segunda-feira, fevereiro 22, 2021

Evitar bloqueio, se não colapso

A dois meses das eleições legislativas são notórias as movimentações de partidos, sindicatos, associações, grupos de interesses e personalidades para beneficiar ainda da situação actual e desde já ficarem bem posicionados para o que segue.

O governo desdobra-se em inaugurações por todas as ilhas, municípios e outros pontos do território nacional; partidos da oposição apontam o não cumprimento de promessas e minimizam obras feitas; sindicatos marcam manifestações, ameaçam greves e reivindicam aumentos, promoções e progressões para trabalhadores do sector público; grupos de interesses diversos pelas razões as mais espúrias, como se viu na última sessão do parlamento com a petição de ex-militares, procuram extrair benefícios do Estado em forma de pensões e outras facilidades; e personalidades apanhadas na luta intrapartidária para listas de deputados salvaguardam-se para o amanhã. Com o futuro imprevisível e os outros sectores da economia à espera de uma oportunidade de retoma, o Estado tornou-se o foco da atenção de todos. Na corrida aos recursos públicos assim desencadeada nem a pandemia da Covid-19 mostra-se capaz de forçar a olhar para os lados.

Em vários momentos de lucidez surgem vozes na sociedade cabo-verdiana que apelam a mudança de atitude e a troca de “chip”. Os apelos invariavelmente caem em saco roto ou são esquecidos. Entretanto, o mundo não pára e o país inexoravelmente vai ficando para trás porque as reformas para a modernização não chegam a tempo. Neste processo o país vai acumulando dívida pública, aumentando vulnerabilidades, reproduzindo precariedade e perdendo oportunidades. Mesmo quando beneficia de uma conjuntura internacional favorável como aconteceu entre 2016 e Março 2020 com todas as grandes economias do mundo a crescerem em simultâneo, não consegue dar o salto. Não fez as reformas no tempo certo. Suficientes, porém, revelaram-se os três anos de seca para revelar as vulnerabilidades que persistem no país não obstante ter vindo a crescer até o surto do coronavírus a taxas que se aproximava dos 6% do PIB.

A chegada da Covid-19 a partir de Março de 2020 acabou por mostrar cabalmente a extrema fragilidade de uma economia pequena, insular, muito pouco diversificada e dependente do turismo. O grande problema é que, quase um ano depois do início da pandemia, não se vislumbram alterações substantivas na forma como os actores políticos e sociais se comportam. Não há muitos sinais de que realmente se quer mudar de atitude, trocar de chip ou iniciar preparativos para um eventual take off. Num mundo em que a normalidade anterior desapareceu, quer-se continuar a funcionar como se nada tivesse acontecido.

A questão que se pode colocar é, ou o choque da pandemia não foi suficiente para uma chamada à realidade, ou então o país de tão preso que está na sua forma de estar, viver e sobreviver que nada já o afecta. A falta de reacção adequada a situações anteriores de erupções, desastres, naufrágio e até de massacre que não foram seguidas de mudanças consequentes nas instituições, nos procedimentos e na postura das autoridades já deixava entender isso. Não se esperava é que, mesmo com uma pandemia global sem uma previsão de acabar tão cedo, a tentação de persistir em fazer o mesmo fosse tão forte. Não muito ausente dessa atitude provavelmente estará a crença que a dívida pública entretanto acumulada será perdoada, que a ajuda externa até irá aumentar por causa da covid-19 e que o interesse dos operadores estrangeiros não se alterará no “novo normal”.

Ajuda a manter essa inércia o sentimento que muitos parecem nutrir de que a pandemia da covid-19 poderá ter os dias contados particularmente depois que várias vacinas com elevados níveis de eficácia foram criadas. A realidade porém é muito mais complexa como demonstra o aparecimento de várias variantes do coronavírus mais contagiosas e algumas talvez até mais letais. A luta de vários anos que vai opor o coronavírus em mutação rápida e o sistema imunitário humano com a ajuda das vacinas certamente terá consequências. Prevê-se que depois de contida a pandemia, em vários países a doença vai ficar endémica com surtos epidémicos periódicos. Também sequelas da doença não deixarão de manifestar-se entre os muitos milhões de recuperados. Os constrangimentos que tudo isso irá provocar a todos os níveis asseguram que não haverá o regresso à normalidade anterior.

