O Presidente da
República na sua mensagem instou a que se acelerem os mecanismos e se
apurem os instrumentos para se cumprir a Constituição. Todos os anos
repetem-se os apelos à oficialização, pede-se revisão constitucional
urgente e deixa-se entender que há “opositores de oficialização” a
enfrentar. Fica-se por saber é por que vias o Estado e o governo têm
promovido as condições para uma oficialização em paridade com o
português como comanda a Constituição. Pressionar todos anos para se
rever a Constituição não é promover condições. É procurar impor “facto consumado” para além de passar a culpa da inacção ou de falta de acção consequente para outros.
A verdade é que a partir da revisão da Constituição em 1999 com a introdução do artigo 9º sob a epígrafe “línguas oficiais” passou-se a referenciar o crioulo como tal. Reconhecendo existir dificuldades no seu uso na plenitude nas funções do Estado por razões que, entre outras, advêm de não se ter uma forma estandardizada de escrita, ficou estabelecido no nº2 do mesmo artigo 9º que o Estado deveria tomar medidas para as ultrapassar. Já no nº 3 consagrou-se logo o direito de todos de conhecer e de usar as duas línguas. Por isso é que ninguém se sente impedido ou inibido de usar o crioulo no país. O PR faz declarações em crioulo, debate-se no parlamento em crioulo, pode-se depor nos tribunais em crioulo e a administração pública não deixa de responder se a solicitação vem em crioulo. Também não se pode falar de estigma social derivado do uso da língua, quando pessoas de todos os extractos sociais e em todas as ilhas falam variantes do crioulo nas mais variadas circunstâncias.
Por tudo isso é evidente que não faz sentido estar a apontar pessoas como opositores da oficialização do crioulo. Em relação ao que a Constituição estabelece há consenso geral. O problema surge quando não se cumpre a parte de “promover as condições” e se faz fuga em frente não só com propostas de alterações constitucionais mas também forçando a sua adopção como língua de ensino. A justificação pela sua introdução urgente nas escolas em nome da qualidade do ensino, da melhoria do sistema de educação e dos processos de aprendizagem não convence e isso já é notório na forte preferência de muitos pais e alunos pela escola portuguesa e outras escolas privadas. Aliás, aconteceu algo similar noutras paragens nomeadamente em Madagáscar, Haiti e Curaçau onde as elites moveram os filhos para escolas francesas e holandesas logo que se impôs a língua malgaxe o crioulo haitiano e o papiamentu nas escolas públicas. Insistir nessa via naturalmente que cria “opositores” em todos aqueles que aflitos e sentindo-se impotentes vêm todos os dias a degradação do ensino e aprendizagem do português e seu impacto na qualidade do ensino ministrado no país às novas gerações.
Em Cabo Verde o crioulo ainda oficialmente não é língua de ensino, mas na prática o seu uso em todos os níveis de ensino, do básico à universidade, à discrição do professor, já afecta negativamente todo o processo de aprendizagem. Contraposto ao português em termos identitários gera resistências que impedem que as horas dedicadas ao português nas escolas se traduzam num domínio da língua que seja considerado satisfatório. De alguma forma ter-se-á falhado em passar às novas gerações o papel que as duas línguas tiveram na sedimentação de uma identidade cabo-verdiana como se pode ver, por exemplo, no papel do português na criação de uma literatura genuinamente cabo-verdiana e do crioulo na expressão da morna. O uso das duas línguas por todos os extractos sociais também indicia que não há uma relação antagonística, nem há necessidade de exclusão de uma para afirmação da outra.
De facto não se é mais cabo-verdiano falando só o crioulo e hostilizando o português. Para todos devia ser evidente que o português não é ameaça para o crioulo. Diferente do que se passa no Brasil e cada vez mais em outros países de língua oficial portuguesa, em Cabo Verde o português não é língua materna, possivelmente nunca foi e certamente que no futuro não será. Há quem queira ver no crioulo cabo-verdiano o resultado de alguma espécie de resistência cultural. O mais provável é que seja um produto peculiar do isolamento e da precariedade destas ilhas. De outra forma não se compreenderia por que em países como o Brasil, os Estados Unidos e outros países os “afrodescendentes” não tenham criado uma qualquer língua de resistência e pelo contrário acabaram por adoptar a língua do colonizador como língua materna. E o facto não o terem feito não os impede de, por exemplo, fazer do samba um fenómeno cultural genuíno e expressão viva de uma cultura brasileira única também toda ela expressa em português.
Semanas atrás o VPM e Ministro das Finanças no parlamento constatou que não há competência linguística em francês e inglês que seria necessária para que Cabo Verde pudesse investir numa relação proveitosa com a África. A essas insuficiências acrescenta-se a cada dia que passa a manifesta dificuldade dos cabo-verdianos em fazer uso do português. Tanto no país como no estrangeiro essas dificuldades estão a prejudicar em particular os jovens no prosseguimento dos estudos e na procura de emprego. Perante uma situação dessas o país devia já estar num estado de alarme e especialmente proactivo e enérgico na identificação da raiz deste problema que ameaça confinar e limitar as suas possibilidades de desenvolvimento. Infelizmente o que se vê na utilização do sistema educativo e da comunicação social pública e nos discursos de políticos é o contrário. Nota-se uma convergência em fazer do crioulo uma questão identitária, em procurar engajar os jovens numa luta contra a sua suposta desvalorização ao mesmo tempo que se faz um alerta para a existência de opositores, nas entrelinhas mentes colonizadas. Enquanto no Ruanda de Kagame se adopta o inglês como língua oficial para aumentar as chances de desenvolvimento do país aqui celebra-se a vitória do paroquialismo mais crasso.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 952 de 25 de Fevereiro de 2020.
