segunda-feira, abril 29, 2019

Educação sem peias

O 25 de Abril foi há 45 anos. A movimentação militar chamada Revolução dos Cravos que se verificou nesse dia determinou o fim de 48 anos do regime autoritário de Salazar/Caetano e abriu o caminho para a democracia em Portugal e para o desmoronamento do império colonial e independência das ex-colónias.
Para o cientista político americano Samuel Huntington foi a revolução que marcou o início da terceira onda de democracia e que, depois de passar por vários países entre os quais o Brasil nos anos oitenta, iria atingir o seu apogeu em 1989 com a queda do Muro de Berlim e posterior derrocada do império soviético e falência generalizada de regimes autoritários e totalitários em todo o mundo. Quatro décadas e meia depois para um outro cientista político e sociólogo americano Richard Fishman, numa entrevista ao jornal Público, o 25 de Abril foi o ponto de partida para de uma democracia que resultou de “uma fusão rara de revolução social, mudança cultural e democratização convencional”. Infelizmente para os cabo-verdianos o impacto do 25 de Abril só ficou pelas marcas também nas ilhas deixadas pela revolução social e as mudanças culturais que provocou. A liberdade e a democracia ficaram adiadas e só se concretizariam a partir dos anos noventa.
O desfasamento em Cabo Verde das vertentes social, cultural e política da movimentação de Abril acabaram por impactar negativamente todo o processo de desenvolvimento do país. No seu estudo comparativo das democracias portuguesa e espanhola, Richard Fishman chamou a atenção para o facto de em Espanha não se ter verificado a revolução social e o processo de transição ter sido ditado pelas elites sem a contribuição de baixo para cima das pessoas que em Portugal redefiniu a relação com a hierarquia social prevalecente. O resultado foi que, segundo o autor, até hoje a democracia espanhola é mais crispada e mais polarizada. Imaginem-se as consequências em Cabo Verde onde todo o processo político, social e cultural foi sequestrado pela lógica de poder do partido único. A contestação das hierarquias sociais existentes foi aproveitada para despromover e condicionar as elites locais cavalgando uma onda de igualitarismo que apenas permitia reverência para com “os melhores filhos do povo”, a elite emergente. A mudança cultural em curso - em vez de continuar na senda do aprofundamento da consciência da caboverdianidade agora que as pessoas se viam livre das peias do Estado Novo de Salazar - foi primeiro cooptada e depois subordinada à ideologia do pan-africanismo e da luta de libertação de onde o partido único retirava a legitimidade do seu poder. O corte com o passado do país que tal via pressupunha acabou por ser real e prenhe de consequências, mas não completo. Sempre que era restabelecido era para procurar selectiva e convenientemente acontecimentos, factos e realizações que justificassem o presente e demonstrassem a sua inevitabilidade.
A corrida para a modernidade e à frescura de ideias que deviam advir com o 25 de Abril rapidamente colapsaram perante um regime que se mostrou inimiga das liberdades, que rapidamente virou o país para dentro com as suas políticas sócio-económicas e reorientou-o para o cumprimento de um mítico destino africano. A adopção de um modelo de desenvolvimento com base na reciclagem da ajuda externa garantiu sustentabilidade e legitimidade ao regime na base de uma suposta boa gestão dos recursos postos à disposição pela comunidade internacional. Na realidade, por um lado atrasou o país em relação a outros como as Maurícias e as Seicheles que optaram por uma economia aberta ao mundo e se abriram ao investimento directo estrangeiro e ao turismo e incentivaram as exportações. Vê-se o atraso na diferença de três ou mais vezes no rendimento per capita desses países relativamente a Cabo Verde. Por outro criou na população mentalidade de dependência, desincentivou a iniciativa individual e não deixou espaço para se desenvolver uma cultura de produção e de serviço.