É evidente que será profundo o impacto que a Covid’19 vai provocar nas economias nacionais e na economia mundial. Como reagir a essas mudanças é o grande desafio que se coloca a todos, sejam países desenvolvidos, emergentes ou mais pequenos e frágeis como Cabo Verde. Há que reformular políticas, prioridades e atitudes. Recentemente Ruchir Sharma, autor do livro Milagres Económico do Futuro, no jornal Financial Times, aconselhava os países em desenvolvimento a fazer as reformas necessárias para aumentar a produtividade e a competitividade e a não seguir o exemplo dos países ricos que procuram estimular a economia com injecção de liquidez recorrendo a mecanismos financeiros que aumentam extraordinariamente a dívida pública. Estes, além de terem capacidade para pagar a dívida ainda beneficiam de juros baixos e mesmo negativos o que dificilmente acontecerá com os outros países menos desenvolvidos.

Pensar diferente é também o que aconselha Dani Rodrik. O economista de Harvard propõe para ultrapassar a situação actual de grandes desigualdades sociais e esvaziar os extremismos políticos que se faça um comprometimento sério para criação de um grande número de postos de trabalho que também sejam bons empregos. Num artigo no Project-Syndicate ele nota que em África constata-se que grandes empresas industriais de capital intensivo são produtivas, mas empregam poucas pessoas enquanto pequenas e médias empresas têm muitos trabalhadores, mas produtividade muita baixa o que leva globalmente a salários mais baixos, não criando os bons empregos. Ao Estado aconselha um novo papel para resolver esse e outros problemas, nesta nova era pós-pandémica e de necessidade de um novo contrato social, numa linha próxima daquela que Mariana Mazzucato expõe no seu novo livro Economia de Missão.

Em Cabo Verde infelizmente o papel do Estado não é visto como promotor e facilitador de processos de criação de riqueza. É mais compreendido no papel que aparece todos os dias na televisão a representar. O papel de distribuidor de riqueza que o faz paternalista, realizador de sonhos da população e generoso para com as reivindicações das pessoas. Com o Estado nessa função todos, as pessoas e a sociedade, correm o risco perder a noção de como se cria valor. Também sempre vai aparecer quem tente extrair valor para servir a si próprio e à uma clientela. Globalmente acaba por verificar-se uma grande destruição de valor com as ineficiências, os desvios e as oportunidades perdidas.

Mudar de atitude ou trocar o chip deveria passar por redefinir o papel do Estado numa a perspectiva em que a criação de riqueza não estaria desligada da sua distribuição e utilização na potenciação dos recursos do país e em particular do capital humano. Infelizmente o que parece estar na ordem do dia é o poder e a corrida aos recursos. A possibilidade real de “um bloqueio, se não colapso do Estado” se não houver perdão da dívida externa e investimentos externos transformadores, como referiu o Vice-Primeiro-Ministro, na segunda-feira, devia servir de travão efectivo a tais ímpetos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1003 de 17 de Fevereiro de 2021.

segunda-feira, fevereiro 15, 2021

Tempo para acabar com os mitos

 

A reorganização da economia mundial e de muitas economias nacionais é uma das consequências da pandemia da Covid-19 que vem avassalando o mundo desde dos primeiros meses de 2020.

É um processo quase incontornável considerando o impacto que o Sars-coV-2 tem tido em todos os aspectos da vida. As previsões para o regresso a uma normalidade, que certamente não será a mesma de antes, apontam para um mínimo de dois ou três anos. Entrementes, para combater os efeitos disruptivos do coronavírus, não obstante a vacinação em massa das populações, vão-se exigir novos comportamentos e novas formas de trabalhar. Para se posicionarem com vantagem para o futuro os países terão de renovar a capacidade de resposta a pandemias e a outras catástrofes naturais. Muita coisa vai mudar e nem sempre para melhor. Já há sinais de proteccionismo e de repatriação de indústrias estratégicas, mas também de priorização de investimentos no sector da saúde e em geral medidas de reconfiguração do comércio internacional.

