segunda-feira, novembro 30, 2020

País do faz de conta

 

Na semana passada os meios de comunicação social e as redes sociais estiveram saturadas de notícias e posts a descrever, a opinar e a reagir às eleições da mesa de assembleia municipal, primeiro em S. Vicente e depois na Boa Vista.

Controvérsias diversas surgiram à volta da interpretação de vários artigos entre os quais o 67º n.2 , o 68º n.1, e o 81º n.1 a) dos Estatutos dos Municípios que incidem sobre o processo de instalação do órgão autárquico e sob o modo de eleição do presidente, vice- presidente e secretário. Para uns, é claro que o n.2 do artigo 67º estabelece que a “mesa provisória presidida pelo primeiro nome da lista mais votada e secretariado pelos dois membros mais novos” deve proceder “à eleição dos outros membros da mesa”. Para outros, a eleição deve ser feita como se o articulado da norma fosse a mesma do n.1 do artigo 45º da lei portuguesa sobre as autarquias, que diz que a mesa deve presidir a primeira reunião para efeitos de “eleição do presidente e secretários da mesa”.

Esgrimidos todos os argumentos e feitas todas as jogadas políticas e deixando de lado eventuais diferenças na interpretação sistemática da lei, a verdade é que pelos resultados das eleições nas duas ilhas, fica-se com a impressão que algo não bateu certo. Nos dois casos, a força política com a maioria de votos conseguidos nas urnas ficou excluída da mesa da assembleia municipal. Como justificar a falta de correspondência entre a representação na mesa e a configuração das forças políticas saída das eleições quando se sabe que essa é uma regra seguida em todos os órgãos colegiais, a começar pela Assembleia Nacional que distribui os cargos de presidente, vice-presidentes e secretários de acordo com os resultados eleitorais?

Há quem argumente que é a democracia a funcionar no seu pleno, outros que dizem que é um possível ensaio de uma “geringonça” nacional para futuros usos no plano nacional e há quem simplesmente diga que perante a vontade da maioria todos têm que se dobrar. Razões à parte, o mais provável é que se trata de uma jogada política com eventual desgaste de uns e proveito de outros com vista às eleições legislativas que se prevêem para Março próximo. De facto, não se pode realmente falar de uma “geringonça à portuguesa” porque das assembleias municipais não saem soluções de governação dos municípios visto que o órgão executivo, a câmara municipal, é directamente eleito e o presidente da CM é o primeiro da lista mais votada. Por outro lado, é duvidoso que é pelo controlo da mesa da assembleia municipal e exclusão de outros que se melhora o grau de fiscalização da câmara municipal ou se cria o ambiente próprio para os acordos, compromissos e consensos necessários à prossecução dos interesses dos municípios.

Se é legítimo que forças políticas procurem posicionar-se com vantagem para futuros embates eleitorais não é razoável que no processo acções que mais parecem “chicanas políticas” ponham em causa a efectividade dos órgãos eleitos e desvirtuam o sentido do voto dos cidadãos. Já tinha acontecido acontecido algo similar em São Vicente em que na primeira Assembleia Municipal da ilha um representante da força política menos votada nas autárquicas de 1991 foi eleito presidente da mesa pela força do voto maioritário do grupo de cidadãos MPRSV. Ninguém então ganhou com essa jogada política e muito menos o partido que se prestou a isso, como se pode comprovar ainda hoje.

Nas democracias a vontade da maioria só é legítima se exercida no quadro constitucional e legal. Outrossim, é fundamental que haja um consenso alargado sobre a necessidade de cumprimento das normas existentes para que negociações entre os partidos sejam produtivas, os compromissos assumidos sejam honrados e a confiança que mantêm intacto o pacto social e político seja renovada. Para alguns que avaliam o diálogo actual entre as forças políticas como difícil e aconselham ou desejam resultados eleitorais que não garantem maiorias absolutas podem ir já se preparando para grandes sobressaltos. Governos minoritários terão muitas dificuldades num quadro constitucional que exige a aprovação por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções da moção de confiança indispensável para iniciar a governação e não simplesmente a inexistência de uma moção de rejeição como em Portugal. Também dificilmente se poderá governar se as leis têm que ser aprovadas por maiorias absolutas e não com maiorias simples em que abstenções não contam.

