quarta-feira, dezembro 26, 2018

Diálogo plural das ilhas

Bastas vezes ouve-se repetida a frase “Cabo Verde no seu processo de desenvolvimento encontra-se numa encruzilhada”. Em traços largos quer-se com isso dizer que o modelo de desenvolvimento até agora adoptado já se esgotou e há que encontrar outro caminho; que o país está sobrecarregado por uma dívida pública acima dos 125% do PIB e ainda não consegue crescer a taxas que seriam desejáveis para assegurar a sustentabilidade do desenvolvimento; e que se tornam cada vez mais notórias as deficiências estruturais em sectores-chave como a administração pública e a educação que afectam negativamente o ambiente de negócios, a empregabilidade e a competitividade do país.
 Completa a fotografia o facto notório que o turismo mesmo sendo o grande impulsionador da economia fica muito aquém do desejável no efeito positivo de arrastamento sobre o conjunto da economia que mostra ter noutras paragens. Perante a percepção, mais ou menos disseminada desde há alguns anos, de se estar quase a “patinar” sem poder ultrapassar os constrangimentos principais do país, a questão que se coloca é, como avisa o Banco Mundial no relatório-diagnóstico de Cabo Verde (SCD), se tudo isso não irá conduzir à exclusão social com possível impacto na criminalidade e à perda de coesão social com eventuais efeitos nocivos na estabilidade das instituições, na confiança no futuro e na crença na democracia.
Entretanto algo mais complicado poderá verificar-se. Quebra nas expectativas futuras das populações pode ter efeitos erosivos no que une a todos nas ilhas se se deixar que disputas por recursos se alimentem de frustrações e ressentimentos, uns apresentando-se como vítimas do centralismo e outros como alvo de discriminações passadas. Uma das consequências de o país nunca ter-se libertado da ajuda externa foi o agravamento das assimetrias regionais e a macrocefalia da capital. Uma outra, com repercussão ainda maior, foi a criação de uma mentalidade hostil a negócios, refractária quanto ao investimento privado e em particular ao investimento directo estrangeiro e de aceitação relutante do turismo. Virada para dentro, centralizadora e rentista, a atitude prevalecente das autoridades não permitiu que se completasse a reorientação da economia para atrair investimento estrangeiro e promover a exportação, precisamente a formula que permitiu a muitos pequenos países crescer, resolver o problema do desemprego e a se desenvolverem. A história passada e recente do país demonstra claramente a ligação causal entre a prosperidade nas ilhas com a ligação que se fizer com o mundo via exportações, serviços prestados ou turismo. Por isso fechar o país mesmo quando se faz conversa para inglês ouvir de atracção de investimento externo, significa de facto condenar as pessoas nas ilhas à uma pobreza estrutural da qual dificilmente têm conseguido escapar.
Da mesma forma simplificar a problemática do desenvolvimento reduzindo-a à questão da centralização sem perceber por que ela existe e o que a mantém, não ajuda. Pode-se abrir caminho para discussões intermináveis à volta da descentralização, da regionalização ou da simples desconcentração dos recursos, mas o facto é que mantendo o quadro actual dificilmente se conseguirá descentralizar. Pelo contrário, o mais provável é que a cultura administrativa burocrática e centralizadora prevalecente ao nível central se reproduza a nível municipal como todos podem verificar que já acontece e no futuro se manifeste a nível regional, se se efectivar a regionalização. É interessante que haja quase unanimidade entre os políticos em designar a centralização como a origem dos problemas. É evidente que convém a muitos políticos locais que os problemas com que se debatem na sua comunidade possam ser imputadas à acção de outras pessoas e resultam do poder estranho e distante. A forma mais primária de fazer política é socorrer-se de armas identitárias e incitar uns a resistir na luta contra o “outro”. Entra-se num jogo em que eleições são ganhas por quem for mais exímio em apresentar e manipular essas paixões. Para os votantes abre-se depois um longo caminho semeado de frustrações e ressentimentos e em que cada vez mais vão-se dar conta dos tiques de cacique e de autoritarismo dos políticos eleitos e em que o desenvolvimento prometido vai continuar a ser mais uma miragem.
É evidente que num país arquipélago como Cabo Verde permitir que se proceda desta forma não deixará de conduzir a situações em que todos perdem. O diálogo que deve existir entre ilhas é substituído por reivindicações extremadas em que cada vez mais haverá menos pejo em fazer uso de cartas identitárias para as justificar. Inversamente, menos enfase será posto no desenvolvimento a partir de uma perspectiva nacional, numa base estratégica do país e sempre com atenção que Cabo Verde é mais do que o somatório das suas ilhas. De uma convivência de séculos as ilhas participaram todas na produção do cadinho cultural de onde veria a emergir a ideia da caboverdianidade e a consciência da nação. O contracto social subsumido na Constituição reconhece isso e afirma a igualdade das ilhas. Não se pode deixar sem contestação a política que – em vez de fazer da diversidade das ilhas uma fonte de enriquecimento cultural e do diálogo plural em busca dos melhores caminhos para o desenvolvimento – se enverede pela vitimização, pelo ressentimento e por exigências de privilégios baseadas em razões dúbias e divisivas.
Na luta pelo desenvolvimento, um dos grandes combates a ser travado deve resultar na inflexão da tendência para se olhar para dentro como se o país tivesse dimensão para sustentar sozinho a dinâmica económica necessária. Ninguém tem, muito menos Cabo Verde que pelos seus números irrisórios em quase tudo, designadamente população, água disponível, terra arável e outros recursos não tem base para economias de escala. Mesmo que tivesse não seria suficiente. A ligação com o mundo em termos de capitais, tecnologia e mercados continuaria a ser imprescindível. Ficar pela bitola baixa que é a oferecida pela ajuda externa só podia conduzir a encruzilhadas difíceis de ultrapassar. Este é um tema que S. Vicente com a sua formação e desenvolvimento ligado ao mundo deveria sempre manter bem vivo no diálogo entre as ilhas. Como se vê, no Sal e na Boa Vista, dinâmica económica ganha-se com ligações das mais variadas e vantajosas com a economia mundial que se puder estabelecer. Mas considerando os aspectos negativos já conhecidos e ainda o facto do impacto do turismo ficar aquém do possível é fundamental que se deixe de ser passivo na relação com os  investidores. Há que ser proactivo e estratégico na atracção do investimento estrangeiro e firme, seguro e exigente na qualificação das pessoas.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 890 de 19 de Dezembro de 2018.

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