Para os países mais pequenos e insulares o desafio é ainda maior. Muitos como Cabo Verde têm uma economia pouco diversificada e qualquer perturbação nas transacções de mercadorias e no fluxo de pessoas e de capitais tem efeitos demolidores. A retracção do turismo tem um efeito demolidor porque põe em causa sectores-chave como a construção, transportes e acolhimento que depois afectam por arrastamento várias indústrias e serviços. O desemprego e a perda de rendimento que daí resultam têm consequências sociais e até psicológicas graves que juntas com as exigências de distanciamento social e outros constrangimentos podem levar a situações muito complicadas.

Saber reagir perante o choque inesperado que foi a pandemia é crucial para poder conter os seus efeitos perniciosos e preparar-se para potenciar eventuais vantagens. Uma das vias a ser considerada numa perspectiva de maior diversificação da economia e de criação de mais riqueza nacional é a exploração dos recursos naturais existentes. A celebração do Dia do Pescador veio relembrar a importância actual do sector para a economia e para o rendimento das pessoas e o que potencialmente podia ter, se ao longo dos tempos, nele se tivesse investido com uma outra visão.

O sector, de facto, teria outra relevância se ao invés das quinze mil toneladas pescadas anualmente se se aproximasse das 40.000 toneladas possíveis. Se houvesse capacidade para suprir com captura de origem cabo-verdiana os milhares de toneladas de peixe que a Frescomar precisa processar durante o ano e depois vender como enlatados nos mercados da Europa sem necessidade de pedidos anuais de derrogação dos direitos de origem. Se, ao invés de milhares de operadores na pesca artesanal e na distribuição de peixe sobrevivendo com pequenos rendimentos e a viver precariamente, fosse possível organizar o sector em outros moldes, por forma a aumentar a produtividade da faina, alargar a área de actividade da mesma e ainda melhorar a qualidade do produto que chega ao consumidor. Todos ganhariam com consequente ampliação do mercado e maior mais-valia nas vendas.

A verdade é que, como todos reconhecem - operadores, público e Estado - o sector das pescas, mais de 45 anos depois da independência, está muito aquém do que seria desejável. Ouvindo os debates públicos sobre a matéria, fica-se com a sensação que praticamente ainda se está nos primórdios do que seria necessário para um verdadeiro arranque. Da captura nacional, cerca de 43% vem da pesca artesanal feita com botes frágeis e de alcance muito limitado mesmo quando motorizados. A outra parte é feita com embarcações semi-industriais que, não obstante os esforços, mostram-se incapazes de explorar devidamente os vários bancos de pesca existentes no arquipélago. Toda a actividade da pesca nos termos referidos apresenta riscos que dificultam investimentos no sector e tendem a onerar créditos já conseguidos. As tentativas de quebrar o círculo vicioso e diminuir os riscos de financiamento com fundos públicos não tiveram grande sucesso. Talvez tenha contribuído para isso o facto de nunca se ter encontrado uma visão e desenvolvido uma estratégia que efectivamente fizesse o sector crescer de forma sustentável e ir além do estádio artesanal e semi-industrial que sempre o limitou.

A omissão em matéria de políticas públicas estranhamente parece conviver com mitos à volta do potencial de pescas no país que ainda em 2021 se luta por ultrapassar. Um esforço provavelmente inútil considerando que até agora ninguém o conseguiu. Continua-se a acreditar que o país é rico em peixe. Num mesmo fôlego dá-se por assente que os recursos haliêuticos andam a ser roubados por estrangeiros. Paradoxalmente não há acção consequente para criar riqueza a partir dos recursos reais nem mesmo para fiscalizar as águas nacionais e os acordos de pesca assinados com outros países. Assim é, porque alimentar mitos e nutrir sentimentos de vitimização nunca beneficiaram ninguém e convidam à inacção.