É caso para pensar que é preciso ter algum cuidado com os desejos ou sonhos. Uma maior fragmentação do espectro partidário no país poderá não trazer mais diálogo entre as forças políticas mas certamente que resultará em maior instabilidade governativa. Está-se para ver como vai evoluir a “inovação” introduzida na Boa Vista de se permitir a apresentação de candidaturas só num dos dois órgãos do poder local quando aparentemente soluções viáveis de governação requerem presença nos dois. A pergunta que fica é se nos próximos embates eleitorais haverá candidaturas só para as câmaras e outras só para as assembleias.

A cultura política prevalecente de pisar os direitos das minorias sempre que a situação se propiciar não ajuda a que se crie a confiança necessária a um diálogo entre as partes. Por várias razões a alternância política verificada tanto ao nível nacional como ao nível local ainda não se mostrou suficiente educativa a esse respeito. O país, porém, assim como noutras coisas, faz de conta que vive uma outra realidade onde não existem as insuficiências várias em termos de autonomia das pessoas e fragilidades da sociedade civil que deixam a democracia aberta a ataques de demagogos e populistas de toda a espécie. Nem os efeitos da pandemia da Covid-19 se têm revelado capazes de moderar as posições e abrir caminho para o diálogo que vai ser necessário para enfrentar os desafios enormes que o país tem à frente.

Há que arrepiar caminho porque as próximas eleições não devem ser pretexto para uma maior polarização do país. Mais do que nunca o futuro vai depender da convergência de posições que se conseguir produzir neste momento crucial. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 991 de 25 de Novembro de 2020.

segunda-feira, novembro 23, 2020

Parar de Cavar

 

Sempre que a questão da TACV vem à baila o governo é peremptório a dizer que “a CVA continuará a existir e a ser a companhia de bandeira”. Para qualquer observador não deixa de ser temerário fazer uma afirmação dessas nos tempos actuais da pandemia da Covid-19, de forte recessão mundial e de crise profunda no sector da aviação comercial.

Se para países altamente desenvolvidos como a Alemanha a decisão de financiar a Lufthansa para sobreviver os momentos difíceis que os especialistas do sector dizem que vão prolongar-se até pelo menos 2024, para outros mais modestos como a Islândia essa não é uma opção que possam considerar.

No caso de Cabo Verde com as fragilidades estruturais da sua economia e a dívida pública a aproximar-se dos 150% do PIB uma decisão de tal envergadura pelas suas implicações financeiras deveria merecer a maior ponderação. Não é porém o que recebe. Qualquer debate sobre o estado actual e o futuro da TACV desperta paixões avassaladoras e é motivo de troca de acusações mútuas entre as forças políticas. Em geral, soluções não são apresentadas e dos embates só se depreende que há acordo genérico e vontade em preservar a empresa aparentemente mesmo à custa do endividamento.

O último aval do Tesouro para a empresa se financiar foi concedido com a justificação que se impunha pagar os salários em atraso aos trabalhadores. Avales anteriores de várias centenas de milhares de contos procuraram viabilizar operações da companhia em vários momentos quando procurava desenvolver um hub na ilha do Sal que iria ser instrumental na movimentação de passageiros entre Europa e América do Sul e entre Africa e América do Norte. Os mais recentes avales porém têm suportado financiamentos de custos fixos existentes não obstante a companhia aérea ter deixado de voar desde 19 Março com o fecho das fronteiras devido à pandemia da Covid-19.

Sem estar a gerar receitas e com o próprio plano de negócios inviabilizado com a crise no sector é evidente que os avales do Estado tornaram-se operações de alto risco com implicações no défice orçamental e dívida pública. A empresa dificilmente hoje ou no futuro próximo terá condições de cumprir as suas obrigações junto dos credores deixando o Estado completamente exposto. Significativamente, quem parece que não ficou exposto no negócio é o grupo Icelandair. No seu relatório de contas deixa claro que a sua exposição ao associado TACV/CVA é zero e que nas transacções com a empresa as receitas geradas pela Cabo Verde Airlines ascenderam a 37,2 milhões de dólares e as despesas a 1,1 milhões de dólares.

