segunda-feira, junho 24, 2019

Nacionalismo inimigo do pluralismo

Várias razões poderão explicar por que o debate político, como se apresenta no parlamento, na comunicação social, nas redes sociais e outros fóruns, ainda não é muito construtivo e tende para o baixo nível resvalando demasiadas vezes para o primário com insultos pessoais e ataques ad hominen.
Uma delas e talvez a mais importante é a separação não assumida entre auto-proclamados patriotas e os outros que se insiste em manter e que contamina quase todo o discurso político. Nas outras democracias o que separa as forças políticas é a diferença esquerda/direita, com a esquerda a privilegiar o princípio da igualdade sobre a liberdade e um maior intervencionismo do Estado e com a direita a pôr enfase na liberdade e a limitar a actuação do Estado ao papel de regulador. Por isso, divergências entre os partidos não se traduzem em antagonismos permanentes e irredutíveis. Encontra-se sempre espaço para diálogo, compromissos e até se pode alcançar consensos sobre matérias de importância estratégia para o país. Em Cabo Verde, pelo contrário, vê-se o que acontece quando na disputa política se recorre directa ou indirectamente a acusações de falta de patriotismo: o ambiente político é quase a todo o tempo de crispação e dificilmente se consegue construir acordos em matérias fundamentais.
Exemplos disso não faltam: Discussões sobre privatização de empresas que deveriam debruçar-se sobre a oportunidade de se eliminar riscos fiscais, atrair investimento directo estrangeiro e obter benefícios abrangentes para a economia facilmente degeneram em acusações de venda da terra. Medidas como as de supressão de vistos com o intuito de aumentar o fluxo turístico rapidamente são apontadas como uma espécie de capitulação perante a Europa colonialista. Iniciativas como as da assinatura do Acordo SOFA tomadas num quadro de cooperação para a segurança são tidas logo à partida como cedência de soberania. Tentativas de colmatar o défice do conhecimento pelos caboverdianos da língua portuguesa com acções de promoção da aprendizagem do português são vistas como diminuição do estatuto do crioulo. Até a atitude de Cabo Verde de simpaticamente acomodar a iniciativa das autoridades portuguesas de comemorar o Dia de Portugal com as suas comunidades residentes no país serviu para acusações de saudosismo. Muitos outros exemplos podiam ser encontrados em que o diálogo necessário para se discutir e resolver problemas é enviesado logo à partida e é sempre pela mesma razão. Alguns acham-se no direito de acusar, julgar e considerar ilegítimos ideias, iniciativas e posicionamentos dos outros estribando-se num suposto estatuto de nacionalistas que exclusivamente reivindicam para si próprios.
Vozes diversas lamentam a falta em Cabo Verde de uma sociedade civil activa, de uma academia interveniente e de uma imprensa de investigação. Mas a verdade é que não há como ter participação cívica desejada com a polarização existente de base em critérios tão emocionalmente carregados. Para qualquer pessoa, intelectual ou simples cidadão, participar no debate público significa em boa medida submeter-se a ser rotulado como pertencendo ou situando-se próximo de um dos campos. Manifestações de cidadãos são invariavelmente vistas como tendo motivações político-partidárias e até opiniões e notícias publicadas podem ser consideradas parte de alguma conspiração gerada nas sedes dos partidos. Nem toda gente está para isso. Não espanta pois que muitos optem por não se envolver na política ou em prosseguir investigação de cariz histórico e sócio cultural que mexa com o pensamento nacionalista prevalecente. Nem tão-pouco que se ache estranho que o conformismo e a falta de espírito crítico imperem mesmo em círculos como os universitários onde a liberdade intelectual, a criatividade e o espírito inovador seriam expectáveis.
Mário Vargas Llosa diz num texto seu sobre o movimento independentista da Catalunha que “só de maneira fugaz e conjuntural é que o nacionalismo é uma ideologia progressista”. Na maior parte do tempo é uma perversão ideológica que se alimenta “do temor ao diferente e ao novo e do medo e do ódio contra o outro”. Também George Orwell no seu célebre ensaio sobre o nacionalismo foi claro ao mostrar que o nacionalismo, diferentemente do patriotismo, é desejo de poder reforçado pela auto ilusão e que o propósito de todo o nacionalista é conseguir mais poder e prestígio não para si próprio mas para a entidade onde escolheu diluir a sua própria individualidade. Talvez seja esse desejo de poder que justifique que mesmo hoje nas vésperas do quadragésimo quarto aniversário do 5 de Julho de 1975, quando é mais que evidente que ninguém põe em causa a independência, há quem insista num discurso nacionalista, pretendendo-se vigilante contra supostos atentados à condição de país independente. Mas, como se viu atrás, isso não acontece sem consequências. Efeitos perversos estão presentes e constituem um enorme entrave ao desenvolvimento e ao processo de consolidação da democracia, na medida em que por um lado impedem políticas com alcance estratégico e por outro enfraquecem e descredibilizam as próprias instituições democráticas.
Inverter a situação não está aparentemente nos propósitos das forças políticas em presença como se pôde comprovar pela enésima vez na última sessão parlamentar. A postura belicista das diferentes bancadas não deixou espaço para uma discussão séria e elucidativa de matérias como a segurança, a educação e o futuro da gestão dos aeroportos. Feliz ou infelizmente os governos em Cabo Verde têm sempre beneficiados de uma maioria parlamentar sólida e a falta de diálogo não tem resultado em bloqueio da governação. Até agora tal eventualidade pôde ser contornada com a vontade da maioria mas não há garantia que será sempre assim em legislaturas futuras. Impõe-se pois ultrapassar este estado de coisas, que já fez o país perder muito tempo e recursos, e focalizar na construção do futuro. Porém, para isso, a política terá de deixar de ser irredutivelmente antagonística para se basear-se no respeito pelas diferenças e poder beneficiar da dinâmica gerada pelo exercício do contraditório em ambiente de pluralismo e de protecção das minorias.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 916 de 19 de Junho de 2019.

