segunda-feira, abril 27, 2020

Transmissão comunitária, a nova etapa

O estado de emergência foi prolongado por mais 15 dias a partir do dia 18 de Abril, mas agora com alguma flexibilidade dependendo das ilhas, no que respeita às exigências do confinamento e à duração do mesmo. O surto de casos da Covid-19 constatados no dia 14 na ilha da Boa Vista em que, de um dia para o outro, o número de confirmados passou de 11 para 56 certamente que terão contribuído para a decisão do Presidente da República em declarar o estado de emergência.
Porém, os quinze dias estabelecidos para o prolongamento do período de excepção poderão, porém, vir a demonstrar-se insuficientes. Algo mudou. O sucesso aparente com que as autoridades vinham gerindo o avanço da pandemia em Cabo Verde foi posto em causa. À erupção de casos na Boa Vista seguiu-se um novo surto na Cidade da Praia, em parte com raízes nessa ilha turística. A dinâmica de casos na capital nos três últimos dias sugere um agravamento da Covid-19 que, a continuar, irá pôr à prova como nunca antes o sistema de saúde do país no que respeita à qualidade e à resiliência dos seus recursos e também à capacidade psicológica, humana e material das pessoas. E isso, face à adversidade inesperada, temível e sem fim em vista.
O que aconteceu no Hotel Riu Karamboa faz lembrar a odisseia do navio cruzeiro Diamond Princess até ser autorizado a entrar no porto de Yokohama no Japão. Em plena viagem foram identificados dez casos de infecção pelo coronavírus. Quando finalmente desembarcaram os passageiros 700 pessoas estavam infectadas. A quarentena tinha falhado completamente e o vírus pôde circular quase que à vontade porque não foram rigorosamente postas em prática as indispensáveis medidas de higiene, de distanciamento social e confinamento que a situação exigia. Algo semelhante ter-se-à verificado no hotel da Boa Vista. Por causa de um turista infectado e posterior descoberta de um trabalhador contaminado 196 pessoas foram postas em quarentena. No fim do suposto confinamento de 25 dias, 45 foram descobertos com o coronavírus e posteriormente reconduzidos para isolamento, ficando os restantes em nova quarentena.
O problema é o hiato entre o momento em que os saídos do hotel foram para casa e o momento em que são chamados de volta pelas autoridades sanitárias. Ninguém sabe quantos mais foram infectados no intervalo em que estiveram com a família e amigos, possivelmente em festas e outras celebrações pela liberdade reconquistada. A partir daí o mais natural é recear-se pelo que poderá acontecer com a população em geral da ilha, a começar pelo bairro que a maioria habita. A ida e permanência por um total de 15 dias do Ministro da Administração Interna armado de novos poderes expressamente delegados pelo primeiro-ministro traduz a severidade da situação e a urgência em conter a transmissão do vírus. O aparecimento de casos na Praia ligados a pessoas infectadas na Boa Vista deixa saber que a contenção não está a ser perfeita e que efectivamente falhou, assim como tinha falhado a quarentena do Hotel Karamboa.
No assacar de responsabilidades os trabalhadores foram particularmente visados por alegadamente não terem seguidos as recomendações das autoridades. O facto, porém, é que levados para uma quarentena de quinze dias, algo correu mal e apareceram casos positivos e, na sequência, foram forçados a um novo confinamento que acabaram por cumprir em parte. Saíram para a comunidade com a autorização oficial sem que tivessem os resultados dos testes da Covid-19 que poucos dias antes tinham feito. Como aconteceu com o barco cruzeiro Diamond Princess parece evidente que a gestão da quarentena não foi a melhor. Pode-se culpabilizar as pessoas pelo comportamento e por não seguir as indicações dadas, mas não se pode descurar que a comunicação poderá não ter sido a melhor. A exemplo do que se passou noutros países, talvez não se tenha dado a devida atenção a muitas das crenças e preconceitos em relação à Covid-19 que muitos desenvolveram nestes meses da pandemia. Há quem pense, por exemplo, que a doença é dos brancos, dos velhos e dos climas frios.
