Com a entrada no ano 2020 Cabo Verde começa a se
preparar para as eleições autárquicas, que virão ainda no segundo
semestre, e as legislativas e presidenciais, separadas seis meses umas
das outras, que se realizarão no próximo ano. Já foi dado o pontapé de
saída.
O PAICV em Dezembro último
escolheu o seu líder e prepara o congresso para eleições dos seus
principais órgãos em Janeiro. O MpD deverá fazer o mesmo respectivamente
em Fevereiro e Março. Da movimentação dos partidos não deve haver
surpresas, em linha com o que o país já se habitou depois da eleição
directa dos líderes pelo universo dos militantes. Os outros órgãos
eleitos (congresso, convenção e direcções nacionais) deixaram de ser
instâncias de discussão viva e plural dos assuntos do país e do partido.
Passaram simplesmente a repetir as posições da liderança e a se
desdobrarem em manifestações de devoção ao “chefe”.Com o aproximar das eleições e de momentos mais polarizantes da vida política, o país vai ver mais uma vez adiada a discussão necessária que urge fazer dos problemas graves que o assolam e afectam problematicamente o seu crescimento, distorcem o emprego, não permite ter uma educação de excelência e não faz desaparecer o sentimento de insegurança. Perdeu-se talvez a oportunidade de uma discussão mais aberta dos problemas e eventualmente da construção de consensos para os ultrapassar nos anos logo a seguir às últimas eleições que deviam ser de menos crispação político-partidária. Mas visto de outra forma talvez o país não estivesse pronto para isso ou as suas lideranças não estavam à altura dos desafios que se colocavam. Ou ainda, ninguém se mostrava disposto a abandonar as práticas já estabelecidas de base populista e demagógica que paulatinamente têm vindo a definir o que é fazer política em Cabo Verde. Em boa medida, a tensão e polarização própria dos períodos eleitorais nunca realmente desaparecem no pós-eleições e a crispação assim institucionalizada pelo estado de permanente campanha partidária não permite que os problemas do país sejam, sem filtros, devidamente confrontados, equacionados e resolvidos.
Em 2020, o ciclo eleitoral começa mais cedo porque o mandato nos órgãos municipais é de quatro anos. Acontece de vinte em vinte anos. Por causa disso é especial, mas de forma oposta ao que o último ciclo em que as autárquicas vieram depois legislativas foi também especial. Se em 2016 foi notório o contágio dos resultados das eleições legislativas sobre as autárquicas, aparentemente nada impede que o oposto se venha a verificar agora com a diferença de ser a eleição mais impactante a que pode ser contagiada. Tal possibilidade tem o potencial de antecipar para mais cedo a disputa nas legislativas via uma interposta luta pela conquista de câmaras municipais. No processo, a qualidade da governação não deixará de ser afectada. Haverá mais dificuldade em conseguir acordos entre os partidos em matérias que exigem maiorias qualificadas e não deixará de se manifestar a tentação do governo em fazer chegar financiamentos a câmaras ou em apoiá-las com iniciativas várias. Do lado da oposição certamente que se irá agir no sentido de escrutinar mais o funcionamento municipal e não se irá dispensar acusações de aproveitamento eleitoral. Neste aspecto o ano pode não se mostrar muito produtivo no que respeita às questões de fundo do país sendo afectado negativamente pela guerrilha política que poderá instalar-se em antecipação das eleições legislativas.
A dimensão da vitória autárquica do MpD em 2016, em que dos 22 municípios passou a controlar 18 e dos quatro restantes dois são próximos e só dois foram para o PAICV, cria um problema algo complicado nas eleições seguintes. A tendência histórica para algum equilíbrio autárquico deixa prever que a haver movimento no controlo das câmaras o mais provável é que quem tenha mais, o MpD, perca algumas, mesmo mantendo a maioria como aliás quase sempre se verificou, seja nos governos do MpD, seja nos do PAICV. A desproporção actual das câmaras nas mãos de um e do outro partido é que é inusitada e naturalmente que constitui um convite a que o adversário pressione para, seguindo a tendência natural das coisas, capturar algumas câmaras e com isso passar a ideia de derrocada eleitoral do outro. E a poucos meses das eleições legislativas imagine-se o efeito que isso poderá ter particularmente se as câmaras perdidas tiverem um valor simbólico forte no âmbito da luta política em Cabo Verde. Não será um desfecho que irá interessar o partido no governo e certamente que fará tudo para não perder terreno autárquico e sobretudo nos municípios onde uma derrota pode ser apresentada como prenúncio de derrota nas legislativas.
A complicar ainda mais o cenário descrito de se vir a batalhar pelas legislativas servindo-se das autárquicas pode surgir ainda a questão presidencial que nos últimos tempos tem sido aflorada com alguma insistência. É curioso que a eleição do presidente da república, sendo a terceira das eleições no ciclo eleitoral de 2020/21, esteja tão presente no debate público, em artigos de jornais e em posts nas redes sociais. Compreende-se que assim seja considerando que o actual incumbente não é candidato e que realmente vai-se ter um novo presidente. Para os partidos que entrementes vão se defrontar nas legislativas a preocupação logo à partida é se a candidatura presidencial escolhida será factor de coesão do partido e assim ter impacto positivo nos resultados ou de desunião com as consequências que se conhecem. As eleições presidenciais de 2011 foram instrutivas a esse respeito. Tudo isso torna muito sensível a gestão política do ciclo eleitoral que já está muito focalizado nas legislativas. De facto, nenhum candidato ao cargo irá querer esperar pelo resultado das legislativas para dar a conhecer as suas pretensões e trabalhar a sua base eleitoral. Imagine-se o que pode resultar de esforços conflituantes.
Não há dúvida que por estas e por outras razões o ano de 2020 poderá vir a revelar-se um ano difícil. E a acontecer não irá beneficiar de uma envolvente externa favorável. No plano internacional as incertezas amontoam-se à medida que os Estados Unidos procedem, sob a liderança de Donald Trump, ao efectivo desmantelamento da ordem mundial construída no pós-guerra. Guerras comerciais, impedimentos à circulação de pessoas, reconfiguração de cadeias de valor globais e enfraquecimento da vontade das nações face aos desafios globais como mudanças climáticas, pobreza e opressão são das grandes ameaças que no inicio da década todos vão ter que enfrentar. Sem excluir a possibilidade de guerras destruidoras fruto de rivalidades económicas, geopolíticas e ideológicas como os acontecimentos da semana passada no Médio Oriente e no Irão vieram relembrar com muita clareza.
A questão que se coloca é se o país está preparado para enfrentar choques que poderão resultar de qualquer perturbação do ambiente internacional de paz, de ordem e de livre comércio entre as nações. Não é líquido que esteja, nem parece que venha a estar enquanto se privilegiar o ilusionismo na política e se permitir que o exercício do poder fique refém da prática dos partidos políticos de captura e manutenção de clientelas. Fixa-se no presente, adia-se o futuro e os desafios do país nem são realmente identificados ou reconhecidos. Em pleno ciclo eleitoral, então, o desvio da realidade é maior.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 945 de 08 de Janeiro de 2020.
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