segunda-feira, outubro 28, 2019

O vale tudo tem custos

Aproxima-se o debate anual no parlamento sobre a situação da justiça e em antecipação já os actores políticos se posicionam com as queixas e as críticas de sempre.
Todos focam na questão da morosidade da justiça, pedem-se mais meios no pressuposto que o problema central é de falta de meios e notam-se as tentativas de encontrar culpados para a situação. Repete-se o jogo que, pela forma como nele se entra e se pratica, tende a simplificar o que é complexo, atiça as achas para mais um “round” da luta político-partidária estéril e convida outros protagonistas do sistema a baixar os braços ou a fazerem-se de desentendidos. Olhando, porém, para o sistema sem os filtros habituais de natureza política ou corporativa as constatações não são muito diferentes das que o sociólogo António Barreto recentemente identificou na justiça portuguesa quando se referiu “Ás regras processuais, fonte de desigualdade e despotismo. A chicana burocrática que destrói a eficiência e alimenta a desigualdade. As garantias excessivas, factor de injustiça e paralisia. As relações entre magistratura judicial e Ministério Público, sem falar nas polícias, que se têm transformado em obstáculo sério à eficiência.” 
O Estado de Direito democrático instituído com base no respeito pelo primado da lei depende para o seu funcionamento pleno da independência efectiva dos tribunais e da autonomia do Ministério Público. Seguindo a moldura institucional da Constituição de 1992 há quase trinta anos que do sistema herdado dos anos antes e depois da independência procura-se construir um poder judicial com um nível de eficácia suficiente para administrar a justiça, garantir os direitos fundamentais e contribuir para preservar a paz e a segurança de todos. As dificuldades reconhecidas por todos com que o sistema ainda se depara, funcionando aquém do desejável, deviam deixar a claro os obstáculos a serem vencidos ou ultrapassados sejam eles materiais, ou de natureza organizativa, cultural ou formativa.
O comprometimento de todas as forças políticas com a independência do poder judicial é inequívoco. As leis que erigiram o sistema foram aprovadas por quase unanimidade dos votos dos deputados de todas as forças políticas. Certamente que outras leis que eventualmente poderão aprimorar mais o sistema no sentido de uma efectividade maior a todos os níveis se devidamente negociadas terão o acordo dos partidos representados no parlamento. Prova disso foi o consenso conseguido na revisão constitucional de 2010 que transferiu para os conselhos de magistratura judicial e do ministério público a gestão efectiva dos recursos dos tribunais, das procuradorias e das respectivas secretarias. Também o engajamento dos sucessivos governos em disponibilizar recursos ao sistema da justiça pode ser comprovado por todos.
Daí que as razões para a persistente ineficácia dos tribunais traduzida na morosidade da justiça não terão somente a ver com o sistema em si ou com falta de vontade política. Deverão contribuir para as ineficiências e a falta de eficácia outros condicionantes cujos efeitos perniciosos também se fazem sentir em outros sectores da vida económica, social e cultural onde os retornos dos investimentos feitos não se traduzem, por exemplo, em maior qualidade do ensino, na diminuição perceptível da insegurança, na melhoria significativa da competitividade, no aumento de produtividade e em maior civismo. Condicionantes esses que devem ser identificados e ultrapassados num esforço colectivo mas dentro de um quadro de pluralidade, para que o país acumule competências, veja os seus propósitos realizados e invista com confiança no futuro.
Infelizmente demasiadas vezes acontece o contrário. Não são os condicionantes que são eliminados, mas sim as resistências à mudança que se vêem reforçadas no ambiente de crispação política criado pelos partidos, quando focados na procura de pequenas vantagens tácticas ou no aproveitamento de alguma oportunidade para passar uma má imagem do adversário. O país ouviu na semana passada as declarações da presidente do Paicv a envolver em dúvidas e suspeições a nomeação do novo procurador-geral da república, dizendo que “é estranho que só depois de se terem avançado com processos, que envolviam personalidades muito próximas do actual poder, é que houve essa pressa na mudança do PGR”. Foi algo totalmente desnecessário, mas que se justifica com a lógica do “vale tudo”.
