segunda-feira, janeiro 25, 2021

Democracia e verdade

 

Hoje, dia 20 de Janeiro de 2021, acontece nos Estados Unidos da América a inauguração de uma nova presidência com a substituição de Donald Trump por Joe Biden. As inaugurações americanas, que acontecem de quatro em quatro anos na sequência das eleições presidenciais, por se tratarem de um processo de transferência de poder feito de forma pacífica desde os primórdios da república, são seguidas com fascínio em todo o mundo.

Evidenciam a superioridade do sistema de governo democrático que consegue renovar-se e apresentar alternativas de governação sem convulsões, revoluções ou violência de qualquer espécie. Desta vez o acto inaugural é especial porque o seu caracter pacífico, a concordância das partes e o veredicto institucional quanto aos resultados foram postos em causa. Felizmente ganhou a democracia e espera-se que a enorme ameaça às instituições e à liberdade tenha sido ultrapassada para benefício e conforto de todas as outras experiências democráticas em todos os continentes.

Durante quatro anos a democracia americana foi desafiada de forma sistemática pelo seu próprio presidente e por representantes do partido republicano nos outros órgãos de soberania. Costumes e normas ostensivamente não foram cumpridos, bloqueios foram colocados aos actos de fiscalização política da governação e fez-se da presidência o maior púlpito para propagar mentiras e teorias de conspiração, para alimentar realidades alternativas e para atacar a comunicação social com acusações de fake-news e de elitismo. Paralelamente procurou-se desequilibrar o poder judicial com nomeação de juízes ideologicamente próximos.

Viveu-se durante algum tempo uma experiência directa e assustadora de como as democracias podem morrer pela acção dos seus líderes, pela omissão de muitos que falham no cumprimento dos seus deveres e pela complacência daqueles que se deixam ficar no seu lugar por cinismo ou por considerarem que os políticos são todos iguais e todos corruptos. Ainda bem que o desfecho foi outro, mas convém que se assuma que foi quase à tangente e que é de toda a importância saber porquê, por exemplo, os checks and balances do sistema pareciam não funcionar. Também procurar conhecer as razões por que um grande número de pessoas se prontificava a seguir um chefe cuja relação com a verdade era espúria. E ainda descortinar por que gente “normal” parecia não mostrar qualquer pudor, repugnância ou estranheza mesmo perante as maiores enormidade proferidas, as demonstrações de falta de ética e a incompetência sem precedentes na condução dos assuntos do Estado.

São questões que se colocam a todos aqueles que nas democracias em crise debatem-se com populismos e extremismos tanto da direita como da esquerda. Um factor comum que contribui para esse tipo de dissonância cognitiva é o abandono da procura sistemática da verdade, o não reconhecimento de uma realidade objectiva e a eliminação da diferença entre facto e opinião. Realmente, a polarização da sociedade tem levado os actores políticos a entrincheirarem-se nas suas narrativas, na sua visão do mundo e nos seus factos, não deixando espaço para compromissos e consensos sobre qualquer matéria. As instituições de mediação têm sido alvo de ataques anti-elitistas para os descredibilizar alimentando a desconfiança em relação aos órgãos de comunicação social e atitudes de cepticismo mesmo perante as conquistas da ciência. E as redes sociais têm propiciado um espaço para o aparecimento de grupos herméticos de pensamento similar e por isso pouco dados a diálogo e tendencialmente hostis aos outros com posições diferentes.

Uma das consequências mais graves desta situação é a tendência para o surgimento de teorias de conspiração que procuram compreender e explicar a realidade não com base em métodos científicos ou em regras já estabelecidas para avaliar a evidência no quadro de processos transparentes e plurais mas sim pela revelação de jogadas, conluios e tráfico de influência obscuros. Quem se vê com esse suposto conhecimento sente-se completamente empoderado para depois de identificar os inimigos usar as tácticas que quiser para os esmagar. Da paranóia, que transforma adversários políticos em inimigos, à violência é um passo, como vários exemplos na história demonstram. O potencial para a violência dessa abordagem da realidade ficou mais uma vez patente nos últimos acontecimentos nos Estados Unidos que culminaram no ataque ao Capitólio. Impedir que a política seja sequestrada por teorias de conspiração deve ser uma preocupação fundamental das democracias neste momento que ainda se está a aprender a lidar com a realidade das redes sociais e que no contexto da pandemia se procura restaurar credibilidade à ciência, aos médias e às instituições que são fontes de informação factual.