Um primeiro resultado é o espectáculo que se assiste todos os anos à volta da possibilidade da Frescomar fechar com perda de centenas de empregos e prejuízos enormes nas exportações. Um outro é o debate patético que se faz à volta dos acordos de pesca com a União Europeia. Já no que diz respeito à capacitação de uma Guarda Costeira, virada para a fiscalização da zona económica exclusiva do arquipélago e para busca e salvamento de forma a diminuir os riscos de perda de vida dos pescadores, não se discute, talvez para não se intrometer em domínios “reservados”. O facto é que Cabo Verde continua indefeso perante as incursões ilegais de entidades outras e dependente da ajuda externa num sector em que por excelência devia criar riqueza, submetendo-se, pelo contrário, a uma lógica redistributiva de botes, motores, caixas térmicas e até bicicletas e motos eléctricos para procurar superar vulnerabilidades que insistem em se manter. Economias de escala e acesso a outros mercados seriam necessários para diminuir os riscos inerentes à actividade, mas mesmo quando essas condições são criadas, pela via das conserveiras viradas para exportação como a Frescomer, faltam políticas para as aproveitar em pleno.

Outros mitos alimentados por gerações servem muitas vezes para distrair do essencial, justificar investimentos duvidosos e convidar a uma espécie de resignação que de tempos em tempos é sobressaltada com euforias particularmente na sequência de construção de infraestruturas, seguida de frustrações quando os objectivos não são atingidos para depois a ela se regressar. Um desses mitos baseia-se na crença que se o país chovesse “todos seriam felizes e ninguém precisaria do Estado”. Muito da euforia à volta da mobilização da água via barragens ontem, e via dessalinização de água hoje, resulta desse mito. Água é importante assim como ter mar e peixe. Mas não chega, como mostra a persistente vulnerabilidade das populações envolvidas nessas actividades.

Há que ter políticas consequentes com investimento, desenvolvimento do capital humano e acesso organizado a mercados para se criar um círculo virtuoso que resulte em mais riqueza para o país e mais rendimento para as pessoas. Cabo Verde precisa libertar-se dos mitos que o mantém ainda conformado a esperar a ajuda dos outros. O impacto da pandemia sobre o turismo e sobre toda a economia nacional deveria ser choque suficiente para se livrar desse torpor e mobilizar energia e vontade para construir a prosperidade que todos almejam.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1002 de 10 de Fevereiro de 2021.

segunda-feira, fevereiro 08, 2021

Pandemia e política externa

 A política externa tem sido tema de conversa e controvérsia nas últimas semanas. Depois da demissão do ministro dos Negócios Estrangeiros, na sequência da nomeação de um cônsul honorário considerado controverso por certos sectores da política nacional por causa das suas preferências políticas, ganhou mais força.

A matéria foi agendada para a discussão na Assembleia Nacional e como seria de esperar o debate acabou por resumir-se a disputas de quem foi mais patriótico, quem trouxe mais ajuda externa e quem mais prestigiou o país. Interessante, mas revelador do nível e pertinência do discurso político produzido pelas partes, é o facto que, quando se traz à baila a questão concreta da taxa comunitária no valor de 20 milhões de dólares que Cabo Verde já deve à CEDEAO e cujo montante aumenta todos os dias, não há respostas claras.

Ninguém aparece a disputar a taxa, todos se predispõem a pagar, mas não se fica com a impressão que alguém sabe realmente como fazer. Aparentemente ninguém tem um plano de rever as transacções internacionais do país para deixarem de ser mais de 80% com países que não são da CEDEAO e não produzir essa taxa comunitária elevadíssima e desproporcional. Isso obrigaria Cabo Verde, um país insular a mais de 400 milhas da costa ocidental da África a industrializar-se e a diversificar a sua economia no sector de serviços e das tecnologias de informação e comunicação de forma a competir com outros países no acesso aos mercados africanos. De facto, é só com a expansão da economia nacional provocada pelo aumento de produtos transaccionáveis com a África é que se pode pretender pagar o montante da taxa em dívida e a prazo minimizar o valor anual da própria taxa. E sem pagamento não há meio de Cabo Verde ter algum papel de relevo na comunidade como todos tiveram a oportunidade de constatar no caso recente da apresentação da candidatura à presidência da CEDEAO.