As quatro nomeações anteriores do PGR pelo presidente da república sob proposta do governo nunca mereceram apreciação do género pelas forças políticas precisamente porque é vontade de todos que o PGR seja independente do governo e esteja acima de qualquer suspeição. Declarações feitas em ambiente de stresse, embora graves, mas sem qualquer impacto institucional não devem servir de pretexto para pôr em causa um processo de substituição que cai dentro da normalidade, considerando que o fim do mandato se verificou no passado mês de Maio e o novo mandato inicia-se com a abertura do ano judicial. Desde 2003 que a prática tem sido a nomeação do PGR para um único mandato de cinco anos. Politizando a justiça o que se consegue é a descredibilização do sistema e que em consequência aumente a tentação de agentes na administração da justiça de se desresponsabilizarem pelos resultados. Podem continuar a pedir mais meios e regalias, mas passam a responsabilidade pelos resultados aos políticos ávidos nas suas tricas políticas de oportunidades para se culparem uns aos outros.
É evidente que ninguém ganha com isso, muito menos quem quer uma justiça célere e eficaz. Também a prazo não ganham as forças políticas que, num momento, prontificam-se a suportar um poder judicial independente e a enfrentar a complexidade da tarefa de pôr a funcionar com eficácia todas partes do sistema, salvaguardando a sua independência e a autonomia, e, noutro momento, parecem dispostas a alimentar teses conspirativas que o descredibilizam. Globalmente esses avanços e recuos e a falta de consistência estratégica na implementação de políticas tendem a aumentar a ineficiência do sistema no seu todo porque não é só a justiça que é afectada. Também o são outros sectores da vida do país com impacto directamente nas pessoas, na economia e na sociedade. A credibilidade da democracia sofre no processo porque para os cidadãos a política deixa de ser o processo para se encontrar as melhores vias para o desenvolvimento para passar a ser simplesmente jogadas de poder onde tudo é possível. Há que rejeitar definitivamente a lógica do “vale tudo” na política. Os custos presentes e futuros são incomportáveis.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 934 de 23 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 21, 2019

Chega de panaceias

O discurso do governo particularmente pela voz do Vice-primeiro-ministro e Ministro das Finanças tem sido dirigido para os jovens e para a necessidade de investimento na formação profissional.
Nesse sentido, segundo Olavo Correia, até agora 7 mil jovens foram beneficiados com formação e estágios profissionais, mas a meta a atingir é de 10 mil beneficiários. A proposta do Orçamento do Estado para o ano de 2020 prevê 358 mil contos para financiar a formação e 387 mil contos como comparticipação do Estado em estágios profissionais. E a ideia é de se ter um centro de formação profissional em todas as ilhas. Com essas medidas o governo reitera a sua aposta nos jovens e sugere que está na linha de cumprir com a promessa de campanha, várias outras vezes repetida, de criação de 45 mil postos de trabalho e de ter uma economia a crescer a uma média de 7% até ao fim da legislatura. O facto de até agora só se ter atingido um crescimento de 5,1% em 2018 (o World Economic Outlook de Outubro de 2017 põe o crescimento numa média de 5 % nos próximos anos) e de ser baixado o desemprego para 12,2% revela as dificuldades e a complexidade da situação socio económica e laboral que não se compadecem com panaceias, voluntarismos e apelos motivacionais.
Mesmo com as melhores das intenções são vários os obstáculos a um aproveitamento adequado de um investimento massivo na formação profissional. Na sua página oficial do Facebook, o VPM e Ministro das Finanças começa por reconhecê-los ao apelar que se valorize a formação profissional ao mesmo nível de outras carreiras, ocupações e profissões. Depois constata a tentação de no processo de contratação se descartar os formados nas escolas profissionais a favor de trabalhadores sem qualificação e recomenda a adopção de carteiras profissionais para que possam ter emprego digno. Por último propõe que as empresas que recebem renúncia fiscal do Estado sejam obrigados a recrutar jovens formados. Outros problemas certamente existirão designadamente no ajuste entre as ofertas de formação e a procura real de qualificações, em conseguir a sinergia certa entre o centro de formação e o ambiente empresarial que favoreça a qualidade e em ganhar dimensão crítica em termos de número e rotatividade de formandos que permita aos centros consolidar-se como instituição de formação.