segunda-feira, junho 17, 2019

Disputas pelos recursos

Em Cabo Verde, parece que depois de várias tentativas falhadas abriu-se oficialmente a temporada da corrida das ilhas pelos recursos do Estado.
Toda a política parece girar à volta de quem mais oferece para as ilhas, quem mais faz para fixar as pessoas e quem mais empodera as populações. Os deputados da nação estão num processo acelerado de transformação em porta-vozes das ilhas na assembleia nacional. O governo há muito que o seu foco se concentra fundamentalmente nas realizações locais que podem ser estradas de desencravamento, requalificação urbana e programas de desenvolvimento do tipo “uma família, um turista”. Até o presidente da república já promoveu uma reunião do conselho da república para se debruçar sobre assimetrias e desigualdades regionais e fazer recomendações para a fixação da população. No meio disto tudo imagine-se a energia ganha pelos candidatos a populistas com esta nova política de disputa de recursos.
A fixação nas ilhas tende a fazer esquecer a abordagem global que se deve ter na orientação do país. Cabo Verde é um país arquipélago com uma consciência nacional de há muito consolidada. Durante séculos de profunda escassez, de fomes e de relativo isolamento do mundo as ilhas fizeram um percurso sócio-económico e cultural que lhes impregnou uma idiossincrasia própria. A diversidade das experiências não constituiu impedimento para a emergência da consciência da caboverdianidade. Pelo contrário, enriqueceu-a. A relação com o mundo e as transacções comerciais variaram ao longo dos séculos, ora tendo uma ilha como pivot do desenvolvimento, ora outra. Todas acabavam beneficiadas pela prosperidade geral e pelo enriquecimento cultural. Com tal percurso histórico devia ser evidente que uma relação externa por via de exportações de bens e serviços e do turismo teria que ser central para se conseguir um Cabo Verde próspero. Na procura de oportunidades no mundo nenhuma ilha deveria ser secundarizada como eventual interface principal do país com a economia global.
Muita coisa mudou quando no pós-independência se adoptou a política de reciclagem de ajuda externa e o país foi virado para dentro. Houve globalmente crescimento económico provocado por fluxos do exterior, mas a centralização político-administrativa e a natureza estatizante do regime e a sua hostilidade à iniciativa individual e ao investimento externo impediu que as diferentes ilhas ganhassem dinâmica em resposta a solicitações do exterior. A concentração no Estado dos recursos disponibilizados ao país desencadeou migrações internas que fizeram a Capital crescer exponencialmente e abriram caminho para a paulatina decadência das ilhas com pendor rural mais pronunciado. Os inves­timentos públicos finan­ciados pela ajuda externa não conseguiam reflorescer a economia dessas ilhas que para além de enfrentarem constrangimentos de produção e de mercado dificilmente poderiam acomodar a pressão populacional que se seguiu à melhoria nos cuidados de saúde e em outros serviços prestados pelo Estado. O quadro daí emergente de desigualdade entre as ilhas e de assimetrias regionais não é fácil de inverter como se pode constatar em todos estes anos em que se procurou construir uma economia de mercado e se abriu o país para o investimento externo e para o turismo.
