segunda-feira, abril 29, 2019

Educação sem peias

O 25 de Abril foi há 45 anos. A movimentação militar chamada Revolução dos Cravos que se verificou nesse dia determinou o fim de 48 anos do regime autoritário de Salazar/Caetano e abriu o caminho para a democracia em Portugal e para o desmoronamento do império colonial e independência das ex-colónias.
Para o cientista político americano Samuel Huntington foi a revolução que marcou o início da terceira onda de democracia e que, depois de passar por vários países entre os quais o Brasil nos anos oitenta, iria atingir o seu apogeu em 1989 com a queda do Muro de Berlim e posterior derrocada do império soviético e falência generalizada de regimes autoritários e totalitários em todo o mundo. Quatro décadas e meia depois para um outro cientista político e sociólogo americano Richard Fishman, numa entrevista ao jornal Público, o 25 de Abril foi o ponto de partida para de uma democracia que resultou de “uma fusão rara de revolução social, mudança cultural e democratização convencional”. Infelizmente para os cabo-verdianos o impacto do 25 de Abril só ficou pelas marcas também nas ilhas deixadas pela revolução social e as mudanças culturais que provocou. A liberdade e a democracia ficaram adiadas e só se concretizariam a partir dos anos noventa.
O desfasamento em Cabo Verde das vertentes social, cultural e política da movimentação de Abril acabaram por impactar negativamente todo o processo de desenvolvimento do país. No seu estudo comparativo das democracias portuguesa e espanhola, Richard Fishman chamou a atenção para o facto de em Espanha não se ter verificado a revolução social e o processo de transição ter sido ditado pelas elites sem a contribuição de baixo para cima das pessoas que em Portugal redefiniu a relação com a hierarquia social prevalecente. O resultado foi que, segundo o autor, até hoje a democracia espanhola é mais crispada e mais polarizada. Imaginem-se as consequências em Cabo Verde onde todo o processo político, social e cultural foi sequestrado pela lógica de poder do partido único. A contestação das hierarquias sociais existentes foi aproveitada para despromover e condicionar as elites locais cavalgando uma onda de igualitarismo que apenas permitia reverência para com “os melhores filhos do povo”, a elite emergente. A mudança cultural em curso - em vez de continuar na senda do aprofundamento da consciência da caboverdianidade agora que as pessoas se viam livre das peias do Estado Novo de Salazar - foi primeiro cooptada e depois subordinada à ideologia do pan-africanismo e da luta de libertação de onde o partido único retirava a legitimidade do seu poder. O corte com o passado do país que tal via pressupunha acabou por ser real e prenhe de consequências, mas não completo. Sempre que era restabelecido era para procurar selectiva e convenientemente acontecimentos, factos e realizações que justificassem o presente e demonstrassem a sua inevitabilidade.
A corrida para a modernidade e à frescura de ideias que deviam advir com o 25 de Abril rapidamente colapsaram perante um regime que se mostrou inimiga das liberdades, que rapidamente virou o país para dentro com as suas políticas sócio-económicas e reorientou-o para o cumprimento de um mítico destino africano. A adopção de um modelo de desenvolvimento com base na reciclagem da ajuda externa garantiu sustentabilidade e legitimidade ao regime na base de uma suposta boa gestão dos recursos postos à disposição pela comunidade internacional. Na realidade, por um lado atrasou o país em relação a outros como as Maurícias e as Seicheles que optaram por uma economia aberta ao mundo e se abriram ao investimento directo estrangeiro e ao turismo e incentivaram as exportações. Vê-se o atraso na diferença de três ou mais vezes no rendimento per capita desses países relativamente a Cabo Verde. Por outro criou na população mentalidade de dependência, desincentivou a iniciativa individual e não deixou espaço para se desenvolver uma cultura de produção e de serviço.
A democracia que se começou a construir 15 anos depois inevitavelmente teve que sofrer com as mazelas acumuladas no tecido social, designadamente a inércia cívica, o igualitarismo que desencoraja a criatividade e a procura de excelência e o conformismo que faz as pessoas recear diferenças de opinião e pensamento crítico. Se na Espanha analisada por Richard Fishman a crispação política na ausência de certos factores para a sua dissipação mantem-se apesar do processo de democratização consensual entre as elites, em Cabo Verde onde tal consenso nunca realmente existiu não se vê como se poderá libertar-se da excessiva polarização política para que compromissos em domínios-chave para o país sejam atingidos. A educação é um dos tais domínios sobre o qual urgentemente precisar-se-ia chegar a um compromisso firme. Apesar dos enormes investimentos já realizados no sector, é facto que o sistema de ensino e as estruturas de formação existentes têm-se revelado inadequados para garantir a empregabilidade dos jovens e ser factor de competitividade do país.
Retrospectivamente pode-se constatar que o corte com o passado e a captura ideológica da sociedade e do sistema de ensino em particular verificados após a independência contribuíram de várias formas para tornar os investimentos na educação pouco produtivos. Apesar de massivamente se ter educado a população, diminuindo extraordinariamente o analfabetismo, levando liceus a todos os pontos do país e abrindo as portas ao ensino superior não é perceptível que o efeito multiplicador sobre a sociedade desse esforço se compare, por exemplo, com o legado cultural e intelectual deixado por alguns poucos de gerações anteriores. A qualidade de formação no pós- independência não tornou o país atractivo para estudantes de outros países nem permitiu que se desenvolvesse uma estratégia de colocação de quadros nacionais em organizações internacionais e em projectos de cooperação com países próximos. A emigração espontânea de trabalhadores não beneficiou de nenhuma estratégica de formação que poderia melhorar a sua qualidade e eventualmente os seus proventos com ganhos para o país. Optou-se pela mediania e o resultado se vê nos números de desemprego e no perfil do desempregado e cada vez mais no do inactivo.
O percurso do país não tinha que ser o que foi e não tem que prosseguir no mesmo caminho dissipando recursos sem que os resultados justifiquem os enormes investimentos feitos pelos indivíduos, pelas famílias e por toda a comunidade nacional através do Estado. Sucessivas gerações não têm que continuar a serem sacrificadas pelo sistema ineficiente que se insiste ano após ano em reproduzir. É um facto que todos reconhecem que o único recurso real de Cabo Verde é a sua gente. Não faz sentido que se continue a desperdiça-lo. Para se reorientar o sistema há que ultrapassar os obstáculos que até agora impediram que reformas profundas fossem possíveis porque na ausência de compromissos tudo vale como arma de arremesso político. Dos professores, a peça fundamental para o sucesso, é de se esperar que sigam o seu patrono Baltasar Lopes na sua Última Lição (pag. 24) vendo a função do professor no “seu contributo para se formarem homens e de que assim às suas mãos confiam a comunidade parte principalíssima do trabalho e de a ele assegurar o seu futuro próximo, um próximo infinitamente re­nascido na escala e na sucessão do tempo”.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 908 de 24 de Abril de 2019.

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