Sucesso na implementação de políticas depende muitas vezes da devida articulação com outras e do encadeamento no tempo certo que se fizer das medidas previstas. Razão para que isoladamente não sejam tomadas como panaceias que vão resolver todos os males. No caso da política de formação profissional, é evidente que só se terá grande absorção de mão-de-obra formada se houver boa evolução da exportação de bens e serviços e do turismo tendo em conta que a procura interna é limitada e não suficientemente diferenciada. Para se conseguir isso porém é fundamental que o país seja competitivo apresentando entre outros factores uma mão-de-obra especialmente preparada para ser atractiva para investidores que tenham na mira mercados externos. Também internamente constrangimentos como a informalidade da economia e a resistência das empresas em contractar profissionais terão que ser confrontados decisivamente sob pena de se ver todo o investimento público na formação a perder-se ou a ficar subaproveitado. Não se pode ter uma situação similar àquela descrita pelo presidente da associação dos taxistas da Praia à agência Inforpress de já estarem a circular um número de táxis clandestinos quase igual aos legalmente estabelecidos depois de todo o esforço feito por várias entidades para regularizar a situação.
Corre-se o risco de frustrar as expectativas das pessoas quando se extrapola os efeitos de certas políticas ou o impacto de certas obras ao mesmo tempo que se simplifica a realidade e não se dá à sociedade a dimensão real dos problemas. Quantas vezes se anunciaram obras que seriam estruturantes e catalisadores do desenvolvimento em ilhas ou partes do território nacional para depois se constatar que afinal “a montanha pariu um rato”. Não é que os investimentos feitos em portos, aeroportos, estradas, barragens, habitação social, escolas, etc, não tenham trazido algum benefício. O problema é que os benefícios são muito menos do que os prometidos e esperados e os custos são muito maiores do que inicialmente assumidos porque não acompanhados de outras acções e políticas com as quais deveriam criar sinergia e potenciar a criação de valor.
O resultado por exemplo é, para as autoridades, como reconciliar os surtos de insegurança que acontecem na cidade da Praia com os investimentos de milhões feitos no âmbito da cidade segura e também em garantir à polícia nacional os meios e os incentivos para serem efectivos nas suas funções. Ou congratular-se com o sucesso já conseguido da CV Airlines no hub do Sal ao mesmo tempo que declara o governo sem poder para baixar preços das passagens aéreas como se não tivesse políticas para o sector de transporte aéreo e dever de dar combate a práticas monopolistas. Ou ainda assistir-se ao investimento na educação na ordem dos 12 milhões de contos na proposta do OE e se ter a sensação generalizada de que está longe o retorno desejável em termos de qualidade, de preparação dos jovens para o futuro e de assegurar uma base em termos de competência linguística, educação humanística e base científica e técnica.
Em Cabo Verde sempre se alimentaram sonhos do tipo: se o país chovesse ter-se-ia fartura e todos seriam felizes. Por causa disso a mobilização da água torna-se panaceia e investe-se em sistemas de captação, mas descuram-se os passos seguintes para se ter uma agricultura que não seja de simples subsistência. No fim do dia a precariedade persiste, as populações continuam vulneráveis e paradoxalmente não se alimenta uma cultura de poupança de água como deixam saber as revelações vindas a público de perdas escandalosas de água nas redes públicas. Talvez por razões similares tende-se a acreditar que mesmo ficando tudo o resto igual se houvesse crédito o país estaria a fervilhar de actividade com o empreendedorismo ou que se pode criar cyber islands com investimentos dos outros em data centers sem que no domínios das Tecnologias de informação (TICs) se se verificasse um esforço sistemático de formação nas escolas e universidades durante anos seguidos, a exemplo de outros países.
Não devia ser assim. O país sem recursos, com população diminuta e localização geográfica não muito vantajosa apesar dos devaneios em contrário devia encarar a problemática do desenvolvimento com mais humildade, responsabilidade e abertura para o diálogo. A política infelizmente não tem servido para isso. Bem pelo contrário, tem-se prestado ao camuflar dos problemas, à insistência em panaceias de toda a espécie e em levar as pessoas numa montanha russa de expectativas altas e frustrações profundas. Há que dar um basta a isso.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 933 de 16 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 14, 2019

Restabelecer os equilíbrios

O descontentamento das pessoas em relação à democracia é hoje um fenómeno quase universal. Multiplicam-se as críticas sobre o seu funcionamento e suposta ineficiência e aumentam as dúvidas quanto à sua capacidade de encontrar soluções para os problemas da actualidade.
 Hoje fala-se da recessão democrática, da crise de representação e do défice de participação e não é para menos. Pelo tom usado por muitos nas redes sociais em constantes momentos de indignação perante situações grandes e pequenas, em acusações de corrupção dos políticos que quase não deixam ninguém de fora e na atitude cínica com que se encaram os ideais democráticos podia-se pensar que o fim da democracia está próximo. A realidade é que mesmo com dúvidas e frustrações, aparentemente, todos aspiram viver em democracia. Regimes mais ou menos autoritários ou iliberais reivindicam o manto de democratas e ditaduras totalitárias vestem a roupagem da democracia para se camuflarem e se legitimarem. A ideia da democracia não está morta nem moribunda, mas carece de vitalidade e ela só pode vir da sociedade, da sua convicção e do seu engajamento.