A dificuldade em dialogar aprofundamente para compreender a situação pode fazer o país caminhar para soluções mais complicadas e cujo sucesso não é garantido. Na última década, com as migrações internas em direcção às ilhas do Sal e da Boa Vista em resposta à procura externa representada pelo turismo, aumentou a pressão para agir. Já anteriormente existia o fluxo migratório para a cidade da Praia e S. Vicente que, aliás, continua em ritmo acelerado. Com o problema real das ilhas mais rurais a agudizar-se e elas a perderem população, convém não cair na tentação de encontrar uma razão simples para o que está a acontecer: dizer, por exemplo, que a culpa é simplesmente a centralização do Estado e que a solução é um modelo de regionalização aplicável a todas ilhas. Quando se faz isso, está-se a pôr de lado a questão central de qual deve ser o real motor do crescimento económico de Cabo Verde. E historicamente sabe-se que os momentos de prosperidade do arquipélago aconteceram quando foi possível estabelecer algum tipo de relação dinâmica com a economia mundial. A excepção criada pela ajuda externa, por levar a uma economia dependente, não podia ser sustentável nem recomendável.
A via a seguir deve ser preparar o país para aproveitar oportunidades fazendo-o mais competitivo e tornando-o mais produtivo. Deve-se de facto descentralizar o Estado diminuindo os custos de contexto e melhorar significativamente os processos de decisão. O facto de o país ser um arquipélago e as ilhas apresentarem características próprias e de constituírem em termos de população, recursos humanos e base tributária desafios diferentes devia ser um convite para se encontrar formas inovadoras de resposta aos problemas da administração do território sem prejuízo da autonomia municipal constitucionalmente consagrada. Por outro lado, não se pode alimentar a ideia que é possível que todas as ilhas avancem ao mesmo tempo ou cresçam ao mesmo ritmo. Isso em nenhum lado aconteceu. Só era possível no mundo imaginário soviético do desenvolvimento harmonioso com o Gosplan. E sabe-se no que deu. Como em todo o lado, políticas de dinamização da economia que facilitam o acesso dos factores capital e trabalho a recursos naturais devem ser acompanhadas de políticas de solidariedade. A redistribuição, a verificar-se, será na perspectiva de potenciar recursos locais com vista ao aproveitamento futuro num quadro de economia nacional que se quer mais diversificada.
Cabo Verde deve ser visto como mais do que o somatório das suas ilhas. Precisa crescer a taxas muito mais elevadas para se recuperar do atraso inicial e do impacto negativo das oportunidades perdidas devido a políticas marcadas por ideologias datadas. Para isso seria de toda a importância conseguir-se flexibilidade e criatividade na gestão do país arquipélago, facilidade de mobilidade do factor trabalho e sua qualificação e também consensos na necessidade de investir onde os maiores retornos poderão ser conseguidos para o bem de todo o país. Não se pode ver o país como num jogo de soma nula. É verdade que para se desenvolver há que promover a cooperação e solidariedade e isso não se consegue com disputas por recursos num quadro dominado por reivindicações populistas. Mais do que nunca impõe-se que se evite desencadear forças centrífugas na sociedade que movidas por processos identitários tendencialmente cada vez mais paroquiais ameaçem rasgar o tecido social e podem criar fracturas no próprio corpo da nação.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 915 de 12 de Junho de 2019.