A verdade é que a partir da revisão da Constituição em 1999 com a introdução do artigo 9º sob a epígrafe “línguas oficiais” passou-se a referenciar o crioulo como tal. Reconhecendo existir dificuldades no seu uso na plenitude nas funções do Estado por razões que, entre outras, advêm de não se ter uma forma estandardizada de escrita, ficou estabelecido no nº2 do mesmo artigo 9º que o Estado deveria tomar medidas para as ultrapassar. Já no nº 3 consagrou-se logo o direito de todos de conhecer e de usar as duas línguas. Por isso é que ninguém se sente impedido ou inibido de usar o crioulo no país. O PR faz declarações em crioulo, debate-se no parlamento em crioulo, pode-se depor nos tribunais em crioulo e a administração pública não deixa de responder se a solicitação vem em crioulo. Também não se pode falar de estigma social derivado do uso da língua, quando pessoas de todos os extractos sociais e em todas as ilhas falam variantes do crioulo nas mais variadas circunstâncias.
Por tudo isso é evidente que não faz sentido estar a apontar pessoas como opositores da oficialização do crioulo. Em relação ao que a Constituição estabelece há consenso geral. O problema surge quando não se cumpre a parte de “promover as condições” e se faz fuga em frente não só com propostas de alterações constitucionais mas também forçando a sua adopção como língua de ensino. A justificação pela sua introdução urgente nas escolas em nome da qualidade do ensino, da melhoria do sistema de educação e dos processos de aprendizagem não convence e isso já é notório na forte preferência de muitos pais e alunos pela escola portuguesa e outras escolas privadas. Aliás, aconteceu algo similar noutras paragens nomeadamente em Madagáscar, Haiti e Curaçau onde as elites moveram os filhos para escolas francesas e holandesas logo que se impôs a língua malgaxe o crioulo haitiano e o papiamentu nas escolas públicas. Insistir nessa via naturalmente que cria “opositores” em todos aqueles que aflitos e sentindo-se impotentes vêm todos os dias a degradação do ensino e aprendizagem do português e seu impacto na qualidade do ensino ministrado no país às novas gerações.
Em Cabo Verde o crioulo ainda oficialmente não é língua de ensino, mas na prática o seu uso em todos os níveis de ensino, do básico à universidade, à discrição do professor, já afecta negativamente todo o processo de aprendizagem. Contraposto ao português em termos identitários gera resistências que impedem que as horas dedicadas ao português nas escolas se traduzam num domínio da língua que seja considerado satisfatório. De alguma forma ter-se-á falhado em passar às novas gerações o papel que as duas línguas tiveram na sedimentação de uma identidade cabo-verdiana como se pode ver, por exemplo, no papel do português na criação de uma literatura genuinamente cabo-verdiana e do crioulo na expressão da morna. O uso das duas línguas por todos os extractos sociais também indicia que não há uma relação antagonística, nem há necessidade de exclusão de uma para afirmação da outra.
De facto não se é mais cabo-verdiano falando só o crioulo e hostilizando o português. Para todos devia ser evidente que o português não é ameaça para o crioulo. Diferente do que se passa no Brasil e cada vez mais em outros países de língua oficial portuguesa, em Cabo Verde o português não é língua materna, possivelmente nunca foi e certamente que no futuro não será. Há quem queira ver no crioulo cabo-verdiano o resultado de alguma espécie de resistência cultural. O mais provável é que seja um produto peculiar do isolamento e da precariedade destas ilhas. De outra forma não se compreenderia por que em países como o Brasil, os Estados Unidos e outros países os “afrodescendentes” não tenham criado uma qualquer língua de resistência e pelo contrário acabaram por adoptar a língua do colonizador como língua materna. E o facto não o terem feito não os impede de, por exemplo, fazer do samba um fenómeno cultural genuíno e expressão viva de uma cultura brasileira única também toda ela expressa em português.
Semanas atrás o VPM e Ministro das Finanças no parlamento constatou que não há competência linguística em francês e inglês que seria necessária para que Cabo Verde pudesse investir numa relação proveitosa com a África. A essas insuficiências acrescenta-se a cada dia que passa a manifesta dificuldade dos cabo-verdianos em fazer uso do português. Tanto no país como no estrangeiro essas dificuldades estão a prejudicar em particular os jovens no prosseguimento dos estudos e na procura de emprego. Perante uma situação dessas o país devia já estar num estado de alarme e especialmente proactivo e enérgico na identificação da raiz deste problema que ameaça confinar e limitar as suas possibilidades de desenvolvimento. Infelizmente o que se vê na utilização do sistema educativo e da comunicação social pública e nos discursos de políticos é o contrário. Nota-se uma convergência em fazer do crioulo uma questão identitária, em procurar engajar os jovens numa luta contra a sua suposta desvalorização ao mesmo tempo que se faz um alerta para a existência de opositores, nas entrelinhas mentes colonizadas. Enquanto no Ruanda de Kagame se adopta o inglês como língua oficial para aumentar as chances de desenvolvimento do país aqui celebra-se a vitória do paroquialismo mais crasso.
Humberto Cardoso
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