Já dizia Alexis de Tocqueville que o sucesso da democracia americana devia-se à existência de uma sociedade civil particularmente activa e participativa desde dos primórdios da república. O capital social existente traduzido numa cultura cívica intensa e num elevado grau de associativismo foi crucial para a consolidação da democracia americana. Claro que o rápido desenvolvimento de uma classe média empreendedora cuja prosperidade dependia do respeito pelo direito de propriedade e pelos direitos contractuais conjugado com a garantia de um poder judicial independente capaz de eficazmente redimir os conflitos foi central para se manter a sociedade civil autónoma, exigente na qualidade dos serviços prestados pelo Estado e fiscalizador do uso dos recursos postos à sua disposição pelos contribuintes. Ao longo dos tempos nem todas as experiências democráticas conseguiram reunir as condições óptimas para triunfar.
Cabo Verde não é excepção. A adopção durante décadas do modelo de desenvolvimento com base na reciclagem da ajuda externa no quadro do regime de partido único fez crescer a dependência do Estado e o espírito assistencialista em todo o território nacional. Em 1988 o então presidente da república Aristides Pereira constatava isso apelando que as frentes de trabalho (FAIMO) deixassem de ser “o local onde se degrada a consciência laboriosa do nosso povo”, mas a verdade é que praticamente todo o país se tinha tornado numa grande FAIMO. No processo, as elites socioeconómicas anteriores tinham sido suprimidas ou neutralizadas e em substituição tinha emergido uma outra elite intimamente ligada ao Estado que lhe dá os acessos, faculta-lhes os meios e cria-lhes as oportunidades. É evidente que a nova elite dificilmente podia ser a base para uma sociedade civil autónoma, crítica e reivindicativa perante o Estado.
Com o advento da democracia no pós 13 de Janeiro de 1991, pôs-se a questão de qual seria mais difícil, se mobilizar a sociedade civil para apoiar a reestruturação da economia e, no processo, conseguir-se mais crescimento e emprego ou fazer o desmame material e cultural de pessoas e instituições do modelo de reciclagem da ajuda externa. Ter-se-á ficado a meio do caminho e o resultado é que da parte das elites existentes não houve um comprometimento forte com os valores democráticos, com a economia de mercado e a ideia de uma sociedade civil realmente autónoma. Acredita-se ainda que o mais natural é o Estado continuar no “topo da cadeia alimentar” mas, não talvez da mesma forma. Anteriormente os recursos foram essencialmente ajuda, hoje são mais variados, mas a tendência é o Estado comportar-se da mesma forma e o sector privado e as elites submeterem-se à sua orientação, preferência e humores.
O estado actual do país reflecte em vários aspectos o quanto se falhou em criar as condições para a emergência de uma sociedade civil engajada que desse suporte à democracia. Sente-se isso principalmente neste momento de especial fragilidade da democracia a nível local e global em que a opinião expressa nas redes socias, em comentários e também em alguns discursos visa atingir fundamentalmente o parlamento, o sistema judicial e os media. Coincidentemente os mesmos alvos que em países como a Polónia e a Hungria, mas também os Estados Unidos e o Reino Unidos estão na mira dos assumidamente populistas. Em Cabo Verde aparentemente está-se a dar continuidade às críticas e ao maldizer que acompanharam a construção da democracia a partir dos anos 90. Paradoxalmente, nesse período, a sair do regime de partido único, já se criticava a existência de partidos, o bipartidarismo e o parlamento plural. Com pouco tempo de vigência dos direitos fundamentais já se acusava as autoridades de serem pior que a ditadura anterior. Sem ainda tempo para recuperar da estagnação dos tempos de economia estatizada já se transbordava de indignação pela suposta venda do país a investidores externos. Caso para perguntar se antes não encontraram razão suficiente para defender a democracia o que aconteceu de novo que poderia tornar os críticos no seu defensor activo.