segunda-feira, junho 10, 2019

O pau e a cenoura

Amanhã 6 de Junho deverá ser assinado com o Banco Mundial o acordo de ajuda orçamental de 40 milhões de dólares, como foi anunciado pelo próprio primeiro-ministro durante o último debate no parlamento.
Apesar de não ter ficado claro qual a modalidade de dispensa da ajuda, se seria anual ou o montante dividir-se-ia por 4 ou 5 anos, parece que o importante no anúncio é a decisão da retoma da ajuda. Para o PM significa um reconhecimento do esforço do governo em melhorar a economia nacional. Em 2016, no princípio do mandato do actual governo, o Banco Mundial ao suspender a ajuda directa ao orçamento condicionou a sua retoma à melhoria da situação financeira da TACV. Em Maio de 2017 o governo retirou a TACV dos transportes aéreos doméstico e regional e entregou a exploração desses mercados à Binter. Não foi suficientemente para o Banco Mundial. Continuou a insistir que teria que haver uma solução para a TACV internacional que eliminasse riscos orçamentais futuros. Até lá não haveria ajuda. Finalmente em fins de Fevereiro último com a compra de 51% da TACV pela islandesa Lotfteidir parece que o BM já se dá por satisfeito e volta à ajuda.
O que aconteceu visto assim retroactivamente faz lembrar a utilização da técnica do “pau e da cenoura” para conseguir resultados em que a virtude está do lado de quem os usa e os custos são assumidos por quem foi apanhado em falta. A verdade porém não é tão simples. As instituições de Bretton Woods, entre as quais o FMI e o BM, não desconheciam que no período imediatamente anterior se agravara a dívida do país, aumentara o défice orçamental e a economia praticamente se tinha estagnado durante anos seguidos. Nos seus relatórios recomendavam a aceleração de reformas estruturais designadamente da TACV, mas, como dissera a ex-ministra das Finanças à imprensa em 2013, continuavam a reconhecer que a dívida era sustentável a longo prazo. Com a mudança de governo a verificar-se em 2016 as referidas instituições endureceram a sua posição e já exigiam a “liquidação” da TACV. O governo, posto contra a parede, certamente que não foi nas melhores condições que teve que proceder à reestruturação da transportadora aérea e claramente a sua posição negocial sofreu com isso. As soluções encontradas são custosas e padecem de insuficiências várias, mas pelo menos a sangria de fundos públicos foi em grande medida estancada. O serviço de transporte aéreo que porém se espera ter num país arquipélago e relativamente isolado do mundo ainda está aquém do desejável.
Paul Romer, o Prémio Nobel da Economia que foi durante alguns anos economista chefe do Banco Mundial confessou num artigo no jornal Financial Times que falhou em tentar reformar essa instituição. Ele diz que que o banco tem uma missão diplomática mas que diplomacia exige ambiguidade e o que o BM faz para manter conformidade na frente diplomática não é compatível com pesquisas científicas necessárias para a identificação dos problemas e a proposta de soluções. Quer dizer que há que tomar com saudável cepticismo algumas das reformas que propõem. Segundo Romer, poderão ter sido afectadas por “complexas sensibilidades políticas”. Aliás, nenhum país se desenvolveu com as soluções do BM que não poucas vezes mudam conforme uma ou outra corrente económica se torna proeminente. Comentando a actual “paixão” do BM pela inclusão financeira usando tecnologia (fintech) alguém no Financial Times de 24 de Abril lembrou o obvio – que sem rendimento não há inclusão financeira, e sem emprego não há rendimento. Tecnologia por si própria não resolve o problema do desenvolvimento como se fosse algo mágico.