Nos Estados Unidos tais crenças terão contribuído para algum descaso de elementos da comunidade afro-americana em relação às mensagens das autoridades sanitárias. Esse facto associado a outros factores estará, segundo alguns estudiosos, por detrás do número desproporcional de fatalidades entre os afro-mericanos nalgumas cidades, de cerca de 70% quando a comunidade compraz só cerca de 30% da população. Não é pois de espantar que jovens ou gente relativamente jovem não dê a devida atenção às recomendações. Pode-se ver nos dados do site covid19.cv que em Cabo Verde até agora os infectados pelo coronavírus são maioritariamente dos grupos etários dos vinte, trinta e quarenta anos. Há alguns teenagers e dois com mais de sessenta. Muitos são assimptomáticos, outros a doença não se tem tornado crítica e não há registo de mortes da Covid-19 para além do inglês.
A comunicação nestas condições encontra barreiras que têm de ser ultrapassadas para se conseguir o resultado que se quer de proteger os grupos vulneráveis e impedir que o sistema de saúde do país seja sobrecarregado com os casos mais graves da doença. Isso faz particular sentido no momento actual em que as autoridades já falam em transmissão comunitária. O coronavírus deixou de ser vírus importado ou de casos positivos encontrados em alguns trabalhadores de hotéis, na generalidade jovens e saudáveis, para ser agente de doença nos pais e avós e nas pessoas com doenças crónicas e outras debilidades com consequências gravosas. É preciso que se tenha bem presente a nova etapa que se está a entrar na luta contra a pandemia e o efeito que pode ter nas pessoas, na sociedade e no país.
Combater eventual pânico que poderá surgir exigirá que se reforçe a confiança das autoridades na luta contra a pandemia. Erros cometidos devem ser reconhecidos e assumidos. Mais competência científica, estratégica e executiva deve ser mobilizada. Espera-se mais proactividade na identificação de casos e no desmantelamento de cadeias de contágio. A comunicação deve ser melhorada para conseguir colaboração da população em particular dos mais novos e evitar depender exageradamente de medidas coercivas para atingir os objectivos de distanciamento social e confinamento dos mais vulneráveis. Finalmente, porque não se aproveitaram as medidas de excepção para conter a pandemia é que a transmissão comunitária está a acontecer, pelo menos em duas ilhas, de forma abrupta e potencialmente perigosa. Complacência, falta de autoridade e falta de sensibilidade no tratamento das situações prejudicaram as populações e o país em situações críticas no passado. Não se queira que isso venha acontecer quando o que está em jogo é a própria vida. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 960 de 22 de Abril de 2020.

segunda-feira, abril 20, 2020

Pensar estratégias de saída

Está prestes a chegar ao fim o estado de emergência decretado pelo presidente da república no dia 29 de Março. Os casos de Covid-19 já ultrapassaram uma dezena e as pessoas em quarentena, por razões ligadas aos casos diagnosticados, estão acima das quinhentas, 216 em S. Vicente e as restantes na ilha da Boa Vista.
Com o número de testes realizados ainda pouco expressivo, 116 pessoas até sexta-feira, 9 de Abril, dificilmente se pode albergar certezas quanto à percentagem da população que eventualmente já terá tido algum tipo de contacto com o coronavírus. Muito menos se terá ideia da sua presença nas diferentes ilhas e dos riscos associados que representará para a população. Em fins de Março, quando o perigo de contágio aparentava ser ainda incipiente com um único caso na Boa Vista, foi-se avante com o estado de emergência e paralisação de grande parte da economia na sequência da imposição do distanciamento social e de restrições na circulação de pessoas. Agora, perante a situação de aparente sucesso na mitigação da Covid-19, põe-se o problema de dar ou não continuidade ao estado de emergência.