De facto, o que vem acontecendo é o contrário. Os ataques recrudesceram sem preocupação com as consequências. Para muitos que sempre viveram na democracia e na liberdade as críticas até podem ser normais considerando que parecem reflectir insuficiências no sistema democrático e falhas dos agentes políticos e suas organizações. Não lhes passa pela cabeça que a sua actual vivência democrática e tudo o que dão por garantido pode ser reversível, como aliás vem acontecendo em alguns países até recentemente liberais e democráticos. Por outro lado, não parecem ter apercebido que muita crítica expressa no espaço público é pobre, segue certas conveniências e deixa-se instrumentalizar. Nem notam que por algum bloqueio o país ainda está por dar sinais de que o nível do debate público se elevou com as várias universidades criadas e os seus milhares de estudantes formados.
A democracia cabo-verdiana perde com a falta de uma sociedade civil autónoma, activa e focalizada. O discurso político empobrecido sem a pressão dos problemas e prioridades trazidas pela sociedade limita-se aos temas dos partidos que lhes podem trazer pequenas vitórias tácticas na luta pelo poder. Ou, então, coopta a agenda das instituições internacionais que não poucas vezes substitui o que deviam ser políticas públicas do país com as consequências que todos conhecem. Basta analisar os custos e benefícios dos múltiplos projectos em todo o país. Por isso é que a vitimização, o “coitadismo”, o ter sido abandonado ou discriminado são temas constantes não só do discurso político como também de activistas sociais. Tragicamente procura-se compensar a quebra da autoestima que tudo isso acarreta com “bengalas identitárias” que desviam o país da narrativa que historicamente lhe deu consciência da nação muito antes de ser um Estado independente. Desvio que só pode levar à autoflagelação do tipo que o Presidente da República aconselhou para se evitar, na sequência do incidente com o professor universitário guineense no Aeroporto da Praia, e à quebra na motivação de cada um em particular e da sociedade em geral de se fazer mais e melhor em prol de uma vida de prosperidade e em liberdade. Para isso, há que cortar com o cinismo, enfrentar os problemas sem cair no ilusionismo e reconstruir os equilíbrios necessários entre o Estado, a sociedade e o mercado..
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 932 de 9 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 07, 2019

Evitar a “desconsolidação” democrática

O ano parlamentar que praticamente coincide com o ano político iniciou a 1 de Outubro. Arranca com a quarta sessão legislativa cujo término a 31 de Julho de 2020 se verificará provavelmente em cima das eleições autárquicas a terem lugar entre Julho/Agosto.
 Por ser um ano pré-eleitoral o mais normal é que se acentue a polarização política entre os partidos e aumente substancialmente a crispação. E o facto de se realizarem eleições disputadas para a liderança do maior partido da oposição no próximo mês de Dezembro certamente irá afectar o tom e a natureza do discurso político em direcção ao governo. Cada candidato vai querer ser o mais contundente e efectivo nas críticas à governação. Também não deverá ficar grande espaço para grandes entendimentos entre os grupos parlamentares que implicam maiorias de dois terços dos votos dos deputados. Com estas pedras no caminho dificilmente irá ser um ano parlamentar mais produtivo, correndo-se o risco de a legislação prometida em matéria eleitoral, tanto quanto à paridade de géneros como à limitação de mandatos, ficar comprometida. Nem tão pouco se conseguir acordos alargados no provimento de cargos exteriores à Assembleia Nacional como o Provedor da Justiça e o Conselho Superior de Magistratura Judicial que há mais de um ano esperam ser substituídos.
Quer isto dizer que não será este ano ou o próximo que se vai constatar uma melhoria na qualidade do trabalho parlamentar. Com o ciclo eleitoral já à porta e as três eleições autárquicas, legislativas e presidenciais separadas cerca de seis meses umas das outras, não será o melhor momento para se reparar as relações parlamentares no sentido de maior efectividade seja na produção legislativa, seja na elucidação da nação dobre os problemas candentes do país ou ainda na fiscalização dos actos da governação. De facto, não se pode considerar que nestes últimos anos houve avanços entre as forças políticas quanto à capacidade de negociar, de firmar acordos e de chegar a compromissos em matérias cruciais para o país. Pelo contrário. Como todos se vêem ou querem apresentar-se como representantes genuínos e únicos do povo, com exclusão dos outros que são tidos como antipatriotas, negativos e maledicentes, não fica espaço para o diálogo.