Ter capacidade própria, consistência e convicção é pois fundamental na busca do melhor caminho para chegar ao desenvolvimento . Para isso toda a ajuda deve ser bem-vinda mas ela nunca pode significar ficar na posição em que o diálogo entre parceiros é substituído por incentivos do tipo “pau e cenoura”. Nesse sentido é imprescindível que se aja de forma estratégica para diminuir a dependência tanto em termos de recursos como também de visão, capacidade de produzir e implementar políticas públicas. Infelizmente as décadas de política de reciclagem da ajuda externa consolidaram no país uma cultura de dependência. Em vez de seguir políticas próprias, demasiadas vezes vai-se atrás de projectos propostos por parceiros internacionais porque são a fonte de financiamento. Não se prepara devidamente para expor e defender as opções próprias e definir as prioridades do país. Em nome do desenvolvimento a reciclagem da ajuda tende a tornar-se num fim em si mesmo. O que fundamentalmente passa a importar é o fluxo de recursos criado pelos projectos sem que os resultados ou a sustentabilidade futura dos mesmos estejam no centro da atenção. A preocupação maior é que a um projecto siga um outro num movimento que se quer permanente.
No processo, além dos custos associados à falta de uma visão integradora com acções encadeadas e dirigidas para objectivos bem definidos, acrescentam-se ainda a ineficiência na utilização dos recursos. Tal acontece às vezes por descaso, porque são doados, outras vezes, porque não alavancam recursos existentes e ainda outras vezes porque são desviados em troca de favores políticos e similares. O orçamento do Estado que deve ser financiado fundamentalmente por receitas conseguidas com a contribuição de todos os cidadãos também devia merecer atenção para melhor se poder avaliar o seu impacto e a qualidade das despesas. Infelizmente o que se verifica em demasiadas ocasiões é que parafraseando o Presidente da República muitas das despesas do Estado revelam-se desnecessárias, desadequadas e desproporcionais. A falta de racionalidade na utilização dos recursos e o desperdício evidente que se faz em viagens, eventos e em iniciativas improdutivas dificilmente vão permitir que chegue um dia em que se possa libertar-se da ajuda orçamental de outros países e instituições internacionais. Quer dizer que os custos inerentes, imediatos e a prazo, vão manter-se mesmo quando trazem algum bem.
Regozijar-se com a retoma da ajuda do Banco Mundial só deveria ter razão de ser se fizesse lembrar as dúbias razões que em primeiro lugar levaram à sua suspensão, os sacrifícios feitos depois e os custos assumidos por causa da posição de fragilidade com que se teve de encarar certas situações para voltar ao agrado do BM. Mas não só lembrar. Importa é agir para que a exposição do país às vontades dos outros seja cada vez menor e o país esteja melhor posicionado para prosseguir o seu próprio caminho e cumprir a sua visão de futuro com parcerias menos condicionantes e mais potenciadoras das capacidades e recursos do país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 914 de 5 de Junho de 2019.

