Em Cabo Verde, parece que depois de várias tentativas
falhadas abriu-se oficialmente a temporada da corrida das ilhas pelos
recursos do Estado.
Toda a política
parece girar à volta de quem mais oferece para as ilhas, quem mais faz
para fixar as pessoas e quem mais empodera as populações. Os deputados
da nação estão num processo acelerado de transformação em porta-vozes
das ilhas na assembleia nacional. O governo há muito que o seu foco se
concentra fundamentalmente nas realizações locais que podem ser estradas
de desencravamento, requalificação urbana e programas de
desenvolvimento do tipo “uma família, um turista”. Até o presidente da
república já promoveu uma reunião do conselho da república para se
debruçar sobre assimetrias e desigualdades regionais e fazer
recomendações para a fixação da população. No meio disto tudo imagine-se
a energia ganha pelos candidatos a populistas com esta nova política de
disputa de recursos.A fixação nas ilhas tende a fazer esquecer a abordagem global que se deve ter na orientação do país. Cabo Verde é um país arquipélago com uma consciência nacional de há muito consolidada. Durante séculos de profunda escassez, de fomes e de relativo isolamento do mundo as ilhas fizeram um percurso sócio-económico e cultural que lhes impregnou uma idiossincrasia própria. A diversidade das experiências não constituiu impedimento para a emergência da consciência da caboverdianidade. Pelo contrário, enriqueceu-a. A relação com o mundo e as transacções comerciais variaram ao longo dos séculos, ora tendo uma ilha como pivot do desenvolvimento, ora outra. Todas acabavam beneficiadas pela prosperidade geral e pelo enriquecimento cultural. Com tal percurso histórico devia ser evidente que uma relação externa por via de exportações de bens e serviços e do turismo teria que ser central para se conseguir um Cabo Verde próspero. Na procura de oportunidades no mundo nenhuma ilha deveria ser secundarizada como eventual interface principal do país com a economia global.
Muita coisa mudou quando no pós-independência se adoptou a política de reciclagem de ajuda externa e o país foi virado para dentro. Houve globalmente crescimento económico provocado por fluxos do exterior, mas a centralização político-administrativa e a natureza estatizante do regime e a sua hostilidade à iniciativa individual e ao investimento externo impediu que as diferentes ilhas ganhassem dinâmica em resposta a solicitações do exterior. A concentração no Estado dos recursos disponibilizados ao país desencadeou migrações internas que fizeram a Capital crescer exponencialmente e abriram caminho para a paulatina decadência das ilhas com pendor rural mais pronunciado. Os investimentos públicos financiados pela ajuda externa não conseguiam reflorescer a economia dessas ilhas que para além de enfrentarem constrangimentos de produção e de mercado dificilmente poderiam acomodar a pressão populacional que se seguiu à melhoria nos cuidados de saúde e em outros serviços prestados pelo Estado. O quadro daí emergente de desigualdade entre as ilhas e de assimetrias regionais não é fácil de inverter como se pode constatar em todos estes anos em que se procurou construir uma economia de mercado e se abriu o país para o investimento externo e para o turismo.
A dificuldade em dialogar aprofundamente para compreender a situação pode fazer o país caminhar para soluções mais complicadas e cujo sucesso não é garantido. Na última década, com as migrações internas em direcção às ilhas do Sal e da Boa Vista em resposta à procura externa representada pelo turismo, aumentou a pressão para agir. Já anteriormente existia o fluxo migratório para a cidade da Praia e S. Vicente que, aliás, continua em ritmo acelerado. Com o problema real das ilhas mais rurais a agudizar-se e elas a perderem população, convém não cair na tentação de encontrar uma razão simples para o que está a acontecer: dizer, por exemplo, que a culpa é simplesmente a centralização do Estado e que a solução é um modelo de regionalização aplicável a todas ilhas. Quando se faz isso, está-se a pôr de lado a questão central de qual deve ser o real motor do crescimento económico de Cabo Verde. E historicamente sabe-se que os momentos de prosperidade do arquipélago aconteceram quando foi possível estabelecer algum tipo de relação dinâmica com a economia mundial. A excepção criada pela ajuda externa, por levar a uma economia dependente, não podia ser sustentável nem recomendável.
A via a seguir deve ser preparar o país para aproveitar oportunidades fazendo-o mais competitivo e tornando-o mais produtivo. Deve-se de facto descentralizar o Estado diminuindo os custos de contexto e melhorar significativamente os processos de decisão. O facto de o país ser um arquipélago e as ilhas apresentarem características próprias e de constituírem em termos de população, recursos humanos e base tributária desafios diferentes devia ser um convite para se encontrar formas inovadoras de resposta aos problemas da administração do território sem prejuízo da autonomia municipal constitucionalmente consagrada. Por outro lado, não se pode alimentar a ideia que é possível que todas as ilhas avancem ao mesmo tempo ou cresçam ao mesmo ritmo. Isso em nenhum lado aconteceu. Só era possível no mundo imaginário soviético do desenvolvimento harmonioso com o Gosplan. E sabe-se no que deu. Como em todo o lado, políticas de dinamização da economia que facilitam o acesso dos factores capital e trabalho a recursos naturais devem ser acompanhadas de políticas de solidariedade. A redistribuição, a verificar-se, será na perspectiva de potenciar recursos locais com vista ao aproveitamento futuro num quadro de economia nacional que se quer mais diversificada.
Cabo Verde deve ser visto como mais do que o somatório das suas ilhas. Precisa crescer a taxas muito mais elevadas para se recuperar do atraso inicial e do impacto negativo das oportunidades perdidas devido a políticas marcadas por ideologias datadas. Para isso seria de toda a importância conseguir-se flexibilidade e criatividade na gestão do país arquipélago, facilidade de mobilidade do factor trabalho e sua qualificação e também consensos na necessidade de investir onde os maiores retornos poderão ser conseguidos para o bem de todo o país. Não se pode ver o país como num jogo de soma nula. É verdade que para se desenvolver há que promover a cooperação e solidariedade e isso não se consegue com disputas por recursos num quadro dominado por reivindicações populistas. Mais do que nunca impõe-se que se evite desencadear forças centrífugas na sociedade que movidas por processos identitários tendencialmente cada vez mais paroquiais ameaçem rasgar o tecido social e podem criar fracturas no próprio corpo da nação.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 915 de 12 de Junho de 2019.
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