Privatizações de empresas estatais acontecem por várias razões. São essenciais, por exemplo, quando se faz a transição de uma economia estatizada para uma economia do mercado como aconteceu nos anos noventa do século passado em Cabo Verde e nos vários países que deixaram o bloco soviético para se juntarem à economia mundial. Privatiza-se também para se liberalizar ainda mais a economia e potenciar a iniciativa privada como aconteceu na América e na Europa na sequência das políticas de Reagan e de Margaret Thatcher. Noutras situações, opta-se por privatizar empresas para diminuir o risco fiscal e conseguir receitas extraordinárias. No caso da TACV, era óbvio que devia ser privatizado por ser um risco sério para as finanças do Estado. Nos fins de 2015 e início de 2016 viu-se que também se tinha tornado num risco político para qualquer governo particularmente em tempo eleitoral. Desencadeou-se o processo sob a batuta do Banco Mundial que para o efeito fez questão de reter a ajuda orçamental (40 milhões de dólares) até que o processo ficasse completo. O grande problema é que mesmo com a privatização os riscos não foram eliminados e com a Covid-19 estão a ganhar proporções assustadoras.

A opção feita de privatização centrou-se na construção de hub na ilha do Sal que iria movimentar passageiros entre os vários continentes. Para além do impacto geral na economia que se esperava dessas operações ainda se queria incentivar o turismo no país através da promoção de Cabo Verde como um stopover na travessia da Atlântico. Para isso, ter como parceiro estratégico uma das empresas que constituem o grupo Icelandair mostrava-se promissor considerando a experiência e o sucesso do grupo em construir um hub no Atlântico Norte com stopover na Islândia. Seria uma jogada de risco mas que permitiria potenciar vários activos da TACV em algo que, se bem-sucedido, poderia constituir-se num grande ganho para o país.

Pelo relatório de contas do quarto trimestre de 2019 do grupo Icelandair ficou claro porém que sem um forte financiamento das operações do hub, o negócio correria sérios riscos. Aparentemente, a parceria estratégica não incluía uma componente financeira como normalmente se vê nos casos de privatização de companhias aéreas. Estranhamente, parece que o parceiro estaria a contar com o Estado para comparticipar do esforço financeiro quando, ao mesmo tempo, o governo com a venda das restantes acções até Dezembro de 2019, queria cumprir com o Banco Mundial e ver-se livre do risco associado. A meio do impasse criado, veio a pandemia e tudo parou. Não se realizaram mais voos mas continuaram os custos com os trabalhadores e supõe-se também com o leasing dos três aviões que, entretanto, foram estacionados na Flórida.

A questão que se coloca é se o plano de negócios do hubjá não existe, desapareceu”, como disse o Vice-Primeiro Ministro (VPM), por que é que os accionistas até agora não chegaram a acordo em como agir para conter e controlar os prejuízos e tomar uma decisão em relação ao futuro. Está-se a pagar o leasing dos aviões nos mesmos termos de antes? Será possível rentabilizar a empresa regressando ao plano de negócios anterior dos voos étnicos e de conexão com Lisboa, como foi sugerido pelo VPM, quando já se descontinuaram as operações domésticas e a regional? Vai-se continuar com um accionista que mais parece ser fornecedor de serviços de leasing de aviões do que o parceiro estratégico que aposta no negócio de criação de um hub no Atlântico? Vai-se deixar protelar uma situação que tudo leva a crer só irá piorar no estado actual da pandemia com custos impressionantes para o país porque mais uma vez a TACV está-se a revelar um risco político e os accionistas sabem disso? Há que pôr fim ao impasse que se vem arrastando ao longo de largos meses desde Março. Como bem disse alguém “Quando estiver no fundo do poço, a primeira coisa a fazer para sair dele é parar de cavar”.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 990 de 18 de Novembro de 2020.

segunda-feira, novembro 16, 2020

Confiança no processo democrático

 

A vitória de Joe Biden nas eleições americanas provocou um suspiro de alívio em quase todo o mundo. A perspectiva de finalmente deixar para trás a presidência desastrosa de Donald Trump permite que se encare o mundo com menos incertezas e que se espere da actuação dos Estados Unidos da América, no plano internacional, um efeito congregador de esforços de todos os países na resolução dos problemas globais.