segunda-feira, junho 03, 2019

Promessas da economia digital

O conflito com a empresa Oi terminou formalmente no dia 22 com a “recompra” dos 40% das acções que detinha na CVTelecom.
A empresa brasileira teria comprado as acções da Portugal Telecom numa operação que não foi de conhecimento imediato da parte cabo-verdiana. O contencioso que se seguiu depois de passar pelos tribunais cabo-verdianos, com desfecho positivo para os accionistas nacionais, foi levado ao tribunal arbitral de Paris onde tudo leva a crer que Cabo Verde arriscava-se a pagar 120 milhões de dólares à Oi entre indeminizações e outros custos, em vez dos 26 milhões necessários para as reaver. Como acontece nestas situações, o assunto foi mais uma oportunidade de confronto político onde mais se acusou do que se esclareceu. A tentação foi de se reabrir o debate em como a privatização se processou no passado em vez de se concentrar em como agir para dinamizar um sector vital nos tempos de hoje que paradoxalmente em Cabo Verde há anos que dá sinais de dificuldades com contributos baixos e até negativos para o PIB nacional, segundo o Relatório Anual do BCV de 2017.
Os quadros do INE são também claros a mostrar que as telecomunicações, actividades dos serviços relacionados com as tecnologias de Informação é um dos componentes do Produto Interno Bruto que desde de 2009 vêm diminuindo a sua contribuição. A constatação desse facto há muito que devia ter sido um alerta para os governantes. Indicia claramente que não estão a dar os resultados prometidos para o sector que devia ser estratégico para a economia cabo-verdiana tanto como motor de crescimento económico, como criador de empregos em particular para os jovens em todas as ilhas. Têm sido anos e até décadas a falar de Cabo Verde como hub para a economia digital e em fazer de Cabo Verde uma Cyber Island mas parece que se ficou essencialmente no discurso, sem acção consequente. O mesmo não aconteceu, por exemplo, nas Maurícias que despertou para a economia digital nos primeiros anos deste século, praticamente no mesmo momento que Cabo Verde. Actualmente são cerca de 20 mil os postos de trabalho criados no sector das tecnologias de comunicação e informação.
Conseguiram porque souberam agir estrategicamente e fazer os investimentos necessários com a urgência de quem precisa diversificar a economia para continuar a crescer. Não podiam ignorar que o panorama do comércio internacional iria mudar com o fim, em 2005, do Sistema Geral de Preferências (GSP) que permitia acesso fácil aos mercados da Europa. Tinham de diversificar para além das exportações de têxteis e do açúcar para a economia digital, serviços financeiros e turismo de grande valor acrescentado. Economias insulares não podem ficar fixadas no que deu certo no passado. Com recursos naturais limitados e mercado interno extremamente pequenos a grande aposta deve ser na educação e formação profissional para alavancar o único recurso com que realmente podem contar: as pessoas. Se o contributo das pessoas pode ser trabalho à distância e os serviços dirigidos para a procura externa consegue-se ultrapassar os constrangimentos da dimensão, da dispersão territorial e do isolamento em relação aos grandes mercados. É o que conseguiram fazer com os call center, os back offices e todos os serviços que se enquadram nos chamados Business Processing Operations (BPOs). E os ganhos são os já conhecidos.
Em Cabo Verde, no mesmo momento ouviu-se o mesmo discurso da importância da economia digital, da aposta nas tecnologias de informação e comunicação e da necessidade de competências linguísticas designadamente do inglês. O problema é que o discurso não levou ao diálogo útil, à construção de uma vontade com sentido de urgência e de oportunidade e também à implementação de um plano de investimentos estratégico que materializasse a visão nele contido. É verdade que houve muitos e vultosos investimentos designadamente em banda larga, nos serviços do móvel, na governação electrónica, no alargamento do ensino secundário e universitário e na construção de data centers. O problema é que todo esse dinheiro gasto pelo Estado, pelos privados e pelas famílias em educar os seus filhos não está a resultar nos empregos e aumento de rendimentos que foram perspectivados. As empresas de telecomunicações depois de fazerem chegar os seus serviços a toda a população já se ressentem da falta de tráfico que uma economia digital dinâmica e a exportar serviços poderia oferecer. Mesmo inovações no sector poderão tardar em ser adoptadas se a expectativa de retorno dos investimentos necessários ficar aquém do aceitável.
Não é certamente por acaso que só agora é que o país vai adoptar o 4G enquanto o mundo já se prepara para o 5G. Num sector em que as inovações acontecem a ritmo vertiginoso não fazer investimentos em tempo certo pode significar ficar para trás, perder competitividade e desperdiçar oportunidades únicas. Modelos de negócios que outrora funcionaram, deixam de garantir retorno – caso da voz nos velhos Telecom – e provavelmente não é possível nem aconselhável voltar atrás e restabelecer monopólios ou posições dominantes no mercado para garantir sustentabilidade. Importa ao país que realmente tenha uma infraestrutura de comunicações moderna e competitiva. Há entretanto que coordenar esforços e agir estrategicamente e com sentido de urgência para que se crie a economia digital capaz de inverter a situação actual e o sector passar a dar um contributo positivo para o PIB.
Os acontecimentos da semana passada poderão estar a abrir uma nova etapa no sector de telecomunicações em particular se o governo encontrar o parceiro estratégico certo para isso. Importante porém é que se compreenda que se está ainda muito longe da realização das promessas muitas vezes badaladas da economia digital. Seria extraordinário que se materializassem, num país arquipélago como Cabo Verde, considerando os vários constrangimentos da mão-de-obra passiveis de serem ultrapassados com conectividade fiável, estável e a baixo custo. Para isso é fundamental a alavancagem dos recursos humanos do país. Infelizmente é precisamente o que não se conseguiu até hoje como se pode inferir dos níveis de desemprego particularmente dos jovens com estudos secundários e universitários. Impõe-se uma mudança urgente de rumo. São necessários diálogos, compromissos e visão do futuro. É realizando isso que o Poder se legitima.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 913 de 29 de Maio de 2019.