Larry Diamond o cientista político americano de renome mundial nos estudos da democracia escreveu na semana passada no jornal New York Times que regimes democráticos suportam-se em três pilares: a liberdade, o primado da lei e eleições livres, plurais e justas.
Disse isso a propósito das eleições americanas de 3 de Novembro de 2020 cujo desfecho ele próprio espera que venha pôr um fim à uma deriva iliberal que tem procurado abalar, senão deitar abaixo esses pilares. No seu texto constata que a liberdade e, em particular, a liberdade de expressão e de imprensa não têm sido limitadas apesar do feroz ataque à comunicação social vindo de vários quadrantes e que o império da lei tem não foi posto totalmente em causa apesar do funcionamento deficiente e inconsequente de instituições e entidades importantes da república. Caso diferente porém tem acontecido com o direito ao voto e a organização das eleições.
Múltiplas interferências no processo eleitoral foram feitas para impedir as pessoas de votar. Acções judiciais têm sido introduzidas para bloquear a aceitação de boletins de votos. Alimenta-se permanentemente a desconfiança sobre os resultados finais das eleições levantando o fantasma da fraude. O actual presidente Donald Trump até chega ao ponto de deixar pairar no ar dúvidas se aceitará uma derrota eleitoral e fazer a transferência de poder, o ritual fundamental das democracias em que se reconfirma que os mandatos são efectivamente limitados e que a possibilidade de alternância é sempre garantida. O espectáculo deprimente que tem sido a corrida eleitoral americana com todas as tentativas de manipulação das eleições abalou a imagem da democracia americana e veio demonstrar que nenhuma democracia, mesmo a mais antiga, não está a salvo de convulsões que podem pôr em risco a sua existência se os princípios de honestidade, integridade, decência e adesão à verdade e aos factos são escamoteados. Em tempos de crise, como a provocada pela da covid-19 que para além de ser sanitária também é económica e social, a ausência desses princípios na classe política e na própria sociedade são ainda mais gravosas. Traduzem-se em mortes e sofrimentos desnecessários e quebras na prosperidade que levarão anos a recuperar como se pode hoje constatar na América de Trump.
Cabo Verde, já imerso no seu sétimo ciclo eleitoral e a cerca de dois meses de celebrar a sua transição para o regime democrático, deve poder avaliar do estado dos pilares da democracia de que fala Larry Diamond. Começando pelo pilar das eleições livres e justas, a realização recente das eleições autárquicas a 25 de Outubro permite observar que o nível de organização do processo eleitoral tem melhorado consideravelmente não se registando as disputas eleitorais acrimoniosas verificadas no passado. Incidentes continuam a acontecer ou porque se teima nalguns sítios em fazer a chamada boca de urna ou persiste a desconfiança de que há tentativas de compra de bilhetes de identidade e de se usar outras manobras para impedir as pessoas de votar ou coagi-las a dar o seu voto num determinado sentido. Acusações mútuas são trocadas entre as forças políticas com maior veemência por parte dos vencidos, mas na generalidade dos casos sem a apresentação de provas convincentes para além do “diz que diz” e em muitos casos como justificativa para resultados abaixo das expectativas.
Recursos judiciais levados a cabo durante o processo eleitoral serviram para clarificar certas matérias designadamente no que respeita à liberdade de propaganda política que tirando a obrigatoriedade do acesso igual das forças políticas concorrentes a recursos públicos disponibilizados não deve ser limitada em nome do princípio de igualdade como se pretendeu. Também importante foi a decisão do Tribunal Constitucional em considerar inconstitucional a norma do Código Eleitoral que exigia aos subscritores de listas de grupos de cidadãos que mostrassem prova de não estarem vinculados a partidos políticos. Era uma restrição de direitos políticos que não se justificava e que vai na linha de impedimentos cuja natureza os devia fazer depender mais da responsabilidade individual ou dos partidos do que de uma acção coerciva do Estado que pode pecar pela desproporcionalidade e infringir no essencial dos direitos fundamentais.
