentimentalismos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 877 de 19 de Setembro de 2018.

quinta-feira, setembro 20, 2018

Para quando a real descolagem?

Ultrapassado o meio do mandato (965 dias de um total de 1825) do governo de Ulisses Correia e Silva impõe-se que se faça uma avaliação dos resultados das políticas no país, em particular, no que toca à questão crucial trazida à liça no momento eleitoral de 2016.
Na eleições legislativas de então o que estava em disputa era quem conseguia transmitir confiança que com a sua maioria e as suas políticas conseguiria operar uma mudança estrutural na economia que permitisse ao país alcançar taxas de crescimento elevadas, mais de 7% ao ano, e também debelar o desemprego a curto e médio prazo, em particular para os jovens. O paradoxo da quase estagnação económica dos cinco anos anteriores enquanto se verificavam investimentos vultuosos de centenas de milhões de dólares designadamente em portos, aeroportos, asfaltagem de estradas e construção de habitação social deixou nas pessoas uma vaga sensação que algo de profundo teria que mudar no modelo de desenvolvimento e na forma de governar o país. Uma outra via teria que ser encontrada para vencer os grandes desafios do desemprego e da pobreza e manter a esperança que é possível construir uma base económica e institucional sustentável para se ganhar a batalha da prosperidade para todos.
A realidade económica dos últimos dois anos com taxas de crescimento de 4,7% em 2016 e 3,9% em 2017 pode não ser a mesma dos anos anteriores, mas ainda está longe da dinâmica prometida dos 7% ao ano. Não é por acaso que os efeitos nos rendimentos das pessoas ainda não se mostrem expressivos. As previsões de organizações internacionais como o FMI apontam para crescimento até 2020 de cerca de 4,1 %. Para alguns observadores o potencial de crescimento não foi alterado. Faltam realizar as reformas estruturais que, ao fazer o país mais competitivo e mais produtivo, poderiam elevar esse potencial. Nos anos 90 as políticas de liberalização da economia e de construção da economia de mercado elevaram extraordinariamente o potencial da economia abrindo caminho para taxas de crescimento que chegaram a atingir dois dígitos e que até 2007-2008 permitiram níveis de crescimentos dos mais altos registados na história recente do país.
Repetir a proeza de elevar o potencial não tem sido fácil. Resistência às mudanças abunda e os sucessivos governos têm falhado em transmitir às pessoas e à sociedade a enormidade da tarefa que é ultrapassar os constrangimentos que à partida se colocam numa economia pequena, fragmentada, com reduzida base produtiva e pouco diversificada. A invulgar rotação de ministros pelas pastas da economia e o facto de quase ninguém sair incólume dos múltiplos embates com os interesses instalados e que beneficiam do status quo devia indiciar o grau de dificuldade que é construir em Cabo Verde uma economia moderna, competitiva e com níveis elevados de produtividade. Neste particular é de relembrar que o governo de José Maria Neves em quinze anos teve sete ministros de economia e que o ministério da Economia criado pelo novo governo já se dividiu em dois em menos de dois anos, perdendo pelo caminho a favor do ministério das Finanças departamentos importantes como o de gestão de projectos e a tutela efectiva de empresas públicas em sectores-chave da economia nacional. Infelizmente, ou porque não se dá a devida importância à necessidade de reformas económicas, ou porque fica mais fácil manter-se no quadro do modelo de reciclagem da ajuda externa, mais ou menos disfarçado por retóricas desenvolvimentistas em voga nos fóruns internacionais, o que se constata geralmente é que o ministro da economia não tem o peso político que seria de esperar para fazer as reformas e enfrentar o sistema vigente.
