O
Mundo sentiu a necessidade da uma declaração solene dos direitos
humanos na sequência dos horrores da segunda guerra mundial e em
particular do profundo choque que foi conhecer a forma sistemática como o
Estado nazi agiu para esmagar indivíduos e proceder ao aniquilamento de
grupos étnicos, com destaque para os mais de 6 milhões os judeus
liquidados nos campos de concentração de Auschwitz, Dachau e Treblinka.
Às vítimas da ferocidade nazi juntaram-se depois os muitos milhões
enviados pelo comunismo para os gulags e os campos de reeducação para
relembrar da importância de se salvaguardar os indivíduos da prepotência
e violência do Estado. A Magna Carta forçada ao rei inglês João, há
mais oitocentos anos, já era sinal dos tempos que o exercício do poder
deveria verificar-se dentro da lei e que os indivíduos em caso algum
devem ser atropelados nos seus direitos. Séculos depois a declaração dos
direitos humanos da revolução francesa e a Bill of Rights americana
serviram para consolidar o princípio de que democracia é um governo de
poder limitado em o que governo além de se sujeitar à lei na prossecução
dos seus objectivos deve respeitar os direitos do indivíduo, não os
comprimindo em caso algum.
Em Cabo Verde a inexistência de direitos fundamentais estabelecidos, ou de sensibilidade para os defender, abriu caminho para todas as espécies de abusos. Vítimas do regime ao longo dos anos podiam ser encontradas em todas as ilhas, acusadas por crime de lançar boatos, ou presos por mais de três meses sem culpa formada, ou acusados de desobediência por reagirem a autorizações de saída e outros esquemas de controlo das autoridades. Em S.Vicente e S.Antão em particular várias pessoas foram torturadas e houve mortes. Nas outras ilhas aconteceu o mesmo, mas em menor escala. O regime sempre esteve preparado para responder a qualquer desafio ao poder da sua clique dirigente. Por isso é que considerá-lo como quase benigno, tomar os factos e o que aconteceu às vítimas como acidentes ou como excessos de militantes, só serviu para camuflar a sua natureza de sistema repressivo e iliberal instalado no país desde de 1975.
Em simultâneo, deixando de fora as instituições que constituíam esse sistema, não se motivou ninguém para pôr a fim a práticas e desalojar uma cultura institucional desrespeitadora dos direitos fundamentais nesses anos todos. Não é a toa que recorrentemente vêm à tona casos de violência policial, ou que se notam tensões entres os operadores de justiça devido a acusações múltiplas sobre quem é responsável pela falta de eficácia da Justiça. Assim é, em parte, porque o Estado nunca assumiu que torturou e matou. Mudam os governos e nenhuma entidade quer assumir a responsabilidade do Estado perante quem foram as suas vítimas. Mas na falta dessa assunção plena pelo Estado ao mais alto nível como se pode reorientar as instituições para abandonar as práticas anteriores e evoluir no sentido do que se espera no regime democrático.
Este ano de comemoração da declaração universal dos direitos humanos devia ser aproveitado pelos órgãos de soberania para, em nome do Estado, pedir desculpas pelo atropelos graves cometidos contra pessoas nos primeiros 15 anos após a independência, acompanhadas de eventual compensação para os que mais sofreram com a sua família a violência do Estado. Seria um acto de justiça e um acto consequente com a adopção da Constituição de 1992 que com todo o seu catálogo de direitos dos cidadãos foi uma clara reacção a ausência desses mesmos direitos no regime anterior. Também marcaria a disposição firme de lutar contra derivas iliberais que se vêm manifestando nas democracias, comprimindo os direitos dos cidadãos, atacando a independência dos tribunais e procurando condicionar os órgãos de comunicação social e a actividade jornalística na sua tarefa de escrutínio de todos os poderes.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.
Em Cabo Verde a inexistência de direitos fundamentais estabelecidos, ou de sensibilidade para os defender, abriu caminho para todas as espécies de abusos. Vítimas do regime ao longo dos anos podiam ser encontradas em todas as ilhas, acusadas por crime de lançar boatos, ou presos por mais de três meses sem culpa formada, ou acusados de desobediência por reagirem a autorizações de saída e outros esquemas de controlo das autoridades. Em S.Vicente e S.Antão em particular várias pessoas foram torturadas e houve mortes. Nas outras ilhas aconteceu o mesmo, mas em menor escala. O regime sempre esteve preparado para responder a qualquer desafio ao poder da sua clique dirigente. Por isso é que considerá-lo como quase benigno, tomar os factos e o que aconteceu às vítimas como acidentes ou como excessos de militantes, só serviu para camuflar a sua natureza de sistema repressivo e iliberal instalado no país desde de 1975.
Em simultâneo, deixando de fora as instituições que constituíam esse sistema, não se motivou ninguém para pôr a fim a práticas e desalojar uma cultura institucional desrespeitadora dos direitos fundamentais nesses anos todos. Não é a toa que recorrentemente vêm à tona casos de violência policial, ou que se notam tensões entres os operadores de justiça devido a acusações múltiplas sobre quem é responsável pela falta de eficácia da Justiça. Assim é, em parte, porque o Estado nunca assumiu que torturou e matou. Mudam os governos e nenhuma entidade quer assumir a responsabilidade do Estado perante quem foram as suas vítimas. Mas na falta dessa assunção plena pelo Estado ao mais alto nível como se pode reorientar as instituições para abandonar as práticas anteriores e evoluir no sentido do que se espera no regime democrático.
Este ano de comemoração da declaração universal dos direitos humanos devia ser aproveitado pelos órgãos de soberania para, em nome do Estado, pedir desculpas pelo atropelos graves cometidos contra pessoas nos primeiros 15 anos após a independência, acompanhadas de eventual compensação para os que mais sofreram com a sua família a violência do Estado. Seria um acto de justiça e um acto consequente com a adopção da Constituição de 1992 que com todo o seu catálogo de direitos dos cidadãos foi uma clara reacção a ausência desses mesmos direitos no regime anterior. Também marcaria a disposição firme de lutar contra derivas iliberais que se vêm manifestando nas democracias, comprimindo os direitos dos cidadãos, atacando a independência dos tribunais e procurando condicionar os órgãos de comunicação social e a actividade jornalística na sua tarefa de escrutínio de todos os poderes.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.
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