Hoje, dia 20 de Janeiro de 2021, acontece nos Estados Unidos da América a inauguração de uma nova presidência com a substituição de Donald Trump por Joe Biden. As inaugurações americanas, que acontecem de quatro em quatro anos na sequência das eleições presidenciais, por se tratarem de um processo de transferência de poder feito de forma pacífica desde os primórdios da república, são seguidas com fascínio em todo o mundo.
Evidenciam a superioridade do sistema de governo democrático que consegue renovar-se e apresentar alternativas de governação sem convulsões, revoluções ou violência de qualquer espécie. Desta vez o acto inaugural é especial porque o seu caracter pacífico, a concordância das partes e o veredicto institucional quanto aos resultados foram postos em causa. Felizmente ganhou a democracia e espera-se que a enorme ameaça às instituições e à liberdade tenha sido ultrapassada para benefício e conforto de todas as outras experiências democráticas em todos os continentes.
Durante quatro anos a democracia americana foi desafiada de forma sistemática pelo seu próprio presidente e por representantes do partido republicano nos outros órgãos de soberania. Costumes e normas ostensivamente não foram cumpridos, bloqueios foram colocados aos actos de fiscalização política da governação e fez-se da presidência o maior púlpito para propagar mentiras e teorias de conspiração, para alimentar realidades alternativas e para atacar a comunicação social com acusações de fake-news e de elitismo. Paralelamente procurou-se desequilibrar o poder judicial com nomeação de juízes ideologicamente próximos.
Viveu-se durante algum tempo uma experiência directa e assustadora de como as democracias podem morrer pela acção dos seus líderes, pela omissão de muitos que falham no cumprimento dos seus deveres e pela complacência daqueles que se deixam ficar no seu lugar por cinismo ou por considerarem que os políticos são todos iguais e todos corruptos. Ainda bem que o desfecho foi outro, mas convém que se assuma que foi quase à tangente e que é de toda a importância saber porquê, por exemplo, os checks and balances do sistema pareciam não funcionar. Também procurar conhecer as razões por que um grande número de pessoas se prontificava a seguir um chefe cuja relação com a verdade era espúria. E ainda descortinar por que gente “normal” parecia não mostrar qualquer pudor, repugnância ou estranheza mesmo perante as maiores enormidade proferidas, as demonstrações de falta de ética e a incompetência sem precedentes na condução dos assuntos do Estado.
São questões que se colocam a todos aqueles que nas democracias em crise debatem-se com populismos e extremismos tanto da direita como da esquerda. Um factor comum que contribui para esse tipo de dissonância cognitiva é o abandono da procura sistemática da verdade, o não reconhecimento de uma realidade objectiva e a eliminação da diferença entre facto e opinião. Realmente, a polarização da sociedade tem levado os actores políticos a entrincheirarem-se nas suas narrativas, na sua visão do mundo e nos seus factos, não deixando espaço para compromissos e consensos sobre qualquer matéria. As instituições de mediação têm sido alvo de ataques anti-elitistas para os descredibilizar alimentando a desconfiança em relação aos órgãos de comunicação social e atitudes de cepticismo mesmo perante as conquistas da ciência. E as redes sociais têm propiciado um espaço para o aparecimento de grupos herméticos de pensamento similar e por isso pouco dados a diálogo e tendencialmente hostis aos outros com posições diferentes.
Uma das consequências mais graves desta situação é a tendência para o surgimento de teorias de conspiração que procuram compreender e explicar a realidade não com base em métodos científicos ou em regras já estabelecidas para avaliar a evidência no quadro de processos transparentes e plurais mas sim pela revelação de jogadas, conluios e tráfico de influência obscuros. Quem se vê com esse suposto conhecimento sente-se completamente empoderado para depois de identificar os inimigos usar as tácticas que quiser para os esmagar. Da paranóia, que transforma adversários políticos em inimigos, à violência é um passo, como vários exemplos na história demonstram. O potencial para a violência dessa abordagem da realidade ficou mais uma vez patente nos últimos acontecimentos nos Estados Unidos que culminaram no ataque ao Capitólio. Impedir que a política seja sequestrada por teorias de conspiração deve ser uma preocupação fundamental das democracias neste momento que ainda se está a aprender a lidar com a realidade das redes sociais e que no contexto da pandemia se procura restaurar credibilidade à ciência, aos médias e às instituições que são fontes de informação factual.
Dificuldade maior em fazer esse combate verifica-se nos países em que a transição de regimes autoritários e totalitários para a democracia não se saldou pela ruptura completa em termos de princípios e valores ficando o novo e o velho a conviver em permanente tensão. Ora, como já alguém disse meias-vitórias, ou meias-derrotas, são uma espécie de veneno para a democracia e uma espécie de bálsamo para os ressentidos. O regime assim constituído dificilmente irá engajar-se completamente na busca da verdade histórica-política, sócio-económica e cultural que de alguma forma arriscasse a pôr em causa os equilíbrios existentes. Sendo assim, é evidente que facilmente pode tornar-se em ambiente propício para o digladiar permanente de narrativas sem possibilidade de resolução através da verificação dos factos e em terreno fértil para mentiras, fake news e teorias de conspiração que justifiquem a classificação dos adversários políticos como inimigos, antipatriotas e promotores do “quanto pior, melhor”.
Em Cabo Verde todos os anos por altura do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, que celebra a II República e, uma semana depois, até o dia 20 de Janeiro, Dia dos Heróis Nacionais, que relembra a I República revive-se com mais fulgor a tensão sócio-política que resultou da percepção de meia-vitória, ou meia-derrota no processo de transição para democracia. Para quem tiver dúvidas quanto a isso é só ouvir os recentes testemunhos divulgados na comunicação social durante a chamada Semana da República. A tensão, como se pode facilmente constatar, é real e permanente no país e condiciona pela negativa o diálogo na esfera pública, a procura de soluções para o futuro do país e o enfrentar das múltiplas fragilidades que teimam em deixar o país vulnerável e asseguram que a vida das populações continue a ser precária.
Às vezes extrapola e até alimenta teorias de conspiração que numa nomeação de um cônsul honorário vão encontrar evidência da ligação do partido do governo a partidos da extrema-direita na Europa. Revive-se a paranóia de antigamente em que se acusam os inimigos internos de se aliarem a inimigos externos, neste caso não para derrubar o regime, mas talvez para prejudicar as comunidades emigradas, visto que a extrema-direita é racista, xenófoba e contra os emigrantes. A violência intrínseca nessas teorias de conspiração amplificadas nos tempos de hoje pelas redes sociais até agora só fez cair um ministro, mas pressente-se que os alvos podem ser alargados particularmente quando o primeiro foi tão fácil de atingir.
A lição a tirar da presidência de Donald Trump é que pode ser fatal para as democracias ter uma esfera pública dominada por mentiras, realidades alternativas e teorias de conspiração. A situação é mais grave quando é o próprio Estado a alimentar essa dissonância com a realidade. Na América está-se a pagar essa deriva anti-democrática com mortes, sofrimento e perda de rendimento numa escala nunca vista. A esperança é que o novo presidente restaure os pressupostos que sempre fizeram dos EUA uma democracia vibrante e engajada em diminuir o fosso entre os seus ideais e a sua prática. Para as outras democracias a esperança é que saibam arrepiar caminho a tempo e não deixar que a violência política de qualquer tipo seja tida como legítima na luta política.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 999 de 20 de Janeiro de 2021.
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