A rapidez com que Cabo Verde se
posiciona para diminuir as restrições que impõem o confinamento e
obrigam ao distanciamento social quando comparado com outros países que
já passaram pela pandemia causa alguma apreensão. A erupção do vírus na
Boa Vista há duas semanas seguida dos casos de transmissão comunitária
em Santiago na semana seguinte deixa a impressão de que agora é que a
pandemia está a fazer a sua passagem pelo país. Se for o caso, não será o
melhor momento para relaxar nos constrangimentos mas, pelo contrário,
para se preparar para o embate identificando os focos de infecção e
impedindo a criação de cadeias de contágio.
É verdade que não se confirmaram quaisquer casos em seis ilhas e que o caso único de S.Vicente surpreendentemente não conduziu, pelo menos até agora, a qualquer contágio identificável. Não se pode porém dizer que realmente se conhece a situação sanitária nessas ilhas. O número de testes realizados e a metodologia seguida na realização dos mesmos, “o correr atrás do vírus” dificilmente permitiria que se tivesse uma imagem certa da covid-19 no país e muito menos em cada ilha em particular. Não se sabendo precisamente o ponto da situação, com a diminuição das restrições corre-se o risco de ficar nas pessoas a ideia de que o pior já passou. E é próprio da natureza humana que não se descortinando perigo imediato no horizonte as pessoas adoptem com facilidade posturas mais relaxadas especialmente após quase quatro semanas de um confinamento sem precedentes na história do país.
Por isso mesmo é que a programação da diminuição de restrições deve ser feita e comunicada cuidadosamente para evitar que os ganhos conseguidos em habituar as pessoas ao “novo normal” não se perca na ilusão de regresso à normalidade anterior. Mesmo na Nova Zelândia em que, segundo a primeira-ministra Jacinda Ardern, a covid-19 praticamente foi eliminada, houve a preocupação de dizer às pessoas que foi ganha uma batalha, mas não a guerra e que o vírus pode voltar e singrar na população se novos hábitos não forem instituídos. Lá como cá a alternativa à existência de um alto sentido cívico e de dever para com o colectivo seria ficar a fechar e a abrir o país conforme as necessidades de combate ao coronavírus. Os custos porém acabariam por ser demasiado elevados.
Em todos os países que enfrentam a actual pandemia a questão de salvar as pessoas ao mesmo tempo que se procura preservar uma base económica para uma retoma de crescimento no futuro põe-se com grande acuidade. Cabo Verde não foge à regra com a diferença que a ponderação exigida na consecução desse objectivo é tarefa mais desafiante considerando as fragilidades do país e a sua dependência de um turismo que vai levar o seu tempo para se reconstruir e atingir o nível anterior. No país, à vulnerabilidade do mundo rural tornada maior pelos três anos de seca vieram juntar-se perdas de rendimentos de muitos outros devido aos constrangimentos que a covid-19 trouxe para a prática da economia informal e ao desemprego gerado pela paralisia da actividade turística e de outras actividades por ela dinamizadas. Sair do buraco não vai ser fácil particularmente quando a nível internacional está-se a falar do maior desastre económico desde a depressão dos anos 1930.
É um facto que crises oferecem muitas vezes oportunidades para mudanças importantes e até de dimensão histórica nos comportamentos, cultura institucional e selecção de prioridades. Cabo Verde parece ser um caso de excepção a essa regra. O país já passou por várias emergências nacionais algumas delas recentemente, caso da erupção do vulcão do Fogo, naufrágio do navio Vicente e o massacre de Monte Tchota. Não há muita evidência de que o país nestes anos todos se preparou para responder às exigências de um país arquipelágico em matéria de segurança, protecção contra calamidades e capacidade de apoio directo e imediato às populaçôes numa emergência. Vezes repetidas foram permitidos que interesses corporativos, protagonismos pessoais e outras razões espúrias se sobrepusessem a tudo o resto.
E mais uma vez a história parece repetir-se. Apesar do aparato montado, do dinheiro gasto e do protagonismo pessoal dos governantes e de outras autoridades alguns erros potencialmente catastróficos acontecem. Foi o que se passou na Boa Vista que num dia descobriu-se que tinha mais 45 casos confirmados e que dias depois foi dada como suposta origem da infecção que lançou Santiago para o topo dos casos confirmados da covid-19 em Cabo Verde. Acrescenta-se ainda que embora sem casos graves da doença que implicam maior exposição de profissionais de saúde já há exemplos de médicos e outros profissionais infectados, deixando transparecer nessas e noutras situações falhas graves nos protocolos que deviam ser rigorosamente seguidos no atendimento de doentes em tempos da covid-19.