A democracia que se começou a construir 15 anos depois inevitavelmente teve que sofrer com as mazelas acumuladas no tecido social, designadamente a inércia cívica, o igualitarismo que desencoraja a criatividade e a procura de excelência e o conformismo que faz as pessoas recear diferenças de opinião e pensamento crítico. Se na Espanha analisada por Richard Fishman a crispação política na ausência de certos factores para a sua dissipação mantem-se apesar do processo de democratização consensual entre as elites, em Cabo Verde onde tal consenso nunca realmente existiu não se vê como se poderá libertar-se da excessiva polarização política para que compromissos em domínios-chave para o país sejam atingidos. A educação é um dos tais domínios sobre o qual urgentemente precisar-se-ia chegar a um compromisso firme. Apesar dos enormes investimentos já realizados no sector, é facto que o sistema de ensino e as estruturas de formação existentes têm-se revelado inadequados para garantir a empregabilidade dos jovens e ser factor de competitividade do país.
Retrospectivamente pode-se constatar que o corte com o passado e a captura ideológica da sociedade e do sistema de ensino em particular verificados após a independência contribuíram de várias formas para tornar os investimentos na educação pouco produtivos. Apesar de massivamente se ter educado a população, diminuindo extraordinariamente o analfabetismo, levando liceus a todos os pontos do país e abrindo as portas ao ensino superior não é perceptível que o efeito multiplicador sobre a sociedade desse esforço se compare, por exemplo, com o legado cultural e intelectual deixado por alguns poucos de gerações anteriores. A qualidade de formação no pós- independência não tornou o país atractivo para estudantes de outros países nem permitiu que se desenvolvesse uma estratégia de colocação de quadros nacionais em organizações internacionais e em projectos de cooperação com países próximos. A emigração espontânea de trabalhadores não beneficiou de nenhuma estratégica de formação que poderia melhorar a sua qualidade e eventualmente os seus proventos com ganhos para o país. Optou-se pela mediania e o resultado se vê nos números de desemprego e no perfil do desempregado e cada vez mais no do inactivo.
O percurso do país não tinha que ser o que foi e não tem que prosseguir no mesmo caminho dissipando recursos sem que os resultados justifiquem os enormes investimentos feitos pelos indivíduos, pelas famílias e por toda a comunidade nacional através do Estado. Sucessivas gerações não têm que continuar a serem sacrificadas pelo sistema ineficiente que se insiste ano após ano em reproduzir. É um facto que todos reconhecem que o único recurso real de Cabo Verde é a sua gente. Não faz sentido que se continue a desperdiça-lo. Para se reorientar o sistema há que ultrapassar os obstáculos que até agora impediram que reformas profundas fossem possíveis porque na ausência de compromissos tudo vale como arma de arremesso político. Dos professores, a peça fundamental para o sucesso, é de se esperar que sigam o seu patrono Baltasar Lopes na sua Última Lição (pag. 24) vendo a função do professor no “seu contributo para se formarem homens e de que assim às suas mãos confiam a comunidade parte principalíssima do trabalho e de a ele assegurar o seu futuro próximo, um próximo infinitamente re­nascido na escala e na sucessão do tempo”.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 908 de 24 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 22, 2019

Alternância por concretizar

No próximo dia 20 de Abril completam-se três anos da inauguração da actual legislatura dominada pelo MpD. A vitória nas eleições de 16 de Março negara um quarto mandato ao PAICV abrindo o caminho para uma alternância na condução do país.
A dimensão da derrota eleitoral do PAICV, que ficou reduzido a pouco mais do que terço dos deputados, pareceu sugerir que o eleitorado quereria uma mudança de políticas mais do que uma mudança de governo. E compreende-se: a situação do país vinha-se deteriorando em crescimento, emprego e segurança enquanto se tornava mais notória a vulnerabilidade da população rural e acentuava-se a desesperança numa parte significativa da juventude. A promessa do turismo ainda ficava aquém do desejado tanto pela relativa baixa da qualidade dos postos de trabalho criados como também pelo seu fraco efeito de arrastamento na economia nacional. Quis-se pois alternância para mudar este estado coisas.