Ou seja, todos podem proclamar ter a melhor, a mais inteligente e mais pragmática política externa, mas a verdade é que sem uma consistente política interna de atracção de investimentos, de incentivo à iniciativa privada e de desenvolvimento dos recursos humanos não há como posicionar-se externamente de forma vantajosa para crescer e produzir riqueza. Fica-se na prática por uma política externa dirigida para a captação de ajudas que pode parecer pragmática por não questionar a origem e os condicionalismos das doações e até “esperta”, numa perspectiva de curto prazo de mobilizar fluxos externos para o país. A médio e longo prazo porém revela-se pouco inteligente porque sendo na essência passiva e submissa não é articulada com uma política interna virada para o crescimento. Com o andar dos anos, já se passaram mais quatro décadas após a independência nacional, acabam por se revelar os custos das opções feitas visíveis na persistente vulnerabilidade do país, e na precariedade da vida das populações e num endividamento externo quase insustentável.

Um debate sobre a política externa do país não deveria ficar por exercícios de auto-congratulação por supostos grandes resultados conseguidos. Muito menos deveria servir de arma de arremesso para conquistar eleitores na emigração com vista às próximas eleições legislativas e presidenciais. A fragilidade do país é por demais notória e a pandemia do coronavírus veio expô-la ainda mais. Sem uma política interna dirigida para a potencialização dos recursos do país a começar pelos recursos humanos e sem espírito de abertura ao mundo para realisticamente aperceber das oportunidades e agir sem complexos e com desembaraço para os aproveitar fica difícil construir um outro caminho. E isso é fundamental para sair do que retrospectivamente se pode constatar como tendo sido uma gestão “corrente” do Estado que apesar de avanços nalguns indicadores do crescimento económicos e social nunca de facto foi capaz de colocar o país numa plataforma sustentável de desenvolvimento.

A urgência de uma nova abordagem é ainda maior quando é mais que evidente que o mundo está a mudar e que o multilateralismo das últimas décadas dificilmente irá sobreviver nos mesmos moldes. Nesse sentido há que considerar que já passou o tempo da guerra fria em que se podia tomar como grandes artes da diplomacia saber esconder certas simpatias ideológicas para aproveitar o grosso da ajuda externa que vinha das democracias da Europa e da América. Ou que se podia recorrer às velhas reivindicações de utilidade do país no plano internacional como eixo da política externa em grande parte para salvaguardar o orgulho nacionalista e terceiro-mundista e para justificar um quadro de relação que era de facto de dependência da ajuda externa.

O tempo é agora fundamentalmente para a utilidade que conduz a maior autonomia das pessoas e da sociedade e traz prosperidade e que o país pode granjear atraindo investimentos, sendo destino turístico de qualidade e integrando cadeias de valor globais. Também em simultâneo com o fortalecimento de relações multilaterais deve-se investir em relações bilaterais fortes e confiáveis na base da partilha de princípios e valores que sirvam de âncora para enfrentar as múltiplas ameaças, sejam elas do crime, do terrorismo ou dos diferentes tráficos, sejam elas naturais como a da actual pandemia e as alterações climáticas. O pragmatismo na actual situação deve significar evitar que resquícios ideológicos de outras épocas interfiram nas relações com os outros países não deixando espaço para que a prosperidade mútua se construa na base de confiança.

A pandemia do coronavírus enquanto ameaça global tem permitido obter uma perspectiva dinâmica das relações entre as nações e seu possível impacto no futuro. A escassez sucessiva de máscaras, álcool gel, máquinas de PCR e reagentes e agora de vacinas desencadeou várias reacções dos países desenvolvidos que vão desde o proteccionismo com controlo de certas exportações consideradas vitais, a apelos para fazer regressar ao país (onshoring) indústrias estratégicas e até à redefinição das actuais cadeias globais de abastecimento. Em tal ambiente sofrem os mais pequenos e os mais fracos. Desembaraçam-se melhor os que souberam alimentar relações bilaterais fortes por razões históricas ou outras com países em posições- chave.