Há quem considere que a medida tomada logo nos primeiros casos foi crucial para que a progressão dos infectados se ter mantido tão baixa. Outros consideram que poderá ter sido precipitado. O que parece não haver dúvidas é que com o país já colocado na posição defensiva face ao vírus, num esforço de quebrar cadeias de contágio que venham a aparecer, não se deva continuar para mais algum tempo com as políticas de distanciamento social e de confinamento dos mais vulneráveis. Poder-se-á ponderar se se deve continuar a aplicar essas medidas com o mesmo grau em todo o país ou se deverá ter-se em devida consideração a condição de ilhas, a relativa facilidade em controlar a movimentação entre elas e o nível diferente de risco de contágio que por razões várias elas incorrem. A fragilidade associada a uma forte informalidade da economia cabo-verdiana torna particularmente difícil para uma parte expressiva da população garantir o mínimo em situação de restrição de circulação e exigência de confinamento. A par disso, o país não tem recursos nem tem uma rede social com abrangência suficiente para chegar a todos os que realmente precisam de apoio.
O dilema de Cabo Verde não difere muito do que é vivido noutros países. Todos se sentem obrigados a salvar o maior número de pessoas afligidas com a Covid-19 ao mesmo tempo que procuram garantir que ainda terão uma estrutura económica de pé quando a pandemia passar. Nesse sentido, a tendência geral tem passado por medidas extremas como a declaração do estado de emergência e a imposição do distanciamento social na expectativa de ganhar tempo. Quer-se evitar que o sistema de saúde sucumba face à procura por parte dos infectados e também dar tempo para se encontrar algum remédio para tratar a doença ou se desenvolver uma vacina. Estabelecido o distanciamento social, a estratégia para lidar com a pandemia difere de país para país (Coreia do Sul, Espanha) e até às vezes dentro do mesmo país (Itália, Estados Unidos) com resultados diametralmente opostos, em particular no número de mortes. E a verdade que os factos vêm revelando é que quem mais ganha, aproveitando as medidas de excepção, age proactivamente para testar a população e identificar focos de infecção e contágio e consegue confiná-los.
Caso para estranhar que o número de testes realizados em Cabo Verde até o fim de semana passado não passem de 116, um número exíguo que provavelmente não traduz uma proactividade na realização de testes que podiam dar uma imagem mais exacta da situação da Covid-19 no país. E não é por falta de testes considerando que a Fundação Jack Ma ofereceu 20 mil kits que vieram juntar-se aos 5 mil kits já em stock. Outrossim, é um facto constatado em vários países que o alto grau de contágio do coronavírus associado à existência de pessoas pré- sintomáticas e assintomáticas na população, mas capazes de transmitir a doença, dificulta uma resposta adequada à epidemia na ausência de testes abrangentes e sistemáticos. Nesse sentido, não ser proactivo nos testes acaba por configurar um desperdício de um tempo extra doado com sacrifício por todos no âmbito da aplicação de medidas de distanciamento social e confinamento.
Existe a possibilidade que, passada esta primeira vaga da Covis-19, outras poderão vir enquanto não se conseguir uma imunidade de grupo ou não se disponibilizar uma vacina. Desenvolver uma estratégia para lidar com a situação num ou noutro sentido passa por um conhecimento da real situação da exposição da população ao vírus que pode implicar o uso não só do teste actual que identifica o vírus como também o do chamado teste serológico que reconhece os anticorpos criados na luta travada contra a doença por pessoas tanto sintomáticas como assintomáticas. A uma economia frágil como a cabo-verdiana não é possível submetê-la a paragens e recomeços sucessivos para responder a vagas da Covid-19. O sacrifício actual tem que ser bem aproveitado e, se mostrar necessário, alargado mais alguns dias ou semanas para não se ter de o repetir depois.