É um facto que as políticas públicas aplicadas na década anterior tinham desembocado numa estagnação económica que se arrastava há vários anos com óbvio impacto no emprego, no rendimento das pessoas e nas perspectivas futuras das pessoas e em particular dos jovens. A par disso, via-se como o Estado se tinha endividado ultrapassando então mais de 125% do PIB enquanto empresas públicas como a TACV tornavam-se num risco crescente para o país. Também se constatava que a trajectória centralista do Estado se mantinha ou tornava-se pior criando nas diferentes ilhas a sensação de estarem a ficar para trás. Por seu lado, a administração pública, na sua ineficiência e resistência a reformas, continuava a ser um obstáculo à melhoria do ambiente de negócio e um travão no esforço para tornar o país mais competitivo. Juntam-se a isso as dificuldades crescentes da população jovem saída dos liceus e universidades não só em encontrar emprego como também a adequar-se à oferta existente de trabalho. Não espanta pois que perante um quadro tão difícil a votação nas urnas não clamasse por uma outra governação e outras políticas para o país.
O problema é o que acontece depois de ganhar o poder. O desafio logo à partida é como proceder para que ao mesmo que se faz a gestão diária se esteja preparado para fazer as alterações de políticas que abram caminho ao cumprimento das promessas eleitorais. Para isso conviria não se deixar afogar nos problemas que são sempre maiores do que parecem quando se está na oposição e nem deixar-se levar pela tentação de confrontar o adversário como se as eleições não tivessem sido realizadas e ganhas. Mas não é o que normalmente acontece nessas circunstâncias e o resultado é a continuação por muito tempo da crispação política típica dos tempos eleitorais e a perda de ímpeto para a mudança que isso acarreta com claro prejuízo para se fazer as reformas que se impõem. Para um país como Cabo Verde que de há muito que vem “esticando” a corda de um modelo de desenvolvimento claramente gasto e obsoleto, os resultados podem ser desastrosos porque há muito coisa inadiável a ser feita. E no meio de confrontos políticos, que são simples repetição de diferenças do passado, os problemas do presente não são devidamente debatidos. Como há desconfiança não se criam vontades. E se não houver vontade nem debate lúcido dificilmente os problemas podem ser equacionados e resolvidos. O que se passou com a lei da regionalização na semana passada no parlamento é ilustrativo a esse respeito.
Ninguém fica tranquilo se perante as dificuldades a abordagem adoptada continua essencialmente a ser “mais do mesmo” e se conveniências político-partidárias continuam a perturbar o reconhecimento dos problemas e a procura de soluções. A verdade é que faz confusão às pessoas, por exemplo, notar que afinal crescimento não está a trazer mais emprego, que mais educação não está a criar mais oportunidades de trabalho para os jovens, e que o país continua grandemente vulnerável às secas. Também incomoda verificar que apesar de grandes investimentos no Estado persistem as queixas da sua ineficiência e da sua insensibilidade no tratamento dos utentes e operadores económicos. No mesmo sentido vê-se com alguma apreensão que soluções encontradas em certos sectores embora contribuam para estancar sangrias de recursos públicos e diminuir défices orçamentais deixam espaços vazios que as pessoas e a economia no seu todo pagam em custos mais elevados, em acesso limitado e baixa qualidade de serviço. Globalmente não há percepção que se está perante uma abordagem nova sem as amarras das políticas no passado que falharam em proporcionar mais rendimento e mais oportunidades de uma via melhor. E isso não é bom para as pessoas nem para a democracia.
A democracia corre o risco de entrar numa crise profunda se se desenvolver a percepção geral que todos os partidos são iguais, que todos os governos fazem o mesmo e que a alternância política é uma farsa porque todos vão para o governo para se servirem e não para servir o interesse geral. Como já alguém disse, a democracia não garante bons governos mas assegura que maus governos podem ser mudados e o país reorientado com outras políticas. A história demonstra que se isso não acontece e o sistema partidário falha em assegurar verdadeira alternância corre-se o risco de descredibilização das instituições e de toda a classe política. O forte desgaste sofrido pelas instituições nos últimos três anos a começar pelo parlamento mas não deixando incólume nenhum outro órgão de soberania ou instituição pública tem como base essa frustração com alternâncias que não se materializam e levam ao descrédito do regime.