Emergências planetárias como a pandemia da Covid-19 e as alterações climáticas que requerem intervenção coerente e sistemática de todos os países tinham-se tornado difícil ou impossível de se conseguir depois da actual administração americana se ter desertado do Acordo de Paris sobre o clima e adoptado uma gestão caótica da luta contra o coronavírus.

Também a democracia sofreu em todo o mundo assinalando-se em vários países o aparecimento de líderes populistas e a adopção de políticas iliberais que em vários graus levaram ao enfraquecimento das instituições e a uma deriva autocrática. Uma outra consequência foi o enfraquecimento do multilateralismo que entre vários efeitos prejudiciais sobre a ordem internacional nos domínios de segurança, saúde e comércio prejudicou a solidariedade entre as nações e incentivou fenómenos de desagregação supranacionais como o Brexit na Europa. Não admira que ao longo de toda a semana passada a contagem dos resultados da votação tivesse sido seguida com ansiedade em todo o mundo e houvesse uma explosão de alegria depois da confirmação da vitória de Joe Biden. Como várias vezes já se disse, meio a brincar, todos deviam poder votar nas eleições americanas considerando o impacto que têm no mundo.

Da América, não poucas vezes são visíveis as tendências em termos de fenómenos políticos, sociais e culturais que depois acabam de uma forma ou outra por ser adoptados localmente. Vários são os comentadores que, por exemplo, tomam a derrota de Donald Trump como o prenúncio do enfraquecimento de autocratas e seus imitadores que se têm proliferado nos últimos tempos por todo o mundo. Outros porém vêem na grande votação que mesmo assim ele recebeu os sinais de que os sentimentos, medos e ressentimentos que o projectaram não desapareceram. Pelo contrário, aumentou o número dos que nele votaram e de forma abrangente incluindo minorias e estratos sociais que supostamente seriam os alvos dos seus ataques designadamente os latinos, os afro-americanos, as mulheres e as pessoas LGBT.

Esperava-se nessa eleição uma “onda azul”, fruto da incompetência, insensibilidade e promoção do discurso do ódio constatadas por todos nos últimos quatro anos, que sob a liderança do partido democrata resultasse numa vitória retumbante sobre Trump e o trumpismo. O facto de não ter acontecido como esperado dá indícios que a dinâmica das políticas identitárias continua bastante viva mas que preocupações com a economia, a segurança, a boa governação e a imagem das instituições acabaram por sobrepor-se, ainda que por uma margem pequena. O grande desafio da democracia americana será saber como sair da política tribal de “nós” contra “eles”, que leva a bloqueios políticos e ao exacerbar dos radicalismos nos dois lados, para uma política de compromissos, que deixa espaço para acomodar posições das partes, possibilidade de consensos em questões fundamentais e estratégicas.

As democracias em todo o mundo estão em crise precisamente porque há uma percepção forte nas pessoas e na sociedade que o processo político não está a dar respostas às questões essenciais. Apontam-se falhas como a corrupção persistente, a falta de alternativa real de governação (aparentemente todos fazem o mesmo) e a deficiência de representação política (interesses outros são privilegiados). Todos as vêem mas não há acção concertada para as ultrapassar. Entretanto, a desigualdade social aumenta, diminuem as oportunidades de mobilidade social e bolsas de pobreza consolidam-se. Com a desesperança instalada o território fica fértil para os extremos em matéria de imigração, de convicção religiosa, de raça e de género se digladiarem, provocando ondas crescentes de xenofobia, racismo, discursos de ódio e terrorismo religioso. As instituições e os políticos descredibilizam-se e gera-se uma situação em que muitos em novas e antigas democracias se deixam tentar por discursos de autocratas e práticas iliberais de atropelo de direitos fundamentais. A pandemia da Covid-19 veio, porém, lembrar a importância da governação que prima pela competência, pela honestidade e pela adesão à verdade factual e científica. Da América já há um sinal nesse sentido e também um aviso.