O tempo ganho também deve ser aproveitado para planear um novo arranque da economia nacional num cenário de maior desemprego e de menor rendimento devido à quebra no fluxo turístico e o enfraquecimento de sectores económicos ligados ao turismo. Cenário esse a que se pode juntar a fragilidade económica de sectores que se viram impossibilitados de conduzir os seus negócios quando vigoravam as medidas de confinamento e as restrições na circulação. Com o fim da pandemia vão se deparar com menos liquidez no mercado e incertezas várias devido a consumidores com pouca posse e investidores renitentes face às perspectivas de negócios. As medidas do governo viradas para restaurar alguma liquidez, seja do lado da oferta com as linhas de crédito, moratórias e facilidades nas contribuição para a segurança social, seja do lado da procura procurando assegurar emprego e rendimentos às pessoas, têm um efeito necessariamente limitado. Não vão poder, de repente, substituir o impacto que a procura turística tinha sobre os vários sectores da economia.
O recomeço não será fácil e há necessidade de o planear e bem. Mais uma razão para se ser efectivo na contenção do coronavírus e deixar o país mais bem preparado para enfrentar futuras pandemias. Nestes tempos de globalização e da Covid-19 é cada vez maior o foco que se coloca na necessidade de construir mais resiliência, apostar mais na diversificação e investir decisivamente nos recursos humanos. A experiência traumática desta pandemia deve ser incentivo suficiente para se dedicar à tarefa com outra energia, clarividência e o sentimento de que não há mais tempo a perder.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 959 de 15 de Abril de 2020.

segunda-feira, abril 13, 2020

Confiança em tempo de crise

O cientista político americano Francis Fukuyama escrevendo na revista The Atlantic chamou a atenção para a importância da confiança nestes tempos de excepção e de luta contra a pandemia da Covid-19.
Para ele, independentemente da natureza dos regimes políticos serem mais ou menos autocráticos ou mais ou menos democráticos, o sucesso no combate ao coronavírus vai depender do grau de confiança que os líderes e as instituições do Estado conseguirem granjear junto da população. E isso consegue-se demonstrando sistematicamente competência na formulação das políticas e capacidade executiva de as implementar. Imprescindível também é mostrar disposição para lidar em tudo o que respeita à crise com verdade, transparência e sabedoria na utilização dos meios respeitando o princípio de proporcionalidade e da necessidade. Nesse sentido, o governo que quer ser efectivo na gestão da crise é aquele que tudo faz para merecer a confiança das pessoas porque dessa forma pode potenciar com vantagens o espírito de colaboração, o civismo e a solidariedade que nessas circunstâncias brota naturalmente das pessoas. Há porém muitos empecilhos nesse caminho.
Em situações de emergência muito poder é colocado nas mãos do executivo para responder à calamidades e perturbações graves da vida em sociedade. Como se constata um pouco por todo o mundo, a tentação do poder é forte e não faltam líderes querendo tornar permanente alguns dos poderes ganhos na crise. Nota-se isso nas autocracias que, com a pandemia, querem reforçar o seu controlo das suas sociedade mas acontece também nas democracias e em todos os continentes. Os exemplos mais salientes são os da Hungria e, ultimamente, de Israel, mas na generalidade dos casos pode-se ver que o sonho é governar por decreto e no processo reduzir o papel do parlamento a simples ratificação dos actos do executivo, descredibilizar os órgãos de comunicação social em nome de luta contra os fake news e aumentar o controlo das pessoas com recurso às novas tecnologias. Até na Suécia o governo, na semana passada, procurou autorização para funcionar por decreto durante o estado de emergência. O pedido foi rejeitado mas na Hungria uma proposta do mesmo teor já tinha sido aceite.