No próximo ano de 2020 começa o novo ciclo eleitoral com eleições autárquicas seguidas de legislativas e presidenciais que irá prolongar-se para a segunda metade do ano 2021. Tendo como referência o que se passa noutras democracias pode-se dizer que provavelmente vai-se ter eleições como nunca antes aconteceu no que respeita aos protagonistas, às tácticas utilizadas e ao papel a desempenhar pelas redes sociais nas campanhas eleitorais. E como outras experiências democráticas já demonstraram nenhum partido está seguro de manter a sua importância e o seu peso eleitoral por mais legado histórico que reivindicar ou maior número de militantes que reclamar. Se persistir a descrença na incapacidade dos actuais actores em fornecer alternativas credíveis pode-se ter que lidar com a ascendência de partidos extremistas e eventual aparecimento movimentos sociais inorgânicos. A verificar-se a fragmentação do campo político cabo-verdiano neste molde já com exemplos em outras latitudes seria um desastre de total responsabilidade dos dois grandes partidos cabo-verdianos. Desempenhar com sentido de estado e respeito pelo interesse geral o papel de partido de situação e o de partido de oposição no regime democrático é fundamental para o funcionamento, credibilidade e eficácia da democracia. Infelizmente, há demasiados exemplos que isso não tem sido a norma, em particular nos últimos anos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 907 de 17 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 15, 2019

Avisos à navegação

Cabo Verde no seu afã diário de sobrevivência e a sonhar com o desenvolvimento de vez em quando depara-se com factos, situações e constatações que deviam obrigar a uma pausa seguida de reflexão mais aprofundada.
O crescimento de 5,5% do PIB sem aparente efeito nos níveis de desemprego que, de acordo com o INE, permaneceram de 2017 para 2018 em 12,2% bem podia ser um dos tais momentos para reavaliações colectivas das políticas públicas. Infelizmente, como já tinha acontecido com a seca de 2017 não foi desta que a classe política se muniu da serenidade necessária para analisar as razões por detrás do aparente desfasamento entre crescimento e emprego e das vulnerabilidades que persistem no país, em particular no mundo rural. Pelo contrário, foi pretexto para mais um “round” de picardia política que nada acrescentou à preocupação geral sobre como criar empregos sustentáveis e com qualidade. A verdade é que, apesar dos tropeções na realidade que de tempos em tempos acontecem, é grande a tentação para se continuar no ilusionismo das promessas várias vezes repetidas e dos milhões que vêm de fora para resolver os problemas. O jogo do poder não deixa que a classe política desista do discurso populista e demagógico. A sociedade civil não mostra autonomia, vontade ou capacidade para forçar a saída deste paradigma de existência.
Assim, por exemplo, face à seca de 2017 que continuou em 2018 e deixou bem claras as vulnerabilidades do mundo rural pergunta-se o que é que mudou. Não parece que se tenha feito um balanço das políticas em direcção ao sector da agricultura e pecuária que há pouco se centravam nas barragens, na mobilização de água e no agronegócio. A seca e a pobreza revelada da população rural pôs tudo a nu mas há quem ainda insista que eram políticas correctas e que os investimentos realizados justificavam-se. Os resultados negativos indisfarçáveis em situação de crise não contribuem para alterar minimamente essa crença. Tão pouco dão sinal de mudar no essencial a abordagem da situação no mundo rural. Paradoxalmente continua-se a acreditar que é possível agir para ao mesmo tempo fixar as populações, criar empregos e aumentar a produtividade da economia rural. Agora quer-se mobilizar água recorrendo à dessalinização e focar estudos e projectos na constituição de cadeias de valor e no acesso aos mercados das ilhas turísticas. O puzzle a construir para que tudo isso dê certo ainda deve incluir transportes eficientes, regulares e a custos competitivos para além do devido condicionamento e a certificação dos produtos. Claro que o problema central de escala que se coloca em tudo o que diz respeito à produção no país não deixará de existir e afectar a competitividade de produtos. Entrementes, o que parece incompatível com a produção bem-sucedida para nichos de mercado, para o aumento da produtividade e a melhoria do rendimento no campo é manter o actual nível populacional ocupado na agricultura e até elevá-lo com os esforços de fixação e criação de empregos.