Dificuldade maior em fazer esse combate verifica-se nos países em que a transição de regimes autoritários e totalitários para a democracia não se saldou pela ruptura completa em termos de princípios e valores ficando o novo e o velho a conviver em permanente tensão. Ora, como já alguém disse meias-vitórias, ou meias-derrotas, são uma espécie de veneno para a democracia e uma espécie de bálsamo para os ressentidos. O regime assim constituído dificilmente irá engajar-se completamente na busca da verdade histórica-política, sócio-económica e cultural que de alguma forma arriscasse a pôr em causa os equilíbrios existentes. Sendo assim, é evidente que facilmente pode tornar-se em ambiente propício para o digladiar permanente de narrativas sem possibilidade de resolução através da verificação dos factos e em terreno fértil para mentiras, fake news e teorias de conspiração que justifiquem a classificação dos adversários políticos como inimigos, antipatriotas e promotores do “quanto pior, melhor”.

Em Cabo Verde todos os anos por altura do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, que celebra a II República e, uma semana depois, até o dia 20 de Janeiro, Dia dos Heróis Nacionais, que relembra a I República revive-se com mais fulgor a tensão sócio-política que resultou da percepção de meia-vitória, ou meia-derrota no processo de transição para democracia. Para quem tiver dúvidas quanto a isso é só ouvir os recentes testemunhos divulgados na comunicação social durante a chamada Semana da República. A tensão, como se pode facilmente constatar, é real e permanente no país e condiciona pela negativa o diálogo na esfera pública, a procura de soluções para o futuro do país e o enfrentar das múltiplas fragilidades que teimam em deixar o país vulnerável e asseguram que a vida das populações continue a ser precária.

Às vezes extrapola e até alimenta teorias de conspiração que numa nomeação de um cônsul honorário vão encontrar evidência da ligação do partido do governo a partidos da extrema-direita na Europa. Revive-se a paranóia de antigamente em que se acusam os inimigos internos de se aliarem a inimigos externos, neste caso não para derrubar o regime, mas talvez para prejudicar as comunidades emigradas, visto que a extrema-direita é racista, xenófoba e contra os emigrantes. A violência intrínseca nessas teorias de conspiração amplificadas nos tempos de hoje pelas redes sociais até agora só fez cair um ministro, mas pressente-se que os alvos podem ser alargados particularmente quando o primeiro foi tão fácil de atingir.

A lição a tirar da presidência de Donald Trump é que pode ser fatal para as democracias ter uma esfera pública dominada por mentiras, realidades alternativas e teorias de conspiração. A situação é mais grave quando é o próprio Estado a alimentar essa dissonância com a realidade. Na América está-se a pagar essa deriva anti-democrática com mortes, sofrimento e perda de rendimento numa escala nunca vista. A esperança é que o novo presidente restaure os pressupostos que sempre fizeram dos EUA uma democracia vibrante e engajada em diminuir o fosso entre os seus ideais e a sua prática. Para as outras democracias a esperança é que saibam arrepiar caminho a tempo e não deixar que a violência política de qualquer tipo seja tida como legítima na luta política.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 999 de 20 de Janeiro de 2021.

segunda-feira, janeiro 18, 2021

13 de Janeiro - Trinta anos depois

 Hoje celebra-se o trigésimo aniversário do momento fundante do Cabo Verde moderno, livre e democrático. No distante dia 13 de Janeiro de 1991 realizaram-se as primeiras eleições livres e plurais.

Só por isso a data já merecia ficar registada e ser comemorada como o dia em que na liberdade pela primeira vez foi exercida a vontade soberana do povo e através dela se legitimou o exercício do poder político na república. Afinal, em certo sentido, a democracia define-se como governo da maioria que resulta de eleições periódicas e pluripartidárias. E foi nesse dia que tudo começou.

O 13 de Janeiro ganhou uma importância ainda mais fulcral para o devir do país com o resultado eleitoral obtido ao assegurar uma maioria qualificada de mais de dois terços dos deputados ao partido da mudança. A decisão popular em mudar o regime político foi claramente expressa. O caminho ficou aberto para a adopção de uma Constituição liberal e democrática que firmemente e sem ambiguidades passou a garantir o respeito pela dignidade humana e a reconhecer a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos fundamentais dos indivíduos.

O quadro político da transição democrática estabelecido unilateralmente pelo então partido único excluía a possibilidade de uma assembleia constituinte para dotar o país de uma nova Constituição. A opção feita em Setembro de 1990 foi de fazer alterações na Constituição de 1980 para permitir a participação de outros partidos e a realização de eleições livres e também para, em conformidade com o sistema de governo semipresidencialista escolhido, redefinir competências do presidente da república e do parlamento. Na prática, enxertava-se na antiga Constituição algumas normas que permitiam um funcionamento num ambiente político-partidário plural deixando o resto praticamente inalterado em particular no domínio dos direitos, liberdades e garantias e no que respeitava ao poder judicial.