Em Cabo Verde não parece que haja algo similar. O estado de emergência está rodeado de salvaguardas para garantir que depois de resolvida a crise se faça o regresso à normalidade de forma tranquila. Limita-se porém ao que está directamente na Constituição. Não beneficia de outras salvaguardas que poderiam ter sido introduzidas por uma lei reforçada da AN como determina a Constituição. E isso não é bom, como se pode ver da situação dos deputados da UCID que ficaram impedidos de participar nas reuniões plenárias, quando em antecipação às restrições na circulação inter-ilhas não se acautelou a presença de todos os deputados e partidos eleitos para garantir o normal e contínuo trabalho do órgão de soberania. Aliás, da mesma forma, na rapidez da decisão de restringir a circulação, não parece que se tomou em devida conta que muitos cidadãos em viagem ou em trânsito pelas ilhas quando impedidos de continuar a viagem ou de regressar à ilha ficariam numa situação extremamente difícil.
Curiosamente, a lei de 27/10/1990, que estabelece o regime de estado de sítio e de estado de emergência, na alínea c do artigo 7, já determinava que quando há interdição do trânsito das pessoas cabe às autoridades assegurar os meios necessários no tocante ao transporte, alojamento e manutenção dos cidadãos afectados. Não existindo actualmente tais salvaguardas numa lei própria, viu-se o resultado na situação dos condutores de carrinhas de Santo Antão que ficaram retidos em S. Vicente na sexta-feira passada devido à restrição inesperada das ligações entre as duas ilhas. A 27 de Março último já tinha acontecido o mesmo a muitas pessoas nas diferentes ilhas do país. As lacunas estendem-se a outros domínios entre eles os que devem assegurar um reforço da fiscalização da legalidade ao longo de todo o estado de emergência. Para isso, devia-se garantir o funcionamento da Procuradoria-Geral da República e da Provedoria da Justiça em sessão permanente com vista à defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos.
Conquistar e manter a confiança nos governantes durante estados de excepção tem esse pilar importante que é o de explicitamente revelar as garantias que de facto a democracia não foi suspensa e que não haverá uma contracção permanente das liberdades. Um outro pilar importante é a gestão competente da situação para se evitar o pior e para fazer as pessoas regressarem às suas vidas o mais cedo possível. Todos predispõem-se a fazer os sacrifícios necessários, no caso presente, o confinamento domiciliário associado ao distanciamento social, mas querem ver o tempo ganho por esse esforço extremo de quebra na transmissão do coronavírus devidamente aproveitado pelas autoridades na identificação de focos de contágio seguido de isolamento e posterior destruição dos mesmos. O sacrifício colectivo justifica-se com isso e também com todos os ganhos conseguidos na melhoria e equipamento do sistema de saúde e das condições de trabalho dos seus profissionais.
Por isso é que o que aconteceu em S. Vicente com o caso positivo da Covid-19 não pode repetir-se em nenhum outro ponto do país. Saber pelos relatos vindos a público de tantos atropelos ao que devia ser o protocolo seguido à risca nesta pandemia por todos e em particular as estruturas e os profissionais da saúde, não é reconfortante. Nem tão pouco é ver que o circuito seguido pela doente nas estruturas de saúde aumentou extraordinariamente o risco de contágio e a possibilidade de haver um surto na ilha com todas as consequências que daí podem advir. O caso de S. Vicente veio pôr em foco deficiências várias, em particular o facto de só num laboratório na Praia se conseguir ter resultados dos testes. Com as ligações entre ilhas muito limitadas e os resultados dos testes adiados dificilmente se consegue suprimir um foco de contágio antes de se espalhar. Imagine-se o tempo perdido, mais de quatro dias no caso da senhora com a Covid-19 em S. Vicente, que se tem tido entre a identificação, confirmação e subsequente investigação da origem e cadeia de contágio quando se tem tamanhos constrangimentos.