A história do desenvolvimento de diferentes países revela claramente a evolução da economia a partir da agricultura, pecuária e indústrias extractivas do sector primário para o sector secundário com a industrialização e posteriormente para o sector terciário dos serviços. Uma evolução que se suportou no aumento da produtividade e que foi acompanhada de deslocação da mão de obra primeiro para indústria e progressivamente para os serviços e que resultou na emergência de uma classe média e na diminuição geral da pobreza. Actualmente com a economia digital, o estabelecimento de cadeias de valores globais e o comércio livre entre as nações o potencial para expansão parece não ter limite e imparável a tendência para a concentração das pessoas nas cidades e nas grandes áreas metropolitanas. Claro que face a essas tendências há um esforço para se evitar o agravamento excessivo das desigualdades territoriais mas numa perspectiva dinâmica com alargamento do leque de ofertas locais sem comprometer as necessidades de mão-de-obra dos sectores em rápido crescimento. Em Cabo Verde parece não ser esse o entendimento. Aparentemente pretendeu-se contornar a fase da industrialização e desembocar diretamente nos serviços como, aliás, aconteceu num grande número de países africanos. O resultado vê-se na agricultura ainda basicamente de subsistência, numa grande população rural vulnerável e crescente população nas periferias das cidades ocupadas em atividades informais de baixa produtividade e de fraca capacidade de criação de emprego. Mesmo a parte formal dos serviços não tem suficiente dinâmica para criação massiva de empregos que historicamente a industrialização demonstrou ter.
Daí as persistentes e elevadas taxas de desemprego em África contrariamente ao que se verifica na Ásia que escolheu industrializar-se para exportação. Uma outra consequência pode ser vista no rendimento per capita desses países. Maurícias tem três vezes o rendimento per capita de Cabo Verde. Diferenças similares ou mais pronunciadas existem entre países asiáticos e africanos. E assim é porque enquanto Maurícias industrializava-se para exportação nos anos 70 e 80, Cabo Verde submetia-se a políticas que viravam o país para dentro, negava o investimento directo estrangeiro e hostilizava o sector privado nacional. As tentativas de industrialização dos anos noventa vieram relativamente tarde e não tiveram seguimento na década seguinte. Na África existe agora uma forte motivação para se industrializar como se pode ver com particular destaque na Etiópia, Quénia e Ruanda. Percebe-se finalmente que dificilmente se será bem-sucedido na luta contra a pobreza e na construção de um futuro de progresso sem indústrias competitivas. O sucesso da China está aí para demonstrar qual deve ser o caminho.
Pode-se pois concluir que na ausência de uma política de industrialização dificilmente um país ou uma economia consegue criar empregos em número e qualidade para baixar significativamente o desemprego. E certamente não é pela via do auto emprego, fazendo uso de receitas diversas de empreendedorismo e sonhando com start ups que se vai chegar lá. Sucessos por essas vias exigem na maior parte das vezes um ambiente de negócios favorável, um nível elevado de formalização da economia e existência de mercados estruturados que à partida não se pode assumir. Tem que se construir. Mesmo a formação profissional e um sistema de estágios massificado para trazer resultados positivos têm que se enquadrar dentro de um círculo virtuoso onde densidade empresarial, cultura industrial e de serviços e organização das profissões são ingredientes essenciais. Claro que para um país como Cabo Verde de pequena população e espalhada por nove ilhas a oportunidade que a emergência da sociedade do conhecimento e da economia digital podia oferecer devia ter sido logo identificada. Entre outras vantagens permitia contornar constrangimentos como localização geográfica e dispersão de recursos humanos e potenciar conhecimento e habilitações técnicas individuais. Mas isso só seria possível se se tivesse assumido realmente uma aposta séria na qualidade da formação e do conhecimento do cabo-verdiano. Investiu-se na massificação do ensino em detrimento da qualidade.