Retrospectivamente, pode-se ver que sem uma maioria qualificada para adoptar uma nova Constituição, o pluripartidarismo cabo-verdiano provavelmente iria conhecer anos de instabilidade e não teria adoptado os valores civilizacionais que o catálogo de direitos da Constituição de 1992 consubstanciam. Neste aspecto são esclarecedores os anos de instabilidade na Guiné-Bissau e noutros PALOP, e também na Nicarágua e na Argélia, entre vários outros países que na época fizeram a sua transição para a democracia, que foram provocados em boa parte por essa espécie de “hibridismo” constitucional. Por causa dos resultados do 13 de Janeiro Cabo Verde teve sorte nesse aspecto e essa é uma das razões por que tem beneficiado de governos estáveis nestes trinta anos e tem conduzido processos de transferência de poder em momentos de alternância política com absoluta tranquilidade.

O facto de o país ter tido oportunidade de fazer uma Constituição liberal e democrática num quadro consensual não significa porém que o tenha conseguido realmente. Ficou suficiente areia nas engrenagens institucionais para dificultar a emergência e a consolidação de uma cultura democrática. Como alguém já disse “a democracia é obra comum de partidos rivais, sob a autoridade comum de regras gerais e iguais para todos”. Não pode haver outras legitimidades para o exercício do poder que não a legitimidade democrática. De outra forma todo o processo democrático de confronto da realidade do país, suportado na base dos factos e orientado para a descoberta da verdade, é escamoteado e substituído por narrativas estanques em colisão permanente. Da experiência de Cabo Verde se pode comprovar que daí só pode vir mais polarização política e exercícios em pós-verdade e fake news com os seus males em termos de esterilidade do discurso político, de diminuição da participação política e de uma maior partidocracia a querer resvalar para adulação dos líderes, todos eles cada vez mais autocráticos.

Durante o ano de 1989 o mundo assistiu fascinado ao desmoronar do império soviético na Europa de Leste que culminou com a queda do Muro de Berlim, em Novembro, depois de ter passado pela Polónia e pela Hungria. Seguiram-se depois a revolução de veludo na Checoslováquia e a execução sangrenta dos Ceaucescu na Roménia. Em Janeiro/Fevereiro de 1990 terminou o monopólio político do partido/Estado na Argélia e na União Soviética. A vez de Cabo Verde chegaria com a chamada abertura política iniciada a 19 de Fevereiro.

Da análise desses casos, um facto a assinalar é que quase sempre a iniciativa partia dos ditadores tentando fazer fuga em frente para manterem o país sob controlo. Na maior parte das vezes eram ultrapassados pelos acontecimentos e escorraçados do poder. A realidade inescapável então vivida nos fins da década de oitenta é que reformas na URSS de Gorbatchev e noutros países tinham desencadeado uma onda da democracia que percorreu o mundo derrubando regimes ditatoriais em todos continentes. Houve mesmo quem tenha proclamado o fim da história com a vitória da democracia e com a aceitação universal dos direitos do homem.

Trinta anos depois constata-se porém que afinal a história não acabou. Conflitos entre nações continuam a existir e regimes autocráticos emergentes desafiam as democracias, apresentando-se como um outro modelo bem-sucedido de organização do Estado. Mesmo em várias democracias notam-se derivas chamadas de iliberais que procuram restringir direitos entre os quais a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa e põem em causa a independência dos tribunais. Fala-se hoje de recessão democrática num mundo em que as democracias tanto antigas como as mais recentes estão a braços com uma crise profunda que se apresenta como uma crise de representação e uma crise das instituições de mediação acompanhadas de uma espécie de atracção fatal tanto para o populismo de esquerda como da direita.

Assim como em 1989/90 ninguém ficou imune aos efeitos da onda democrática também agora parece que ninguém consegue fugir à crise da democracia. Na semana passada todo o mundo pôde observar o assalto da população ao centro da democracia na América, o Capitólio, e como as pessoas foram atiçadas pelo próprio presidente a usar meios violentos para bloquearem os trabalhos do Congresso. Em maior ou menor grau os ataques à democracia que invariavelmente tomam a forma de agressão ao parlamento, aos órgãos de comunicação social e aos tribunais acontecem um pouco por todo o lado. Também nota-se que nem sempre vêm de fora e que os golpes mais violentos normalmente têm origem precisamente em entidades como partidos, governos e líderes que supostamente deveriam defender o sistema democrático.