A um outro nível nota-se um padrão no funcionamento e na relação entre os órgãos de soberania que foge à normalidade baseada no respeito pelo princípio da separação de poderes. O parlamento é praticamente suspenso durante o estado de emergência, deixa de haver conselhos de ministros seguidos de comunicados apresentados pelo porta-voz do governo e o PR preside a reuniões do primeiro-ministro com alguns ministros. Verbas avultadas são transferidas do Fundo de Emergência Nacional para o Ministério da Administração Interna sem aparentemente seguir o manual de procedimentos exigido pela lei que o criou em Novembro de 2018. Com alguma perplexidade nota-se que, no quadro publicado no BO de 25 de Abril, 91 mil contos, correspondente a cerca da metade da verba transferida, vai para a rúbrica “outros bens” enquanto 31 mil contos são alocados para “deslocações e estada” e 20 mil contos para “combustíveis e lubrificantes” ficando outros tantos 20 mil contos para despesas residuais enquanto que um total de 470 contos é destinado para medicamentos e material clínico. Não se fica com a impressão de que algo de fundamental mudou na gestão que se faz das situações de emergências no país. O que porém não dá sinal de desaparecer é a corrida para o protagonismo pessoal.
É pois com uma gestão que parece pecar por falta de estratégia que se está a aventurar em fazer um regresso à normalidade no preciso momento em que dados sugerem que na ilha com mais de metade da população do país pode-se estar no início da escalada do número de casos da covid-19. Entretanto a capacidade do sistema de saúde, apesar dos 113 casos confirmados, ainda não foi realmente testada porque na generalidade os casos são assintomáticos ou com sintomas leves não se registando até agora casos críticos. O aparecimento progressivo nos últimos dias de infectados nas idades de risco poderá mudar o padrão actualmente existente expondo o sistema de saúde a uma demanda até agora não experimentada. Ou seja, avança-se para a normalidade sem ter uma imagem clara da situação sanitária nas ilhas e sem que o sistema de saúde tivesse sido testado. É uma jogada com muitos riscos que talvez encontre alguma justificação na necessidade de pôr a economia a funcionar, mas que também pode deixar o país despreparado tanto em termos de meios inexistentes nalgumas ilhas como de capacidade de resiliência da população face à conhecida letalidade do coronavírus.
É verdade que não se confirmaram quaisquer casos em seis ilhas e que o caso único de S.Vicente surpreendentemente não conduziu, pelo menos até agora, a qualquer contágio identificável. Não se pode porém dizer que realmente se conhece a situação sanitária nessas ilhas. O número de testes realizados e a metodologia seguida na realização dos mesmos, “o correr atrás do vírus” dificilmente permitiria que se tivesse uma imagem certa da covid-19 no país e muito menos em cada ilha em particular. Não se sabendo precisamente o ponto da situação, com a diminuição das restrições corre-se o risco de ficar nas pessoas a ideia de que o pior já passou. E é próprio da natureza humana que não se descortinando perigo imediato no horizonte as pessoas adoptem com facilidade posturas mais relaxadas especialmente após quase quatro semanas de um confinamento sem precedentes na história do país.
Por isso mesmo é que a programação da diminuição de restrições deve ser feita e comunicada cuidadosamente para evitar que os ganhos conseguidos em habituar as pessoas ao “novo normal” não se perca na ilusão de regresso à normalidade anterior. Mesmo na Nova Zelândia em que, segundo a primeira-ministra Jacinda Ardern, a covid-19 praticamente foi eliminada, houve a preocupação de dizer às pessoas que foi ganha uma batalha, mas não a guerra e que o vírus pode voltar e singrar na população se novos hábitos não forem instituídos. Lá como cá a alternativa à existência de um alto sentido cívico e de dever para com o colectivo seria ficar a fechar e a abrir o país conforme as necessidades de combate ao coronavírus. Os custos porém acabariam por ser demasiado elevados.