A verdade é que se continua a não arregimentar vontade política favorável às reformas, a não combater os interesses instalados e a não tornar mais eficiente todo o processo produtivo mesmo sabendo que o futuro do país depende da economia que se souber construir. Não estranha pois que a reforma da administração pública, essencial para a diminuição dos custos de contexto, se tenha encalhado nas intermináveis discussões sobre a partidarização condimentadas com a bizarra questão das incompatibilidades. Não se pôs suficiente foco na procura de eficiência nos sectores de energia e água e no sistema de transportes com vista a baixar os custos. A atenção oficial, seguindo talvez modismos, centrou-se na inovação como se o país já tivesse instalada a infraestrutura física, institucional e humana para fazer dos avanços tecnológicos e de processos produtivos mais criativos o motor da economia nacional. A grande aposta no privado nacional deparou-se com as dificuldades quase congénitas de um sector que além de constrangido por um mercado exíguo e custos elevados de contexto viu-se a gravitar à volta de um Estado que insistia no papel de facultar acessos, de criar oportunidades e de influenciar decisões de negócios. Quando se pensou e se agiu junto do sector bancário como se o problema do sector privado fosse o financiamento, rapidamente se chegou à conclusão que a questão era mais complexa e que segundo o PCE da Caixa Económica, António Moreira, citado pela Inforpress, “os projectos e os promotores devem reunir as condições de financiamentos, de forma que os projectos sejam elegíveis o promotores credíveis”. Isso porque, segundo ele, o crédito vencido em Cabo Verde “é três vezes aquilo que é o nível da Europa” como resultado dos bancos terem aprovado “créditos cujo nível de risco não deveria ser aceite”.
Ainda com as mudanças na Administração Pública por fazer e o sector privado sem grande protagonismo, a economia continua apoiada no turismo e estimulada pela procura interna onde as transferências para os municípios jogam um papel importante. O problema é que os fluxos turísticos continuam controlados pelos grandes operadores em mais de 90% e direccionados para o mercado de Sol&Mar e aparentemente não se tem feito muito para diversificar a procura numa perspectiva de se impactar mais a economia nacional e de se contornar eventuais quebras no fluxo actual devido, por exemplo, à renovada concorrência da Turquia e dos países do Norte de África e também do Brexit que afecta o maior contingente de turistas que são os ingleses. Quanto à procura interna os efeitos das transferências para os municípios tendem a diminuir se não houver estratégias que criem uma procura efectiva para as ilhas.
Devia ser evidente que uma grande estratégia para atrair investimentos externo e integrar Cabo Verde na economia mundial através do aumento do fluxo turístico e da exportação de bens e serviços é fundamental para o país atingir os níveis de crescimento económico que precisa para se desenvolver. Não parece porém que suficiente importância se esteja a colocar nessa direcção. A impressão com que se fica é que maior esforço tem sido em incursões em direcção Europa, na perspectiva de ajuda, mas isso tem os seus limites. O mesmo se pode dizer da ofensiva junto à China que facilita o crédito mas traz mão-de-obra própria e material para as obras, o que limita imenso o impacto local da construção das infraestruturas, ficando o país mais endividado. Há que voltar a pôr o foco no que de facto se decidiu a 20 de Março de 2016: o país precisa crescer a mais de 7% para garantir o futuro e o governo tem a obrigação de dar a conhecer às pessoas as dificuldades reais e mobilizar vontade nacional para atingir esse objectivo. Mais de dois anos já se passaram. Não há mais tempo a perder.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 876 de 12 de Setembro de 2018.
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segunda-feira, setembro 10, 2018

