Aproximam-se as eleições e para a má sorte de todos a questão da TACV ameaça tornar-se outra vez um foco importante de discórdia entre os partidos remetendo outras matérias para um plano secundário. O problema é que sempre se quis confundir a transportadora aérea com a política de transportes no país e não se vê qualquer solução para os problemas de deslocação das pessoas entre as ilhas e para o estrangeiro que não passam por salvar de uma forma ou de outra a “companhia de bandeira”.
Outra vez e desta feita em plena pandemia de covid-19, que praticamente deitou abaixo a indústria da aviação em todo o mundo para só vir a recuperar em 2024-5 segundo alguns peritos do sector, ouve-se de todos os quadrantes incluindo o governo que há que salvar a TACV.
A aparente unanimidade no objectivo não se traduz porém numa convergência de posições para o realizar. Pelo contrário, a tentação é de se entrar num jogo de passar culpas ao outro procurando dividendos político-eleitorais mesmo a custo de enfraquecer a mão de quem no momento negocia. Depois fala-se em chantagem, mas não se assume que de uma forma ou outra todos contribuem para que aconteça designadamente com falta de transparência, críticas desabridas e importância eleitoral excessiva atribuída ao desfecho do processo.
Não espanta que terminado o ciclo eleitoral, ganhando quem melhor pôde capitalizar as deficiências tornadas evidentes para todos, se volte à situação anterior com uma empresa sugadora de recursos públicos, ineficiente nos serviços prestados e incapaz de realizar os objectivos estratégicos preconizados seja de hub ou plataforma aérea e mesmo de elo seguro de ligação com a diáspora. Tem sido sempre assim. Quando se está em campanha como que se perde de vista a complexidade do sector da aviação civil e só ficam as acusações mútuas.
Num ápice parece que são esquecidos todos os planos de negócios adoptados ao longo dos anos que não resultaram e os diferentes conselhos de administração que não conseguiram imprimir uma outra orientação ou reestruturar a empresa para ser mais competitiva e ganhar mercados e as tentativas de privatização que falharam. Apesar dos prejuízos acumulados ano após ano continua-se a alimentar o sonho da companhia de bandeira sem completamente se assumir que o espaço de manobra se torna mais estreito à medida que a dívida pública aumenta com o assumir dos prejuízos acumulados das empresas públicas. Depois a realidade cai em cima na forma de missões do FMI e do Banco Mundial com as suas fixações nos dados do défice orçamental e da dívida pública e como esses números se desviam do quadro macroeconómico desejável.
Aconteceu em 2016, mas já se tinha verificado em outros momentos como, por exemplo, na primeira década deste século em que se fez um contrato de gestão para reestruturar a TACV e privatizá-la mas o plano falhou completamente. As instituições de Bretton Woods predispõem-se a ajudar, mas acabam por impor condições que deixam os governos com as mãos praticamente atadas e levam a situações como as vividas actualmente. Logo no início do mandato deste governo suspenderam a ajuda orçamental até que o processo de privatização da TACV ficasse completa. Quando em Maio de 2017 o governo cedeu o mercado doméstico da aviação à Binter fizeram saber que ainda não era suficiente e que a ajuda continuaria suspensa até à total privatização da transportadora aérea nacional, o que viria a verificar-se em Março de 2019.
A 6 de Junho com pompa e circunstância o governo assinou com o Banco Mundial o acordo de ajuda orçamental de 40 milhões de dólares e a TACV transformada em CVA lançou-se na criação de um hub aéreo a partir da ilha do Sal com um parceiro “estratégico” islandês detentor de 51% das acções e o Estado de Cabo Verde com os restantes 49%. Segundo o que foi acordado, o processo de privatização porém não deveria parar e teria que ser terminada em princípio até Dezembro de 2019. Foram vendidas parte das acções aos trabalhadores e a emigrantes num total de 10% ficando o Estado com 39% que deveria ceder a privados nacionais por razões que se desconhecem. Se era para liberar o Estado da responsabilidade futura de financiamento da empresa não parece que tenha sido esse o entendimento do parceiro islandês considerando que os créditos conseguidos junto à banca sempre contaram com aval do Estado correspondente à cota completa de 49%, ou seja, incluindo a parte já comprada pelos trabalhadores e emigrantes.
A parceria estratégica com a Loftleidir não parece que tenha tido uma componente financeira no sentido de facilitar o acesso ao crédito em bons termos que fosse capaz de suportar o desenvolvimento de novas rotas e a criação de novos mercados atraídos pela possibilidade de um “stopover” na ilha do Sal. E isso era imprescindível como confirma a própria Icelandair nos relatórios de contas de 2019 e no relatório trimestral de Março de 2020. Depois de constatar que os resultados operacionais do último trimestre de 2019 e do primeiro trimestre de 2020 ficaram abaixo das expectativas, o grupo islandês deixou claro que para evitar desenvolvimentos negativos no futuro tinha que se conseguir financiamento de longo prazo. Só que, segundo uma nota do Conselho da Administração da CVA, a responsabilidade para o financiamento e desenvolvimento imediato e futuro da companhia aérea dependia de uma mensagem clara dos principais accionistas, incluindo, portanto, o Estado de Cabo Verde.
Da parte da Icelandair a preocupação com o futuro da CVA expressa nos relatórios referidos tinha a ver com um eventual impacto negativo sobre a Loftleider caso não se confirmasse o leasing de 4-5 aviões que estava previsto para 2020. No resto, o grupo não se vê exposto a qualquer risco na TACV. Imagine-se quem ficou a assumir os custos associados ao risco do negócio que depois de dois trimestres seguidos de resultados abaixo das expectativas foi-se abaixo com a covid-19 a partir de Março devido às restrições globais nas viagens aéreas e ao fecho generalizado das fronteiras. Pode-se dizer que se sabia à partida que o negócio da instalação de um hub no Atlântico Médio na perspectiva de repetir o sucesso mais a Norte do hub islandês era de alto risco. Talvez, tirando de lado a total liquidação da empresa, não houvesse outra saída considerando as expectativas do país, a sensibilidade política da questão TACV e a pressão das organizações financeiras internacionais e dos parceiros para se eliminar o risco orçamental representado pela companhia.
O facto é que se acabou por ficar com um parceiro que devia ser estratégico no desenvolvimento de um negócio potenciador de vantagens múltiplas para o país designadamente no turismo e em serviços prestados ao exterior, mas que aparentemente tinha como principal objectivo assegurar o leasing dos seus aviões em condições privilegiadas. Situações do género aconteceram várias vezes no passado e resultaram muitas vezes da situação de fraqueza com que partem para as negociações, do sentimento de dependência que se tornou quase uma segunda natureza e da propensão para ceder à pressão dos parceiros e poder continuar a beneficiar da ajuda externa.
Estes tempos de pandemia devem fazer lembrar a importância de se construir resiliência para enfrentar choques de toda a espécie. E é evidente que essa construção é incompatível com atitudes e comportamentos de dependência que, como nestes e outros casos, só deixam custos que o país e todos os cabo-verdianos vão ter que arcar no futuro. Razão suficiente para não deixar que a questão séria dos transportes aéreos do país seja consumida pelo problema da TACV e que o país pague com juros ainda mais altos pelo que tem a fazer para sair do imbróglio actual.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 977 de 19 de Agosto de 2020.
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