O voto expressivo no trumpismo deixa transparecer que há ainda muito por fazer para evitar que a situação crítica vivida pelas pessoas ganhe contornos existenciais e a partir daí se deixem envolver em lutas identitárias e se predispõem a aceitar práticas de governação contrárias à democracia e à liberdade. Com a vitória do Joe Biden foi dado a oportunidade para se reparar os males que têm acompanhado o processo acelerado de globalização, a liberalização dos capitais, a mudança para o digital e o recrudescer das migrações internacionais. É o momento para se restaurar a política e a confiança que é possível encontrar soluções para os graves problemas com que todos se deparam. Nas democracias em geral o sentimento é que foi quebrado o contrato social vigente ao deixar-se que a riqueza concentrasse nuns poucos, que o Estado se mostrasse impotente perante interesses particularmente do sector financeiro e ao mesmo tempo incapaz de conter o declínio da classe média e de quebrar as bolsas de pobreza que todos os dias se alargam. Há que inverter a situação e reconstruir um contrato social que dê esperança e confiança às pessoas. O futuro da liberdade e da democracia depende disso.

Em Cabo Verde a pandemia da Covid-19 veio pôr a nu mais uma vez e de forma dramática as profundas vulnerabilidades do país. Ao crescimento económico que já tinha atingido os 5,7% em 2019, depois de anos de estagnação na primeira metade da década, vai suceder uma contracção na ordem dos 8%. Já os anos de seca de 2016-2019, pelo impacto que tiveram na população rural, tinham dado conta da precariedade de existência em vários pontos do território nacional. Ficou claro que os enormes investimentos feitos nos anos anteriores e que elevaram a dívida pública a 126% do PIB não traziam os benefícios prometidos. Com a pandemia a dívida em Dezembro, segundo o BCV, vai atingir os 150% do PIB.

A questão que se coloca é como no quadro democrático e mantendo os equilíbrios na sociedade e a paz social se vai lidar com os problemas difíceis de perda de emprego e perda de rendimento devido à covid-19 e a quebra na actividade turística. O ciclo eleitoral já se iniciou com as eleições autárquicas de Outubro mas pelo teor das promessas feitas pelas diferentes forças políticas não é evidente que estivessem a tomar em devida consideração a situação real do país. Para as legislativas deverá haver uma outra atitude. O ilusionismo na política em Cabo Verde é uma prática que vem de longe mas que já tarda em pôr um fim. Perde-se tempo e delapida-se a confiança das pessoas e da sociedade quando mais se precisa. Como as eleições americanas eloquentemente demonstram é fundamental manter a confiança no processo democrático para evitar lutas “tribais” e descredibilização das instituições. Garantido isso, as soluções para todos os desafios poderão ser encontrados. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 989 de 11 de Novembro de 2020.

segunda-feira, novembro 09, 2020

No rescaldo das eleições autárquicas

 

Larry Diamond o cientista político americano de renome mundial nos estudos da democracia escreveu na semana passada no jornal New York Times que regimes democráticos suportam-se em três pilares: a liberdade, o primado da lei e eleições livres, plurais e justas.

Disse isso a propósito das eleições americanas de 3 de Novembro de 2020 cujo desfecho ele próprio espera que venha pôr um fim à uma deriva iliberal que tem procurado abalar, senão deitar abaixo esses pilares. No seu texto constata que a liberdade e, em particular, a liberdade de expressão e de imprensa não têm sido limitadas apesar do feroz ataque à comunicação social vindo de vários quadrantes e que o império da lei tem não foi posto totalmente em causa apesar do funcionamento deficiente e inconsequente de instituições e entidades importantes da república. Caso diferente porém tem acontecido com o direito ao voto e a organização das eleições.

Múltiplas interferências no processo eleitoral foram feitas para impedir as pessoas de votar. Acções judiciais têm sido introduzidas para bloquear a aceitação de boletins de votos. Alimenta-se permanentemente a desconfiança sobre os resultados finais das eleições levantando o fantasma da fraude. O actual presidente Donald Trump até chega ao ponto de deixar pairar no ar dúvidas se aceitará uma derrota eleitoral e fazer a transferência de poder, o ritual fundamental das democracias em que se reconfirma que os mandatos são efectivamente limitados e que a possibilidade de alternância é sempre garantida. O espectáculo deprimente que tem sido a corrida eleitoral americana com todas as tentativas de manipulação das eleições abalou a imagem da democracia americana e veio demonstrar que nenhuma democracia, mesmo a mais antiga, não está a salvo de convulsões que podem pôr em risco a sua existência se os princípios de honestidade, integridade, decência e adesão à verdade e aos factos são escamoteados. Em tempos de crise, como a provocada pela da covid-19 que para além de ser sanitária também é económica e social, a ausência desses princípios na classe política e na própria sociedade são ainda mais gravosas. Traduzem-se em mortes e sofrimentos desnecessários e quebras na prosperidade que levarão anos a recuperar como se pode hoje constatar na América de Trump.