A questão que se pode colocar, em certos aspectos similar ao que nos Estados Unidos chamam de princípio de Purcell, é se os tribunais podem mudar as regras do jogo, ou seja, as normas do Código Eleitoral nas vésperas de um pleito eleitoral enquanto o parlamento dez meses antes não o pode fazer. De qualquer forma os sucessivos posicionamentos do TC no sentido de libertar a lei eleitoral de restrições excessivas estão a contribuir para tornar mais pleno o direito de votar e contrariar uma cultura partidária que já vinha fazendo escola, de compra de votos e de bilhetes de identidade e também de exploração de qualquer discrepância nos cadernos para impedir as pessoas de votar. O caminho no sentido de eliminar desconfianças no sistema eleitoral é fundamental para a saúde da democracia como o exemplo actual dos Estados Unidos faz relembrar.
Também importante para a integridade do sistema político é manter a confiança na justiça e no Estado de Direito de democrático, um outro dos três pilares referidos. Confiança ganha-se e renova-se sempre que a justiça é realizada com qualidade e com todas as garantias, mas em tempo útil. Como em qualquer outro sector da vida nacional seja ele educação, saúde, habitação ou infraestruturas a disponibilização de meios materiais e humanos no nível desejável a todo o tempo não é possível, pois os recursos são escassos. A constatação de deficiências não deve, porém, constituir-se em justificação suficiente para a morosidade da justiça. E é assim porque há uma expectativa quanto à realização da justiça que não pode ser defraudada sob pena de descrédito. Quer-se um nível de produtividade aceitável na resolução de casos e que o público tenha a percepção que infractores estão a ser julgados e que prescrições, falhas no processo e não cumprimento das garantias de defesa não serviram de fundamento para não se acusar e julgar. Espera-se por isso um esforço maior da magistratura e toda a estrutura judicial para garantir que a confiança no sistema não seja beliscada. Diferentemente da educação e da saúde em que objectivos não cumpridos são sujeitos à penalização política e a possibilidade de mudança de políticas, uma justiça em queda de confiança abala todo o regime democrático. Os outros dois pilares do regime – liberdade e eleições livres – só conseguem manter-se se o sistema judicial independente do poder político for suficientemente eficaz. Para isso é fundamental o engajamento de todos, não só dos magistrados como da classe política e de toda a sociedade.
Quanto ao pilar da liberdade, a acção do Estado nestes tempos de covid-19 pode vir a revelar-se uma ameaça. Como já foi constatado em várias paragens, governos e outras instituições do Estado são tentados em tornar permanentes poderes e competências assumidas na luta contra a pandemia e que inclui restrições diversas, aumento da dependência dos indivíduos em relação ao Estado e maior controlo da actividade económica. Para atingir esses fins alguns não hesitam em contornar a lei, comprimir direitos fundamentais e forçar algum alinhamento do sistema judicial. Há mesmo quem em nome da crise queira interferir com eleições e prolongar mandatos. Na justificação por esse acréscimo de poder do Estado recorre-se à necessidade de acção coerciva do Estado porque as pessoas não cumprem com as regras de distanciamento social, uso de máscaras e higienização das mãos e meio circundante. De facto, como a transmissão do vírus é fundamentalmente via aerossóis expelidos nos actos normais de respirar e falar, um papel essencial para quebrar eventuais cadeias de contágio cabe a cada pessoa. Todos devem assumir, cumprindo as regras referidas, como uma espécie de disjuntor que corta a corrente. É um exercício de responsabilidade individual que para além dos ganhos imediatos no combate à epidemia ajuda a salvaguardar a liberdade, porque retira ao Estado razões para manter restrições diversas, situações de confinamento e estados de emergência que, quando perduram no tempo, acabam por inevitavelmente enfraquecer as democracias. O que se passa nos Estado Unidos veio demonstrar que todas as democracias são vulneráveis. É de suma importância que se salvaguarde a integridade dos três pilares que as suportam.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 988 de 4 de Novembro de 2020.
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