A revelação desses constrangimentos deve relançar o governo para a acção para os eliminar ou contornar de melhor forma. O ideal seria que todas as ilhas tivessem capacidade para realizar testes. Na falta disso, todas devem poder conhecer o resultado no mesmo dia. A gestão dos recursos disponíveis terá que contemplar disponibilidade em todas as ilhas de máscaras, fatos de protecção, testes e ventiladores. A fragilidade do país em meios aéreos e marítimos com a função de busca e salvamento e de meio de resposta em situação de calamidade no país ou em qualquer ilha ficou completamente exposta. Há que reflectir e agir resolutamente para ultrapassar este estado de coisas. Confiança ganha-se e é mantida na relação com os cidadãos se resultados concretos e no tempo certo são conseguidos e se se corta definitivamente com a prática de atirar os problemas para debaixo do tapete.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 958 de 8 de Abril de 2020.

segunda-feira, abril 06, 2020

Cabo Verde em lockdown

Cabo Verde encontra-se em estado de emergência desde de 29 de Março. Onze dias antes, a 18 de Março, o governo já tinha colocado o país em estado de contingência para melhor se preparar para o impacto do coronavírus. A forma como a epidemia se alastrava pelo mundo não tardaria muito a chegar a Cabo Verde. Dois dias depois foi confirmado um caso positivo na Boa Vista que acabou por resultar na primeira morte com Covid-19 seguido de mais um outro caso também de um turista.
Na ilha, entretanto posta de quarentena, acabou por aparecer um caso de contágio local obrigando o governo a elevar o nível de alerta para o de risco de calamidade pública com efeito a partir de 26 de Março. Na ocasião o primeiro-ministro fez saber a intenção do presidente da república em declarar estado de emergência, uma posição que ele logo prontificou-se a apoiar. Bastava então uma autorização da Assembleia Nacional que normalmente deveria ser concedida pelo plenário dos deputados depois do debate da proposta do PR. Optou-se por acelerar o processo recorrendo à Comissão Permanente da Assembleia Nacional, deixando para a reunião seguinte do parlamento a ratificação da autorização. A justificação por esse processo acelerado foi encontrada na necessidade de munir o governo dos instrumentos para enfrentar o coronavírus e implementar o distanciamento social indispensável para quebrar as cadeias de transmissão.
Como acontece nessas situações delicadas, nem todos estão de acordo com a forma como as coisas se passaram mesmo reconhecendo a urgência de acção para conter o vírus. Em pouco tempo foram percorridos todos os níveis de estado de alerta previstos pela lei de protecção civil para se concluir que afinal o que mais convinha era um estado de excepção que acarretaria a suspensão de direitos fundamentais. O problema é que já não se tratava de um simples agravamento no estado de alerta do país, mas de alterações temporárias na ordem constitucional para enfrentar uma calamidade pública. Por isso é que nos países democráticos a declaração do estado de emergência é sempre precedida de muito debate público apesar de todos reconhecerem a gravidade da situação actual marcada por centenas de milhares de infectados e dezenas de milhares de mortes. É o que se tem visto na Itália, Portugal, Espanha, Alemanha e nos Estados Unidos. As democracias liberais são ciosas das suas liberdades, do seu pluralismo e da separação de poderes e não dão acordo a estados de excepção sem um escrutínio apertado do processo de decisão seguido do controlo da implementação das medidas e de uma fiscalização rigorosa. E isso é particularmente verdade nestes tempos em que tentações diversas umas iliberais, outras autocráticas e outras ainda populistas proliferam por aí.
O presidente Jorge Carlos Fonseca na sua mensagem à Nação e em declarações posteriores para tranquilizar os críticos sentiu necessidade de assegurar a todos que não há apagão ou suspensão da democracia. Compreende-se que haja apreensões. Em Portugal a semana que antecedeu a declaração do estado de emergência foi extremamente rica em debates em todos os órgãos de comunicação social e com participação de constitucionalistas, personalidades diversas e jornalistas. O próprio primeiro-ministro manifestou as suas dúvidas quanto à necessidade de se ir para um estado de excepção logo que o presidente da república lhe manifestou a intenção de o declarar. O governo acabou por anuir e o parlamento a autorizar. Em Cabo Verde foi tudo muito rápido apesar da situação do coronavírus então com apenas três casos positivos ser muito diferente da encontrada nesses países quando foram forçados a declarar estado emergência. É verdade que se pode aprender com a experiência dos outros e antecipar na acção, mas há que ter atenção nos atalhos escolhidos que podem trazer consequências imprevistas e indesejáveis.