O resultado é que sem industrialização e com um sector de serviços ainda pouco dinâmico não estranha que a habilitação média do jovem desempregado seja o 9º ano de escolaridade. O aviso que isso iria acontecer vem de longe, como, aliás, todos os outros avisos que apontavam para falhas e incongruências de políticas públicas e que foram ignorados. Está-se perante mais um outro alerta de que o crescimento económico pode não estar a traduzir-se em mais emprego. O futuro dirá se será desta vez que o alerta será ouvido e que serenamente se irá debater e agir para que finalmente o desemprego deixe de ser estrutural e empregos cheguem a todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 906 de 10 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 08, 2019

Incongruências na lei da regionalização

A Lei da Regionalização continua em discussão na Assembleia Nacional. Aprovada na generalidade em Novembro de 2018 foi retomada em sede de discussão na especialidade na última reunião plenária de Março findo. Os trabalhos no parlamento foram interrompidos na sequência da não aprovação do artigo 6º sobre os órgãos da Região que exigia uma maioria qualificada de dois terços dos votos. Criou-se um impasse ao não se chegar a consenso em como proceder a partir da queda de um artigo central da lei no que respeita à organização das regiões. Segundo a RTC, o governo na pessoa do ministro dos Assuntos Parlamentares prometeu rever a redacção do artigo sexto “chumbado” e trazer de volta o diploma em Abril. Uma solução inédita e duvidosa, mas não muito diferente do que se tem visto no processo de legislar sobre autarquias supramunicipais, carregado como está de incongruências várias.
Começou-se a querer legislar para as regiões há cerca de dez anos atrás. O problema para quem tinha a iniciativa foi sempre conseguir os votos das outras forças políticas e a maioria qualificada necessária para passar a lei ao mesmo tempo que assegurava que ficava com todos os louros de ter levado avante a lei e os outros com o estigma de terem sido contra. Em 2010, na impossibilidade de convencer a oposição a aprovar uma lei de criação de regiões, o então governo de José Maria Neves fez aprovar o regime de criação de regiões no quadro de uma lei da descentralização aprovada por maioria absoluta e abstenção e voto contra das outras forças. E ficaram com os louros. Agora com o governo de Ulisses Correia e Silva avança-se com a lei das regiões, mas falta chegar a um acordo com as outras forças políticas em boa parte porque há uma disputa para saber quem tem o mérito da iniciativa e no processo vai-se fazendo acusações ou insinuando de que os outros são contra. Apesar de não existirem estudos que comprovam um sentimento maioritário da população a favor da regionalização, nem evidência que seja a única via para combater com eficiência e eficácia a excessiva centralização do país, todos os partidos agem nessa matéria como se tratasse do grande prémio eleitoral a conquistar a todo o custo.
Daí as múltiplas incongruências que se pode vislumbrar nas propostas apresentadas. A primeira que faz de cada ilha uma região, ou seja, uma autarquia supramunicipal, confronta-se com a dificuldade de nas ilhas com um único município o território e a população das duas categorias de autarquias coincidirem. Aparentemente não se está a criar regiões para ganhar escala, aumentar os recursos materiais e humanos e elevar o nível de actuação. Uma segunda incongruência é criar excepção à regra de região-ilha que tem como base o reconhecimento do percurso histórico e cultural único de cada uma delas – e por isso força a criação de regiões mesmo em ilhas como Brava e Maio com pequena população e fracos recursos – para depois criar duas regiões em Santiago com o simples argumento do peso demográfico da ilha. Uma terceira incongruência que é consequência da segunda vê-se na quebra do princípio da igualdade na representação das ilhas em instâncias de decisão sobre a utilização de recursos do Estado como parece consagrar a Constituição de 1992 ao atribuir ao Conselho dos Assuntos Regionais, onde as ilhas são igualmente representadas, competências na emissão de pareceres sobre o plano nacional de desenvolvimento regional e os planos regionais. Depois da revisão constitucional de 1999 e a criação do Conselho Económico e Social, a lei do Conselho de Desenvolvimento Regional aprovada em Julho de 2014 consagrou as mesmas competências e reafirmou o princípio da igualdade de representação das ilhas. Uma quinta incongruência é fazer da Praia a sede da região Santiago Sul e nessa condição centro gerador de uma identidade da região quando constitucionalmente se lhe dá um estatuto administrativo especial para se assumir em pleno como Capital da Nação.