Enfraquecimento das instituições

Depois de meses a assistir ao desgaste do parlamento devido, entre outros factores, à excessiva crispação das forças políticas, à duvidosa organização e gestão dos trabalhos parlamentares e às ausências prolongadas e injustificadas do primeiro-ministro em sessões sucessivas da Assembleia Nacional, o país depara-se agora com despiques públicos entre o Presidente da República e o governo.
É uma situação que não beneficia ninguém e muito pelo contrário tende a enfraquecer a imagem das instituições e a minar a confiança na democracia. Nos tempos actuais – em que a tentação populista na abordagem e resolução dos problemas associada ao acesso rápido e quase universal das pessoas às redes sociais põe especial desafio às democracias – todo o cuidado é pouco na gestão do processo político essencial para que o desenvolvimento do país se faça na liberdade e no pluralismo. O que menos se precisa é que se aumente e se aprofunde a descrença nos princípios e valores democráticos por razões ligadas à actuação de titulares de órgãos de soberania e de dirigentes políticos ávidos de protagonismo e pouco dispostos a seguir procedimentos já sedimentados, mesmo na nossa jovem democracia, nas relações entre o presidente, o governo e o parlamento.
A tensão entre o presidente da república e o governo, aparentemente à volta do SOFA, veio depois provar que afinal ela tem uma origem mais profunda que é de saber quem tem competência para dirigir a política externa do país. Pelas declarações feitas à TCV, no dia 20 de Setembro de 2017, apercebe-se claramente que o PR pensa que, por exemplo, no caso do acordo SOFA com os Estados Unidos da América o seu papel não deve ser apenas de ratificar o acordo depois de negociado e assinado pelo governo e levado ao parlamento para discussão e aprovação como parece estipular a alínea a) do artigo 136º da Constituição. O PR mostra-se convicto de que em matéria de acordos internacionais não deve apenas ser informado nos encontros regulares com o primeiro-ministro mas que deve “haver acompanhamento das negociações e até em certos casos o assentimento prévio do Chefe do Estado para que na altura da ratificação não haja situações..”. Prossegue suas declarações dizendo que a intervenção é “pedagógica” mas na realidade pela alusão ao “assentimento prévio” do PR em certos pontos negociais a impressão com que se fica é que pretende ter participação efectiva no processo.
É um facto que o PR tem um papel a desempenhar na política externa no âmbito da sua função de representação externa da República. Também é um dado assente que quem constitucionalmente dirige a política interna e externa do país é o governo. Desde os primórdios da Constituição de 1992 o regime democrático cabo-verdiano foi caracterizado como “parlamentarismo mitigado”. Diferentemente do semi-presidencialismo português, o governo em Cabo Verde não é responsável politicamente perante o presidente da república. Por isso estranha que haja quem pense que o PR em Cabo Verde possa ter competências ou protagonismo na direcção da política externa do país que nem no sistema português actual nem no sistema francês no quadro da coabitação Miterrand/Chirac e Chirac/Jospin, todos de pendor presidencial mais pronunciado, os presidentes da república pareciam ostentar. É só ver como na fotografia oficial da recente Cimeira da CPLP a dupla Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa protocolarmente se apresentava enquanto o PR cabo-verdiano se encontrava no centro com o PM Ulisses Correia e Silva distante junto à secretária executiva da CPLP. Não é essa a imagem que se tem, por exemplo, do presidente Miterrand e do primeiro-ministro Chirac nas cimeiras internacionais em que a França participava.

Exemplos que vêm de países recentemente democráticos, mas que já mostram sinais de crise e tendências populistas e autoritárias pronunciadas dão-nos conta de que tudo aparentemente começa quando partes do sistema político começam a bordejar as fronteiras das suas competências e acabam em incursões nas competências das outras. Ao reagir - seja no formato de aceitação de diminuição a que é sujeita, seja da luta que terá que fazer para se reafirmar – a parte agravada incorre no risco de ver a sua imagem diminuída, abrindo espaço para o desprestígio das instituições aos olhos dos cidadãos. Dos ataques que de há muito têm sido dirigidos à justiça e ao parlamento já se vêem as consequências. Com o governo e a presidência da república num terreno movediço que só pode levar ao desprestígio dos envolvidos, a situação só pode piorar. O ambiente de crispação política extrema em que a luta política tende a ficar pelas conveniências do momento e pela postura quase tribal dos militantes e activistas pode deixar o sistema sem defensor consequente perante as múltiplas ameaças que hoje se apresentam contra a democracia representativa e contra o Estado de direito.
Há que arrepiar caminho. Vários exemplos vindos todos os dias de fora dizem-nos que ataque aos media, à eficácia da justiça e ao parlamento não traz nada de bom para a democracia. Que também não é boa opção demonizar a oposição mesmo quando ela lá no íntimo se considera uma espécie de “Dono Disto Tudo” e mais preocupada em preservar o seu legado histórico do que em defender o sistema democrático. Há finalmente que defender as instituições e garantir que se tornem perenes e que sejam colocadas ao serviço de todos. Experiências democráticas confrontadas com derivas populistas ou autoritárias confirmam que só com instituições construídas sobre princípios e valores democráticos é que se pode ter esperança de combater os excessos de protagonismo e conter com eficácia a ameaça que parece pairar sobre todos e que servindo-se de fake news e do ilusionismo põem em causa os factos e a verdade, erigem a desonestidade, o tacticismo conveniente e o eleitoralismo como forma de fazer política e de conquistar e de se manter no poder.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 875 de 5 de Setembro de 2018.