Cabo Verde, já imerso no seu sétimo ciclo eleitoral e a cerca de dois meses de celebrar a sua transição para o regime democrático, deve poder avaliar do estado dos pilares da democracia de que fala Larry Diamond. Começando pelo pilar das eleições livres e justas, a realização recente das eleições autárquicas a 25 de Outubro permite observar que o nível de organização do processo eleitoral tem melhorado consideravelmente não se registando as disputas eleitorais acrimoniosas verificadas no passado. Incidentes continuam a acontecer ou porque se teima nalguns sítios em fazer a chamada boca de urna ou persiste a desconfiança de que há tentativas de compra de bilhetes de identidade e de se usar outras manobras para impedir as pessoas de votar ou coagi-las a dar o seu voto num determinado sentido. Acusações mútuas são trocadas entre as forças políticas com maior veemência por parte dos vencidos, mas na generalidade dos casos sem a apresentação de provas convincentes para além do “diz que diz” e em muitos casos como justificativa para resultados abaixo das expectativas.

Recursos judiciais levados a cabo durante o processo eleitoral serviram para clarificar certas matérias designadamente no que respeita à liberdade de propaganda política que tirando a obrigatoriedade do acesso igual das forças políticas concorrentes a recursos públicos disponibilizados não deve ser limitada em nome do princípio de igualdade como se pretendeu. Também importante foi a decisão do Tribunal Constitucional em considerar inconstitucional a norma do Código Eleitoral que exigia aos subscritores de listas de grupos de cidadãos que mostrassem prova de não estarem vinculados a partidos políticos. Era uma restrição de direitos políticos que não se justificava e que vai na linha de impedimentos cuja natureza os devia fazer depender mais da responsabilidade individual ou dos partidos do que de uma acção coerciva do Estado que pode pecar pela desproporcionalidade e infringir no essencial dos direitos fundamentais.

A questão que se pode colocar, em certos aspectos similar ao que nos Estados Unidos chamam de princípio de Purcell, é se os tribunais podem mudar as regras do jogo, ou seja, as normas do Código Eleitoral nas vésperas de um pleito eleitoral enquanto o parlamento dez meses antes não o pode fazer. De qualquer forma os sucessivos posicionamentos do TC no sentido de libertar a lei eleitoral de restrições excessivas estão a contribuir para tornar mais pleno o direito de votar e contrariar uma cultura partidária que já vinha fazendo escola, de compra de votos e de bilhetes de identidade e também de exploração de qualquer discrepância nos cadernos para impedir as pessoas de votar. O caminho no sentido de eliminar desconfianças no sistema eleitoral é fundamental para a saúde da democracia como o exemplo actual dos Estados Unidos faz relembrar.

Também importante para a integridade do sistema político é manter a confiança na justiça e no Estado de Direito de democrático, um outro dos três pilares referidos. Confiança ganha-se e renova-se sempre que a justiça é realizada com qualidade e com todas as garantias, mas em tempo útil. Como em qualquer outro sector da vida nacional seja ele educação, saúde, habitação ou infraestruturas a disponibilização de meios materiais e humanos no nível desejável a todo o tempo não é possível, pois os recursos são escassos. A constatação de deficiências não deve, porém, constituir-se em justificação suficiente para a morosidade da justiça. E é assim porque há uma expectativa quanto à realização da justiça que não pode ser defraudada sob pena de descrédito. Quer-se um nível de produtividade aceitável na resolução de casos e que o público tenha a percepção que infractores estão a ser julgados e que prescrições, falhas no processo e não cumprimento das garantias de defesa não serviram de fundamento para não se acusar e julgar. Espera-se por isso um esforço maior da magistratura e toda a estrutura judicial para garantir que a confiança no sistema não seja beliscada. Diferentemente da educação e da saúde em que objectivos não cumpridos são sujeitos à penalização política e a possibilidade de mudança de políticas, uma justiça em queda de confiança abala todo o regime democrático. Os outros dois pilares do regime – liberdade e eleições livres – só conseguem manter-se se o sistema judicial independente do poder político for suficientemente eficaz. Para isso é fundamental o engajamento de todos, não só dos magistrados como da classe política e de toda a sociedade.