As ilhas Maurícias e as Seichelles por exemplo receberam da Índia respectivamente 100 mil e 50 mil doses de vacinas e puderam iniciar a imunização da sua população em Janeiro. O mesmo aconteceu nas Caraíbas onde várias ilhas que se suportaram na relação especial com países da União Europeia para beneficiar da quota das vacinas atribuídas. Já Portugal, em Janeiro, abdicou de comprar 800 mil doses de vacinas que constavam da sua cota. Se logo no início da pandemia o aprofundamento da relação bilateral com Portugal tivesse sido visto como estrategicamente vital para o país talvez as coisas tivessem corrido melhor na luta contra a covid-19, fruto de melhor articulação, acesso a recursos diversos e apoio científico.

Os tempos de hoje pedem um outro foco nas relações externas que realmente beneficiem o país e não sejam simplesmente ir atrás de certos sentimentos ou interesses que depois trazem custos como a taxa comunitária que ninguém depois sabe como justificar ou como pagar. O debate sobre a política externa deve ter essa perspectiva de futuro e não deixar-se apanhar por distracções como o pseudo conflito entre embaixadores políticos e embaixadores de carreira, que só servem para o arremesso político e justificar as insuficiências da diplomacia. Convenhamos que ninguém ignora que o vaivém entre cargos políticos e cargos diplomáticos não é de hoje. Vem desde sempre e nunca constituiu o problema maior da política externa cabo-verdiana.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1001 de 3 de Fevereiro de 2021.

segunda-feira, fevereiro 01, 2021

Ininterrupto

 


O Expresso das Ilhas põe nas bancas nesta quarta-feira, 27 de Janeiro, a sua edição número mil. Quase vinte anos se passaram desde a primeira edição de 12 de Dezembro de 2001.

Ininterruptamente nas bancas desde então o jornal passou por muitas fases e até agora tem conseguido driblar o destino que muitos pressagiam para a imprensa escrita. Com uma nova direcção a partir de Agosto de 2010, e após uma reestruturação profunda, que colocou a empresa em bases financeiras mais resilientes, o Expresso das Ilhas tem vindo a navegar os ventos difíceis encontrados pelos jornais em todo o mundo. Em Cabo Verde, como noutras latitudes, alguns já soçobraram ou tiveram de mudar de plataforma para poder sobreviver, ficando o país em tempos de pandemia sob o risco de não ter qualquer jornal impresso.

De facto, à actual realidade de um mercado publicitário a encolher-se, juntaram-se há algum tempo as ameaças da televisão 24/7, que vinham de longe, e as novas ameaças representadas pelas redes sociais. Estas últimas até dão espaço a alguma pretensão de que os médias tradicionais não são necessários e que se pode passar sem mediação na comunicação social. Por isso mesmo a caminhada não tem sido fácil até agora mas talvez este momento venha a revelar-se como um ponto de inflexão numa tendência que até recentemente parecia inelutável. Um sinal claro é a derrota de Trump. Na sua esteira sofreram sério revés as movimentações que vinham propondo realidades alternativas e também combatendo a comunicação social tradicional e acenando com uma sedutora ligação directa do líder às pessoas através do Twitter, do Facebook e de outras plataformas na internet. Uma oportunidade poderá estar a oferecer-se para afirmação de uma outra forma de jornalismo que não deixe as pessoas completamente expostas à demagogia, ao populismo e à manipulação violenta de sentimentos e paixões em detrimento da razão.

Ninguém hoje pode pretender desconhecer que por detrás dessas ondas de apoios a demagogos e extremistas estão problemas reais que tardam em ser devidamente enfrentados. As frustrações, os ressentimentos, a insegurança, a perda de rendimentos e de estatuto social de largas camadas da população nas democracias têm sido a fonte que alimenta todos os candidatos a autocratas no seu esforço de descredibilização das instituições, de questionamento dos processos democráticos e de se apresentarem como o único e verdadeiro representante do povo. Não se pode esconder, porém, que ao longo do tempo têm recebido preciosa ajuda de onde em princípio devia haver mais recato.