A rapidez pretendida não esperou que o parlamento se reunisse e apreciasse em plenário a proposta do PR. Embora a Comissão Permanente possa excepcionalmente substituir o plenário, o debate não é o mesmo e as decisões têm que ser posteriormente ratificadas. Uma primeira declaração de estado de emergência na democracia devia ser rodeada de cuidados especiais, particularmente quando até agora o país não foi dotado de um regime de estado de sítio e de estado de emergência que regulamentasse entre outros aspectos o processo de regresso à normalidade da ordem constitucional. Essa lei de competência absolutamente reservada da Assembleia Nacional e aprovada por uma maioria qualificada de dois terços dos deputados já deveria existir. Na sua ausência para uma maior lisura do processo devia ser o plenário da AN a tomar uma decisão de tão grande importância. A democracia cabo-verdiana ainda apresenta fragilidades com instituições condicionadas pela excessiva crispação política, uma cidadania não suficiente activa e atenta e uma estrutura económica e social dependente do Estado. E como se vê lá fora, apetites, tentações e protagonismos não são de ignorar principalmente quando face a calamidades o pânico pode levar as pessoas a sacrificarem a liberdade em nome de uma segurança ilusória.
A razão de fundo para o estado de emergência é conseguir o chamado ”distanciamento social” que permite que se quebrem cadeias de transmissão do coronavírus em todo o país. Para isso o governo precisa de meios para deixar a economia a funcionar apenas no essencial enquanto congela por completo eventos sociais e culturais que incentivam as pessoas a se encontrarem. No entrementes tem que encontrar recursos e criar canais de solidariedade para garantir o rendimento básico para todos ao mesmo tempo que cria incentivos e propõe medidas para o relançamento da economia. Não será uma tarefa fácil. A experiência de outros países mostra que algum sucesso nessa luta difícil de conter o contágio passa por, em simultâneo com o distanciamento social, ser-se capaz de identificar surtos do vírus na população, isolar os que não apresentam sintomas e tratar os casos complicados. Tem pois que haver uma acção proactiva muito forte das autoridades sanitárias para realizar testes e proceder em conformidade com os resultados com rapidez e competência. Assim o esperam todos os que nas próximas semanas procuram cumprir com as exigências do distanciamento social.
Felizmente que da China através da Fundação Jack Ma vieram 20 mil kits de testes, 100 mil máscaras cirúrgicas, mil máscaras faciais e mil fatos de protecção para os profissionais de saúde. Que as autoridades façam o melhor uso desse material para obter uma imagem mais precisa da situação do país e evitar uma sobrecarga dos serviços hospitalares. Mas a preparação para momentos mais difíceis deve continuar explorando o canal já aberto com a China e também com outros parceiros. Uma carência identificada por algumas empresas nacionais foi a dos ventiladores que num gesto de solidariedade forneceram algumas unidades. Espera-se que venham mais exemplos do mesmo tipo que ajudem os serviços de saúde a se equiparem adequadamente para responder em particular à população mais vulnerável do país que vier a ser afligida pelo coronavírus. O sacrifício que para todos significa o estado de emergência justificar-se-á se se traduzir em ondas de solidariedade que contribuirão para o sucesso de todo esse esforço colectivo para a contenção da Covid-19. Quanto melhor cada um fizer a sua parte, mais depressa se voltará à plena liberdade que todos acalentam e que não querem pôr em perigo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 957 de 1 de Abril de 2020.