Finalmente encontra-se uma incongruência de monta entre a intenção de fazer da regionalização o instrumento para criação de riqueza com valorização das especificidades próprias da ilha, potenciação de recursos e desenvolvimento de vantagens comparativas e competitivas e o discurso com enfase na redistribuição dos recursos do Estado pelas ilhas que tem acompanhado toda a agitação política sobre a matéria. Diz-se que se quer as ilhas mais autónomas, dinâmicas e voltadas para o futuro, mas de algum modo continua-se a encorajar e a alimentar reflexos nocivos já profundos nas pessoas e na sociedade cabo-verdiana produzidos pelo reciclar de dádivas vindas directamente do exterior ou por intermediação do poder central.
Os ganhos político-eleitorais, com vantagem para quem governa, que os partidos irão querer obter logo à cabeça poderá ser o maior obstáculo à substituição nas ilhas da narrativa de ressentimento de quem até agora se se considerou discriminado pela narrativa de possibilidade que o empoderamento das regiões deverá criar. Eleitoralismo e dependência ficaram ligados por demasiado tempo. Custa romper a ligação existente e construir outros laços entre o Poder e a sociedade no pressuposto de que é o sucesso na promoção do desenvolvimento para todos que assegura uma legitimidade maior e sustentada à governação.
Incongruências várias caracterizam políticas públicas em Cabo Verde devido à falta de visão e a ausência de estratégia que tem caracterizada a actuação dos governantes durante décadas Ao focar a sociedade na procura de meios propiciados pelos outros não se deixa espaço para encontrar via própria de produção de riqueza nem capacidade para aproveitar oportunidades. Não espanta que os anos passam e não se consegue confrontar adequadamente o problema do desemprego como mostram os últimos dados do INE mesmo face a um crescimento do PIB de 5,5%. A governação do país ao longo de décadas deixou a maior parte mão-de-obra em sectores de baixa produtividade, foi incapaz de no tempo próprio aproveitar as janelas que se abriram à indústria virada para exportação e criação rápida de emprego e não se mostrou suficientemente visionário para investir na educação de qualidade necessária para a sociedade digital e de conhecimento que se anunciava. Incongruências nas políticas públicas levam a isso. Infelizmente não há muitos sinais de se querer ir mais além, como se pode depreender das últimas discussões na Assembleia Nacional.

Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 905 de 03 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 01, 2019

Fundo soberano causa divergências

As opiniões no país continuam a dividir-se quanto aos efeitos sobre a dívida do Estado que eventualmente virão da extinção do Trust Fund e subsequente criação de um fundo soberano de garantia ao investimento privado. O Vice-Primeiro Ministro e Ministro das Finanças voltou a afirmar num encontro com empresários em S. Vicente que se vai avançar com a criação do Fundo Soberano “sem qualquer impacto sobre a dívida pública”. Dias antes o Governador do Banco Central (BCV) foi categórico a dizer que a “dívida pública vai subir, pelo menos a prazo”. A divergência em certa medida está no facto de o governo acreditar que a substituição dos títulos da dívida que o BCV detém neste momento (TCMF) pelos novos títulos TTRP emitidos pelo Tesouro irá acontecer perfeitamente sem fricção financeira, enquanto o BCV duvida que isso seja possível. E a verdade é que se realmente a substituição não proceder como previsto há consequências entre as quais o aumento da dívida pública.
A questão de fundo é que o BCV tem na sua posse títulos de dívida (TCMF) no valor de 4,7103 milhões de contos que deviam ser resgatados em Agosto de 2018 de acordo com a Lei nº 69/V/98 mas não foram. O valor do resgate ou devia ser acautelado pelo Estado ao longo dos vinte anos no fim dos quais os títulos atingiam a maturidade ou devia ser o próprio Trust Fund no valor total de 90 milhões de euros que desde 1998 vinha sendo gerido pelo Banco de Portugal. A intenção do governo em utilizar o activo dos 90 milhões num fundo soberano de garantia a investimentos imediatamente pôs o problema de como fazer isso e ao mesmo tempo assegurar o resgate de todos os TCMF. Se para outros detentores desses títulos como o BCA, a Garantia e o INPS soluções negociadas sempre podiam ser encontradas, já com o BCV pela sua própria natureza e autonomia outros condicionalismos tinham que ser levados em consideração. As outras entidades podiam aceitar substituir os seus TCMF por outros títulos de dívida emitidos pelo Tesouro. Já o BCV está impedido de financiar o Estado por essa via. No cerne das disputas está como ultrapassar o imbróglio.