É uma realidade os estragos que a classe política vem provocando nas instituições democráticas. Quantas vezes usam do mesmo discurso populista para lançar descrédito sobre as instituições ou servem-se de argumentos mesquinhos para bloquear acções urgentes e necessárias, mostrando-se incapazes de compromissos. Também é preciso ver o papel dos médias que no seu afã de conquista de audiência perdem a perspectiva do que deles se espera: fiscalização consistente e até acutilante da acção governativa e não produção de mais cinismo em relação às instituições que depois deixa as pessoas e todo o sistema político mais vulnerável. Ainda há a acrescentar a indiferença de boa parte da sociedade civil que, mostrando desprezo pela actividade política e cultivando um cosmopolitismo que não deixa ver os problemas mais locais, tudo faz para alimentar sentimentos anti-elitistas que tendem a ser aproveitados por demagogos para lançar as pessoas contra tudo o que é ciência, conhecimento consolidado e informação institucional.

O Expresso das Ilhas na sua última iteração procurou ir além do que o panorama jornalístico cabo-verdiano oferecia. Como historicamente se pode comprovar, as democracias nos seus primeiros anos tendem a ter uma imprensa muita partidarizada ou facciosa. É, em certos aspectos, natural que seja assim considerando que instituições democráticas estão a ser construídas, uma cultura democrática está ainda por ser absorvida e nem sempre se consegue distinguir o adversário do inimigo. Também não se viveu tempo suficiente em democracia para perceber que a política é a arte do possível e que para se conseguir ganhos consistentes há que criar disponibilidade para negociar, chegar a acordos e firmar compromissos. Num ambiente do tipo, muito do que aparece nos jornais é um misto de informação, opinião e especulação procurando servir interesses de partidos e facções e ambições de certas personalidades. A crispação política nas instituições e em particular no parlamento é replicada e amplificada via imprensa com sacrifício muitas vezes da verdade e do debate das questões públicas pertinentes e num registo que não poucas vezes desemboca em acções judiciais por injúria, calúnia e difamação.

Preparar Expresso das Ilhas para ir além das contendas iniciais da democracia e prestar-se a servir o público com mais equilíbrio e objectividade traduziu-se em primeiro lugar na introdução do editorial enquanto opinião expressa do jornal quanto aos assuntos correntes do país. Libertava-se assim o resto do jornal e também os jornalistas para informação sem contaminação opinativa e especulativa. Nas páginas deixadas para os colunistas e opinião de colaboradores houve sempre a preocupação em as manter plural. Por outro lado, querendo um jornal generalista, procurou-se dar cobertura com alguma profundidade a matérias de natureza económica e ter uma secção de cultura vibrante, não descurando o seguimento de situações internacionais e o acesso a opiniões habilitadas de personalidades estrangeiras. A ciência e a tecnologia sempre foram áreas de eleição no jornal e é com agrado que se pode constatar que de alguma forma a “moda” pegou.

A partir da nova abordagem o jornal reafirmou o seu comprometimento com a verdade e com a informação factual e também a sua disponibilidade em promover o conhecimento indispensável para uma participação cidadã plena. Coincidentemente é o que hoje em plena crise das democracias se espera de um papel renovado da imprensa na defesa das instituições e dos direitos fundamentais e na luta contra realidades alternativas e contra os promotores da pós-verdade. Neste número 1000 celebra-se essa caminhada e renova-se a vontade de a prosseguir com firmeza.

Saudamos todos os colaboradores do Expresso das Ilhas pela contribuição ao jornal ao longo de todos estes árduos anos de colocar o jornal nas bancas com a qualidade e assiduidade esperadas pelos leitores e anunciantes.

O nosso apreço vai para todos os que com os seus artigos de opinião contribuíram para que o jornal fosse um espaço plural de debate político.

Os nossos agradecimentos aos patrocinadores das múltiplas iniciativas do Expresso da Ilhas na promoção da cultura cabo-verdiana s e aos anunciantes pela sua contribuição na sustentabilidade do jornal como uma voz interventiva no espaço público do país.

Um muito obrigado ao parceiro especial que é a Tipografia Santos que todas as quartas-feiras com mais uma edição acabada de imprimir nos permite cumprir com os nossos leitores e anunciantes.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1000 de 27 de Janeiro de 2021.