Em todos os países que enfrentam a actual pandemia a questão de salvar as pessoas ao mesmo tempo que se procura preservar uma base económica para uma retoma de crescimento no futuro põe-se com grande acuidade. Cabo Verde não foge à regra com a diferença que a ponderação exigida na consecução desse objectivo é tarefa mais desafiante considerando as fragilidades do país e a sua dependência de um turismo que vai levar o seu tempo para se reconstruir e atingir o nível anterior. No país, à vulnerabilidade do mundo rural tornada maior pelos três anos de seca vieram juntar-se perdas de rendimentos de muitos outros devido aos constrangimentos que a covid-19 trouxe para a prática da economia informal e ao desemprego gerado pela paralisia da actividade turística e de outras actividades por ela dinamizadas. Sair do buraco não vai ser fácil particularmente quando a nível internacional está-se a falar do maior desastre económico desde a depressão dos anos 1930.
É um facto que crises oferecem muitas vezes oportunidades para mudanças importantes e até de dimensão histórica nos comportamentos, cultura institucional e selecção de prioridades. Cabo Verde parece ser um caso de excepção a essa regra. O país já passou por várias emergências nacionais algumas delas recentemente, caso da erupção do vulcão do Fogo, naufrágio do navio Vicente e o massacre de Monte Tchota. Não há muita evidência de que o país nestes anos todos se preparou para responder às exigências de um país arquipelágico em matéria de segurança, protecção contra calamidades e capacidade de apoio directo e imediato às populaçôes numa emergência. Vezes repetidas foram permitidos que interesses corporativos, protagonismos pessoais e outras razões espúrias se sobrepusessem a tudo o resto.
E mais uma vez a história parece repetir-se. Apesar do aparato montado, do dinheiro gasto e do protagonismo pessoal dos governantes e de outras autoridades alguns erros potencialmente catastróficos acontecem. Foi o que se passou na Boa Vista que num dia descobriu-se que tinha mais 45 casos confirmados e que dias depois foi dada como suposta origem da infecção que lançou Santiago para o topo dos casos confirmados da covid-19 em Cabo Verde. Acrescenta-se ainda que embora sem casos graves da doença que implicam maior exposição de profissionais de saúde já há exemplos de médicos e outros profissionais infectados, deixando transparecer nessas e noutras situações falhas graves nos protocolos que deviam ser rigorosamente seguidos no atendimento de doentes em tempos da covid-19.
A um outro nível nota-se um padrão no funcionamento e na relação entre os órgãos de soberania que foge à normalidade baseada no respeito pelo princípio da separação de poderes. O parlamento é praticamente suspenso durante o estado de emergência, deixa de haver conselhos de ministros seguidos de comunicados apresentados pelo porta-voz do governo e o PR preside a reuniões do primeiro-ministro com alguns ministros. Verbas avultadas são transferidas do Fundo de Emergência Nacional para o Ministério da Administração Interna sem aparentemente seguir o manual de procedimentos exigido pela lei que o criou em Novembro de 2018. Com alguma perplexidade nota-se que, no quadro publicado no BO de 25 de Abril, 91 mil contos, correspondente a cerca da metade da verba transferida, vai para a rúbrica “outros bens” enquanto 31 mil contos são alocados para “deslocações e estada” e 20 mil contos para “combustíveis e lubrificantes” ficando outros tantos 20 mil contos para despesas residuais enquanto que um total de 470 contos é destinado para medicamentos e material clínico. Não se fica com a impressão de que algo de fundamental mudou na gestão que se faz das situações de emergências no país. O que porém não dá sinal de desaparecer é a corrida para o protagonismo pessoal.
É pois com uma gestão que parece pecar por falta de estratégia que se está a aventurar em fazer um regresso à normalidade no preciso momento em que dados sugerem que na ilha com mais de metade da população do país pode-se estar no início da escalada do número de casos da covid-19. Entretanto a capacidade do sistema de saúde, apesar dos 113 casos confirmados, ainda não foi realmente testada porque na generalidade os casos são assintomáticos ou com sintomas leves não se registando até agora casos críticos. O aparecimento progressivo nos últimos dias de infectados nas idades de risco poderá mudar o padrão actualmente existente expondo o sistema de saúde a uma demanda até agora não experimentada. Ou seja, avança-se para a normalidade sem ter uma imagem clara da situação sanitária nas ilhas e sem que o sistema de saúde tivesse sido testado. É uma jogada com muitos riscos que talvez encontre alguma justificação na necessidade de pôr a economia a funcionar, mas que também pode deixar o país despreparado tanto em termos de meios inexistentes nalgumas ilhas como de capacidade de resiliência da população face à conhecida letalidade do coronavírus.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 961 de 29 de Abril de 2020.
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