Cabo Verde encontra-se em estado de emergência desde
de 29 de Março. Onze dias antes, a 18 de Março, o governo já tinha
colocado o país em estado de contingência para melhor se preparar para o
impacto do coronavírus. A forma como a epidemia se alastrava pelo mundo
não tardaria muito a chegar a Cabo Verde. Dois dias depois foi
confirmado um caso positivo na Boa Vista que acabou por resultar na
primeira morte com Covid-19 seguido de mais um outro caso também de um
turista.
Na ilha, entretanto posta de
quarentena, acabou por aparecer um caso de contágio local obrigando o
governo a elevar o nível de alerta para o de risco de calamidade pública
com efeito a partir de 26 de Março. Na ocasião o primeiro-ministro fez
saber a intenção do presidente da república em declarar estado de
emergência, uma posição que ele logo prontificou-se a apoiar. Bastava
então uma autorização da Assembleia Nacional que normalmente deveria ser
concedida pelo plenário dos deputados depois do debate da proposta do
PR. Optou-se por acelerar o processo recorrendo à Comissão Permanente da
Assembleia Nacional, deixando para a reunião seguinte do parlamento a
ratificação da autorização. A justificação por esse processo acelerado
foi encontrada na necessidade de munir o governo dos instrumentos para
enfrentar o coronavírus e implementar o distanciamento social
indispensável para quebrar as cadeias de transmissão.Como acontece nessas situações delicadas, nem todos estão de acordo com a forma como as coisas se passaram mesmo reconhecendo a urgência de acção para conter o vírus. Em pouco tempo foram percorridos todos os níveis de estado de alerta previstos pela lei de protecção civil para se concluir que afinal o que mais convinha era um estado de excepção que acarretaria a suspensão de direitos fundamentais. O problema é que já não se tratava de um simples agravamento no estado de alerta do país, mas de alterações temporárias na ordem constitucional para enfrentar uma calamidade pública. Por isso é que nos países democráticos a declaração do estado de emergência é sempre precedida de muito debate público apesar de todos reconhecerem a gravidade da situação actual marcada por centenas de milhares de infectados e dezenas de milhares de mortes. É o que se tem visto na Itália, Portugal, Espanha, Alemanha e nos Estados Unidos. As democracias liberais são ciosas das suas liberdades, do seu pluralismo e da separação de poderes e não dão acordo a estados de excepção sem um escrutínio apertado do processo de decisão seguido do controlo da implementação das medidas e de uma fiscalização rigorosa. E isso é particularmente verdade nestes tempos em que tentações diversas umas iliberais, outras autocráticas e outras ainda populistas proliferam por aí.
O presidente Jorge Carlos Fonseca na sua mensagem à Nação e em declarações posteriores para tranquilizar os críticos sentiu necessidade de assegurar a todos que não há apagão ou suspensão da democracia. Compreende-se que haja apreensões. Em Portugal a semana que antecedeu a declaração do estado de emergência foi extremamente rica em debates em todos os órgãos de comunicação social e com participação de constitucionalistas, personalidades diversas e jornalistas. O próprio primeiro-ministro manifestou as suas dúvidas quanto à necessidade de se ir para um estado de excepção logo que o presidente da república lhe manifestou a intenção de o declarar. O governo acabou por anuir e o parlamento a autorizar. Em Cabo Verde foi tudo muito rápido apesar da situação do coronavírus então com apenas três casos positivos ser muito diferente da encontrada nesses países quando foram forçados a declarar estado emergência. É verdade que se pode aprender com a experiência dos outros e antecipar na acção, mas há que ter atenção nos atalhos escolhidos que podem trazer consequências imprevistas e indesejáveis.
A rapidez pretendida não esperou que o parlamento se reunisse e apreciasse em plenário a proposta do PR. Embora a Comissão Permanente possa excepcionalmente substituir o plenário, o debate não é o mesmo e as decisões têm que ser posteriormente ratificadas. Uma primeira declaração de estado de emergência na democracia devia ser rodeada de cuidados especiais, particularmente quando até agora o país não foi dotado de um regime de estado de sítio e de estado de emergência que regulamentasse entre outros aspectos o processo de regresso à normalidade da ordem constitucional. Essa lei de competência absolutamente reservada da Assembleia Nacional e aprovada por uma maioria qualificada de dois terços dos deputados já deveria existir. Na sua ausência para uma maior lisura do processo devia ser o plenário da AN a tomar uma decisão de tão grande importância. A democracia cabo-verdiana ainda apresenta fragilidades com instituições condicionadas pela excessiva crispação política, uma cidadania não suficiente activa e atenta e uma estrutura económica e social dependente do Estado. E como se vê lá fora, apetites, tentações e protagonismos não são de ignorar principalmente quando face a calamidades o pânico pode levar as pessoas a sacrificarem a liberdade em nome de uma segurança ilusória.
A razão de fundo para o estado de emergência é conseguir o chamado ”distanciamento social” que permite que se quebrem cadeias de transmissão do coronavírus em todo o país. Para isso o governo precisa de meios para deixar a economia a funcionar apenas no essencial enquanto congela por completo eventos sociais e culturais que incentivam as pessoas a se encontrarem. No entrementes tem que encontrar recursos e criar canais de solidariedade para garantir o rendimento básico para todos ao mesmo tempo que cria incentivos e propõe medidas para o relançamento da economia. Não será uma tarefa fácil. A experiência de outros países mostra que algum sucesso nessa luta difícil de conter o contágio passa por, em simultâneo com o distanciamento social, ser-se capaz de identificar surtos do vírus na população, isolar os que não apresentam sintomas e tratar os casos complicados. Tem pois que haver uma acção proactiva muito forte das autoridades sanitárias para realizar testes e proceder em conformidade com os resultados com rapidez e competência. Assim o esperam todos os que nas próximas semanas procuram cumprir com as exigências do distanciamento social.
Felizmente que da China através da Fundação Jack Ma vieram 20 mil kits de testes, 100 mil máscaras cirúrgicas, mil máscaras faciais e mil fatos de protecção para os profissionais de saúde. Que as autoridades façam o melhor uso desse material para obter uma imagem mais precisa da situação do país e evitar uma sobrecarga dos serviços hospitalares. Mas a preparação para momentos mais difíceis deve continuar explorando o canal já aberto com a China e também com outros parceiros. Uma carência identificada por algumas empresas nacionais foi a dos ventiladores que num gesto de solidariedade forneceram algumas unidades. Espera-se que venham mais exemplos do mesmo tipo que ajudem os serviços de saúde a se equiparem adequadamente para responder em particular à população mais vulnerável do país que vier a ser afligida pelo coronavírus. O sacrifício que para todos significa o estado de emergência justificar-se-á se se traduzir em ondas de solidariedade que contribuirão para o sucesso de todo esse esforço colectivo para a contenção da Covid-19. Quanto melhor cada um fizer a sua parte, mais depressa se voltará à plena liberdade que todos acalentam e que não querem pôr em perigo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 957 de 1 de Abril de 2020.
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