Em Cabo Verde os sinais típicos da crise da democracia estão presentes e vêem-se nas instituições, nos partidos, nas relações entre os órgãos de soberania e na participação política dos cidadãos marcada muitas vezes por sentimentos de descrédito ou por uma postura cínica. A América de Trump em plena pandemia do coronavírus veio demonstrar o grau de impotência que pode chegar a sociedade mais desenvolvida do mundo se se deixar que o discurso público seja dominado por mentiras, que teorias conspiratórias consigam criar verdades alternativas e que o poder do Estado e a influência dos líderes sejam utilizados para mobilizar paixões, alimentar ressentimentos e direccionar ódios. Neste trigésimo aniversário do 13 de Janeiro é fundamental que ninguém se deixe tentar pelo negativismo que vem acompanhando e aprofundando a crise das democracias. Pelo contrário. Impõe-se que se recupere o estado de espírito positivo e de esperança de há trinta anos atrás para que mais uma vez se faça o país dar o salto para a modernidade e desenvolvimento comparável ao que verificou nos anos noventa, agora com mais sabedoria e sentido do futuro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 998 de 13 de Janeiro de 2021.

segunda-feira, janeiro 04, 2021

2020 em balanço

 

Entre os acontecimentos de relevo durante o ano de 2020 destacam-se pelas implicações no presente e no futuro a pandemia da Covid-19 e as eleições americanas que deram vitória a Joe Biden.

De facto, com a propagação vertiginosa do coronavírus por todos os países e continentes e o cortejo de mortos que causou, atingindo dezenas de milhões de pessoas, o mundo viu-se perante a primeira do que poderá vir a revelar-se como uma das grandes emergências planetárias deste século. Neste sentido, o impacto causado pela pandemia, deixando saber o elevado grau de interconectividade e de interdependência existente, ao mesmo tempo que faz sobressair as deficiências e as vulnerabilidade ao nível global das cadeias de abastecimento e do comércio entre as nações e os custos da não cooperação, servirá de alerta para quando a emergência for outra de grande envergadura a começar pelas alterações climáticas.

Num outro plano, a derrota de Donald Trump em Novembro último e a impossibilidade de ele assegurar um segundo mandato, em que o mais provável seria de maior degradação democrática, de aumento do risco de conflito entre as potências emergentes e de enfraquecimento do multilateralismo nas relações internacionais, deverá constituir uma oportunidade para conter a onda de populismo tanto da direita como da esquerda. Ao apresentar-se como um candidato moderado e ter saído vitorioso das eleições, Joe Biden renovou a esperança que a polarização da sociedade poderá não ser inevitável nesta época de crise de representação e das instituições democráticas e também de protagonismo cidadão nas redes sociais. Não estará para breve o fim da democracia como muitos, alguns abertamente e vários outros sorrateiramente, vinham augurando.

O ano de 2021 vai iniciar-se bafejado por um algum optimismo não só pelos acontecimentos nos Estados Unidos que deixam prever alguma inflexão em processos de crise das democracias como também pelo início da vacinação em massa das pessoas na Europa e na América e que certamente será seguida de medidas idênticas nos outros continentes. A perspectiva de pelo início do último trimestre se ter uma percentagem importante da população mundial vacinada abre a possibilidade de retoma das economias dos países desenvolvidos com impacto positivo nos países emergentes. Um óbice no processo de recuperação será o elevado grau da dívida pública acumulada e que foi contraída para resistir ao impacto económico e social da covid-19 e fazer os investimentos em particular no sector saúde que se impunham.

O risco de uma maior desigualdade entre as nações poderá aumentar, se, perante um cenário de uma normalização rápida nos países desenvolvidos e, em sentido contrário, de um aprofundamento das dificuldades nos países mais pobres, medidas concretas de perdão ou renegociação da dívida pública não forem tomadas e não se concretizarem. O regresso do multilateralismo que uma administração de Joe Biden pode prenunciar, a verificar-se, poderá criar um melhor ambiente para se encontrar soluções para o endividamento excessivo de muitos países e para abrir as portas a soluções que permitam gerir a dívida de forma sustentável.