Quanto ao pilar da liberdade, a acção do Estado nestes tempos de covid-19 pode vir a revelar-se uma ameaça. Como já foi constatado em várias paragens, governos e outras instituições do Estado são tentados em tornar permanentes poderes e competências assumidas na luta contra a pandemia e que inclui restrições diversas, aumento da dependência dos indivíduos em relação ao Estado e maior controlo da actividade económica. Para atingir esses fins alguns não hesitam em contornar a lei, comprimir direitos fundamentais e forçar algum alinhamento do sistema judicial. Há mesmo quem em nome da crise queira interferir com eleições e prolongar mandatos. Na justificação por esse acréscimo de poder do Estado recorre-se à necessidade de acção coerciva do Estado porque as pessoas não cumprem com as regras de distanciamento social, uso de máscaras e higienização das mãos e meio circundante. De facto, como a transmissão do vírus é fundamentalmente via aerossóis expelidos nos actos normais de respirar e falar, um papel essencial para quebrar eventuais cadeias de contágio cabe a cada pessoa. Todos devem assumir, cumprindo as regras referidas, como uma espécie de disjuntor que corta a corrente. É um exercício de responsabilidade individual que para além dos ganhos imediatos no combate à epidemia ajuda a salvaguardar a liberdade, porque retira ao Estado razões para manter restrições diversas, situações de confinamento e estados de emergência que, quando perduram no tempo, acabam por inevitavelmente enfraquecer as democracias. O que se passa nos Estado Unidos veio demonstrar que todas as democracias são vulneráveis. É de suma importância que se salvaguarde a integridade dos três pilares que as suportam. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 988 de 4 de Novembro de 2020.

segunda-feira, novembro 02, 2020

Eleições em tempos de crise

 

Com a realização das eleições autárquicas no domingo passado deu-se o pontapé de saída para o ciclo eleitoral 2020-21 que inclui ainda eleições legislativas e presidenciais separadas umas das outras em média por períodos de seis meses. É um ciclo especial porque a proximidade das eleições aumenta extraordinariamente a possibilidade de contágio, ou seja, de os resultados de uma eleição afectar a outra.

Aconteceu há cinco anos atrás: a maioria esmagadora das câmaras municipais foram ganhas pelo partido vencedor das legislativas e ao maior partido da oposição coube apenas duas em 22 câmaras. Agora, porém, a sequência das eleições, primeiro autárquicas e depois legislativas e por fim presidenciais, é inversa. A expectativa geral é como o efeito de contágio ir-se-á manifestar.

Os resultados eleitorais já conhecidos dão conta de que algum reequilíbrio no controlo das câmaras já se verificou com o MpD com catorze e o PAICV com oito ultrapassando a situação algo anómala que saiu das eleições anteriores. Por outro lado, viu-se que tendo os dois grandes partidos lançados na campanha das autárquicas de forma que mais parecia um ensaio para as legislativas o mais natural é que, dependendo dos resultados, quisessem condicionar leituras políticas da sua prestação e melhorar a imagem. Câmaras ganhas ou perdidas em número e em valor simbólico iriam juntar-se a outros elementos e factores para aparecerem como os favoritos nos embates seguintes. Ninguém aparentemente esperava que houvesse um resultado com o potencial de mudar as regras do jogo, ou seja, de ser um “game changer”. A inesperada vitória do PAICV na capital do país terá sido um sinal de que eventualmente o país poderá estar aberto à alternância na governação. Aconteceu algo similar nas eleições autárquicas de 2004 em que a então oposição conquistou um número significativo de câmaras emblemáticas mas depois a mudança não se concretizou. No caso actual com a proximidade das legislativas o mais provável é que ninguém queira correr riscos e todos se precipitem já na campanha eleitoral relegando tudo para segundo plano.