O governo propõe alterar a lei orgânica do Banco Central e contornar o impedimento. Um parecer do BCV enviado a 19 de Março ao parlamento dá por assente que essa pode ser uma linha de acção “ainda que subverta num primeiro momento a intenção inicial de todo o mecanismo subjacente à criação do Trust Fund e dos TCMF bem assim a proibição de financiamento do BCV ao Estado”. A questão que se coloca é em que medida alterações na lei orgânica do BCV particularmente no que respeita às relações entre o Estado e o Banco Central afectam a sua autonomia na execução da política monetária e cambial e na supervisão financeira.
A caminhada do BCV para maior autonomia e independência iniciada nos anos 90 primeiro com a lei orgânica de Julho de 1996, em sintonia aliás com o que se verificava em todo o mundo como por exemplo no Reino Unido durante o governo de Tony Blair, ganhou um impulso significativo com a revisão constitucional de 1999. A partir daí o Banco Central passou não só a colaborar na definição das políticas monetária e cambial como a executá-las de forma autónoma. E também a exercer as suas funções respeitando os compromissos internacionais, caso do Acordo Cambial de 1998, que vinculam o Estado de Cabo Verde. A lei orgânica de 2002 que veio cimentar essa autonomia beneficiou de um acordo tácito conseguido na época entre os dois partidos parlamentares para se evitar a sua instrumentalização designadamente para se interromper mandatos de governadores nomeados pelo governo anterior. Apesar de o Banco Central ser visto pelos constitucionalistas como “órgão constitucional” não há exigência de maioria qualificada para a aprovação da sua orgânica. Convinha porém que assim fosse para garantir estabilidade e credibilidade, como aliás foi defendida em 2002 pela então oposição.
O sucesso do “peg” do escudo ao euro e o baixo nível de inflação são frutos da opção feita em matéria de autonomia que não deve ser posta em causa sob pena de o país posteriormente arcar com as consequências. Veja-se o que se passou após o conflito aberto em Novembro de 2011 entre a então ministra das Finanças e o governador do Banco Central com a cena “da missa, do padre e do sacristão”. Pode-se perguntar se as medidas tomadas posteriormente pelo BCV através das taxas directoras que resultaram no aperto ao crédito teriam sido menos impactantes na economia se houvesse mais convergência entre as políticas fiscal e monetária. Ou então se degradaria tanto a situação do Novo Banco se houvesse mais diálogo. Importa pois que perante a necessidade de encontrar uma via para se fazer o resgaste dos TCMF, atingido a maturidade dos mesmos, que isso seja feita sem pôr em causa a extraordinária engenharia financeira que criou o Trust Fund e os ganhos institucionais conseguidos com a adopção do Acordo Cambial.
Haverá certamente mérito do governo em querer instalar um fundo que dê garantias para investimentos de privados nacionais que de outra forma provavelmente não conseguiriam financiamento. Certamente que algum risco estará associado à operação e que inevitavelmente se reflectirá nos títulos emitidos pelo Fundo Soberano. Mesmo que se queira gerir o Fundo Soberano de forma a manter uma notação A “fica difícil conjecturar a priori se a colocação desses títulos no mercado poderá ser bem-sucedida” como bem aponta o parecer do BCV referido atrás. De qualquer forma há que ponderar devidamente sobre esta engenharia apresentada como inovadora e criativa ciente de que os problemas do sector privado não se limitam ao financiamento. E insistir que é assim, não leva a bom porto como várias vezes já ficou provado no passado e que ainda se vê na elevada percentagem de crédito mal parado (12,2% dos empréstimos) que foi motivo de preocupação da última missão do FMI.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 904 de 27 de Março de 2019.