Mesmo fortes chamadas à realidade, como foram, entre outras, a quase estagnação económica dos primeiros cinco anos desta década e a seca desde de 2017, não se mostraram suficientes para alterar o tipo de debate político em Cabo Verde. Persiste-se no confronto que impede visão clara e plural sobre os problemas do país, dificulta a identificação das prioridades e não mobiliza vontades para se investir no futuro. Complica a situação o facto de quaisquer alterações favoráveis do ambiente externo, quase sempre conjunturais, mas com repercussões positivas no país, serem suficientes para se esquecer males passados, vulnerabilidades reveladas e omissões até ao momento despercebidas. Ultrapassado o mau momento é só ver o país a retomar o seu caminho imperturbável como se nada tivesse acontecido até que desperte com mais um choque externo. Entretanto, reformas são adiadas, cresce a inércia social e cultural impeditiva do desenvolvimento e diminui a capacidade de resiliência a todos os níveis.
Para os autores do best-seller “Porque Falham as Nações” Daron Acemoglu e James Robinson no seu novo livro “O Corredor Estreito: Estados, Sociedades e o destino da Liberdade” não basta que se tenha uma moderna Constituição e leis democráticas para se dar a democracia como realizada, para se considerar garantido o exercício da liberdade e criadas as condições e oportunidades para maior prosperidade. Ao lado do Estado forte e legitimado pelo voto popular tem que existir uma sociedade também pujante, alerta e fiscalizadora capaz de correr a passo e passo com o Estado nesse corredor estreito onde espaço para liberdades existem, garantem-se com eficácia serviços do Estado, a começar pela segurança e justiça, e se assegura que a dinâmica plural de ideias, projectos de futuro e escolha de prioridades sirva a todos e não seja sequestrado por qualquer grupo político ou económico para benefício próprio. Ninguém quer viver na anarquia ou ausência de Estado mas também ninguém deseja um Estado autoritário sem limites no uso do poder. Segundo Acemoglu e Robinson só se consegue o equilíbrio certo e o desenvolvimento com uma sociedade que não só compete mas também coopera ou na perspectiva de Raghuram Rajan no seu livro “O terceiro pilar” com uma comunidade activa e focada, capaz de conter o Estado e o mercado nos seus excessos e garantir que o impacto do desenvolvimento chegue a todos.
O problema com as democracias actualmente é que a sociedade ou não se engajou na consolidação da democracia ficando essencialmente pela formalidade derivada da adopção da Constituição e das leis modernas ou deixa-se levar por discursos políticos do tipo populista que enfraquecem os princípios e valores liberais e descredibilizam as instituições democráticas. Assiste-se mesmo em democracias mais velhas a um processo que o cientista político Yascha Mounk chama de “desconsolidação” democrática devido a várias razões, designadamente o aumento da desigualdade social, a pressão migratória e os efeitos da globalização. Aconteceu no Reino Unido e na semana passada e viu-se como o Supremo Tribunal, por unanimidade dos 11 juízes, pôs fim a algo similar que visava diminuir o papel do parlamento na discussão do Brexit
Em Cabo Verde a construção das instituições democráticas não foi acompanhada de uma adesão activa e engajada com os princípios e valores liberais. Para isso contribuiu uma inusitada preocupação em desculpar o regime de partido único cujos valores estavam nas antípodas do regime democrático. Por outro lado, falta à sociedade civil a base económica para uma verdadeira autonomia perante o Estado e na luta de todos e de cada um para se “desenrascar” faltam razões fortes para a defesa da liberdade económica, da igualdade de oportunidades e das bases para a criação de riqueza. Nestas condições a pressão para a “desconsolidação” democrática é real. Vê-se na descredibilização do parlamento, no comportamento às vezes pouco curial dos órgãos de soberania e seus titulares, nos ataques ao sistema judicial, no assalto populista aos partidos e na movimentação de interesses corporativos junto do Estado.
Inicia-se um novo ano político e é sempre de desejar que seja diferente e se reoriente para preparar o país para eventuais consequências das incertezas criadas designadamente pela guerra comercial em curso entre os Estados Unidos e a China, a instabilidade no Médio Oriente e no mercado petrolífero e a quase certa quebra na dinâmica da economia mundial. Cabo Verde cresceu nos dois primeiros trimestres deste ano acima dos 6%. Isso é bom, mas deve-se em grande medida ao impacto da conjuntura internacional favorável sobre as exportações e o turismo. Ninguém garante que continue assim. Os efeitos das incertezas, já visíveis no horizonte, serão maiores se o país, entretanto, não melhorar a sua competitividade e produtividade. E isso só se consegue com instituições fortes, uma sociedade engajada e uma profunda mudança de atitude.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 931 de 2 de Outubro de 2019.