Uma outra parte do optimismo no novo ano de 2021 deve-se às vacinas que em tempo recorde foram criadas, testadas e disponibilizadas para uso massivo. Não só tudo aponta que serão extraordinariamente eficazes contra a covid-19 como também a tecnologia baseada no mRNA nelas inserida poderá alimentar as promessas de uma autêntica revolução na luta contra outras doenças infecciosas e de natureza viral e mesmo contra o cancro. Já em matéria de contrariar os extremismos que ameaçam abertamente a democracia em todo o mundo há que dosear o optimismo. A própria derrota de Trump por mais decisiva que foi não deixou de revelar uma base forte do eleitorado que estava disposto a apoiá-lo em todas as circunstâncias mesmo aquelas em que uma gestão claramente incompetente do país estava a causar um número exagerado de mortes. E essa base de apoio tinha uma diversidade surpreendente considerando as causas defendidas pelo líder e mostrava uma dinâmica de crescimento em todos os grupos sejam eles étnico-linguísticos, religiosos, de classe social ou de género.

A força e a natureza dessa base de apoio sugerem que não se faça uma leitura ligeira da polarização hoje visível e presente de uma forma ou outra no eleitorado em todas as democracias. O que motiva essas pessoas não pode ter sido simplesmente a defesa do privilégio de alguns. Há por detrás problemas que precisam ser enfrentados adequadamente. As vias escolhidas pelos que estão no extremo oposto entre as quais demonstrações de indignação e actos justicialistas com recurso às redes sociais têm-se revelado como aceleradores da polarização. Dão razão ao aforismo popular de que os extremos se tocam e crescem alimentando-se mutuamente em confrontos que exacerbam as posições respectivas numa dialéctia em que nada e ninguém escapa.

Em Cabo Verde a pandemia teve o impacto que seria de esperar, quando numa economia não diversificada a actividade que gera empregos e receitas por pressão de mercado externo se vê, de repente, sem essa procura. Desemprego e buraco orçamental são os resultados directos arrastando os outros sectores numa espiral descendente. O confinamento decretado nas situações de emergências e os sérios constrangimentos à mobilidade e ajuntamento de pessoas postos durante meses seguidos afectaram ainda mais a actividade económica, em particular a informal. Ainda bem que as remessas de emigrantes, ajuda externa e os vários mecanismos utilizados pelo governo designadamente o layoff contribuíram para um nível de rendimento e uma procura interna que não deixou que tudo colapsasse. Não foi suficiente para conter o alastramento da pobreza, mas o efeito de travão foi sentido.

Como vários outros países, Cabo Verde seguiu no confinamento imediatamente imposto nos primeiros casos do coronavírus os procedimentos adoptados pelos países europeus logo que se viram com casos de covid-19. Pelo que se ouviu das autoridades sanitárias recentemente na imprensa não se sabe avaliar o real impacto das medidas adoptadas nem como explicar o que se passou nas diferentes ilhas. Uma coisa parece certa. Não obstante as queixas quanto ao comportamento das pessoas em matéria de confinamento parece evidente que o uso da máscara generalizou-se na população e impactou positivamente a situação, talvez contribuindo para actual quebra do número dos casos. A confirmar-se, devia ser celebrada e referenciada como exemplo de civismo, da auto responsabilidade e de sentido de pertença, virtudes essas que em todos os momentos precisam ser incentivadas. São elas que dão robustez aos alicerces da democracia e constituem um travão necessário à manipulação do sistema democrático por forças iliberais e aos efeitos perversos de certas derivas identitárias.

Em Cabo Verde o ano ainda foi marcado pelo início do ciclo eleitoral com as eleições autárquicas de Outubro. Como seria de prever, considerando a situação algo anómala saída das eleições em 2016, verificou-se um reequilíbrio autárquico com a distribuição mais equitativa das câmaras municipais pelos dois grandes partidos. Aparentemente não era para muitos o resultado esperado e viu-se num e noutros sectores muita euforia e algum sinal de desânimo. A consequência imediata foi toda a acção dos partidos ter sido direccionada para as legislativas previstas para daqui a três/quatro meses.

Com isso notam-se sinais de que a gestão mesmo institucional das câmaras municipais tem-se subordinado à luta por um melhor posicionamento nas legislativas. O mesmo acontecendo nas estruturas centrais do Estado com grande movimentação de pessoal dirigente num jogo de acertar contas, satisfazer as bases partidárias e renovar lealdades. Infelizmente com a alta no nível de crispação são os problemas do país que vão ficar de molho praticamente durante cerca de seis meses. Depois do que se passou no ano de 2020, que deixou em claro as vulnerabilidades do país e a precariedade da vida das pessoas, não tinha nem devia ser assim.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 996 de 30 de Dezembro de 2020.