O grande problema é que o país e o mundo enfrentam no momento uma pandemia que, para além de ser um grave problema de saúde pública, já se transformou numa crise económica e social afectando todos os aspectos da vida das pessoas com particular impacto na educação e formação de crianças e jovens. Em tal contexto é evidente que a perspectiva de uma focalização da atenção do governo e das forças políticas numa pré-campanha meses antes das legislativas não é reconfortante para ninguém, nem é recomendável. O pior que pode acontecer é assistir-se à repetição do que se viu antes e durante as últimas eleições em que governantes e dirigentes políticos concentraram-se em lutas locais para controlo dos órgãos municipais enquanto prioridades nacionais como a luta contra a Covid-19, a retoma da actividade económica nas ilhas turísticas e o processo educativo não recebiam a atenção desejada.

Realizar eleições democráticas em tempos de crise não é tarefa fácil. O facto das eleições de domingo passado se terem desenrolado sem problemas de maior é um sinal forte do nível institucional já conseguido no domínio eleitoral e também do elevado civismo da população que mesmo em situação de fortes constrangimentos se prestou a ir ordeiramente às urnas. O engajamento das pessoas e os muitos recursos utilizados constituem razão mais do que suficiente para que a democracia não signifique apenar ir periodicamente votar. Nesse sentido, projectos políticos apresentados e promessas feitas aos eleitores devem ser exequíveis e enquadraram-se no âmbito das atribuições e competência dos órgãos que vão ser eleitos. De outra forma não passam de compromissos tomados no vazio que desacreditam os políticos e a política e permitem aos eleitos exercerem o poder sem a responsabilidade e a necessidade de prestação de contas, essencial ao funcionamento democrático.

O poder local também é beliscado quando em campanha promessas são feitas que só podem ser realizados no quadro das opções do governo e recorrendo aos recursos do Estado. O municipalismo que tem na sua base o princípio de que os interesses locais não se esgotam no interesse nacional e que a prossecução desses interesses deve ser feita autonomamente por órgãos próprios fica prejudicado quando em processo eleitoral se proclamam alinhamentos partidários com o governo e se recorre massivamente a presença de membros do governo mesmo que nominalmente na sua condição de dirigente partidário. Apesar de se dizer que não existe nenhum impedimento na lei, não deixa de haver dever de reserva que limita a participação de figuras do governo e do Estado para não ferir o sentido de autonomia que constitucionalmente está na base do poder local. Não é por acaso que os municípios estão apenas sujeitos à tutela da legalidade, excluindo qualquer tipo de tutela de mérito.

O diluir de fronteiras entre as competências locais e as nacionais que se constata na prática leva a que muitos munícipes vejam na actuação dos eleitos excessivas preocupações com políticas e rivalidades partidárias de carácter nacional em detrimento de uma focalização na resolução dos problemas locais. O cansaço e o descrédito de muitos em relação a esta situação poderá estar na base do fenómeno de aparecimento da maioria das candidaturas de grupos de cidadãos nestas eleições autárquicas. O facto, porém, de não conseguiram apanhar percentagens significativas do eleitorado para além dos casos da Ribeira Grande de Santo Antão, Sal, Santa Catarina e Tarrafal de Santiago, mostra como para a generalidade dos eleitores é ainda fundamental o papel dos partidos para consolidar vontades que depois determinam resultados eleitorais. Aliás, a surpresa da vitória do PAICV na Praia sugere o que acontece quando um partido em tempo certo consegue ultrapassar as fracturas no seu eleitorado para o levar a votar enquanto o adversário de alguma forma deixa a sua base de suporte desmobilizar-se.

Agir no quadro das competências dos diferentes órgãos de poder político tanto a nível central como local e respeitar as regras do jogo democrático são essenciais para que a democracia não se resuma ao exercício periódico do voto. Evita-se assim a descredibilização das instituições e da classe política e eleva-se o nível de eficácia do regime de forma a poder ultrapassar as múltiplas crises desencadeadas pela Covid-19 sem que sejam sacrificados no processo os ganhos já conseguidos de liberdade e democracia. As prioridades do país em conter o coronavírus, reativar o turismo e normalizar o ensino escolar não devem ser secundarizadas a favor de campanhas eleitorais antecipadas. Os resultados das autárquicas na Praia até podem configurar um game changer mas é importante ter sempre em mente que as eleições vão-se verificar no seu tempo próprio e que até lá a governação do país deverá prosseguir tranquilamente com a participação de todas as forças políticas. Neste momento crucial é fundamental que se salve o país destas crises e que se cuide da democracia, essencial para a liberdade, paz e justiça. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 987 de 28 de Outubro de 2020.