A política externa tem sido tema de conversa e controvérsia nas últimas semanas. Depois da demissão do ministro dos Negócios Estrangeiros, na sequência da nomeação de um cônsul honorário considerado controverso por certos sectores da política nacional por causa das suas preferências políticas, ganhou mais força.
A matéria foi agendada para a discussão na Assembleia Nacional e como seria de esperar o debate acabou por resumir-se a disputas de quem foi mais patriótico, quem trouxe mais ajuda externa e quem mais prestigiou o país. Interessante, mas revelador do nível e pertinência do discurso político produzido pelas partes, é o facto que, quando se traz à baila a questão concreta da taxa comunitária no valor de 20 milhões de dólares que Cabo Verde já deve à CEDEAO e cujo montante aumenta todos os dias, não há respostas claras.
Ninguém aparece a disputar a taxa, todos se predispõem a pagar, mas não se fica com a impressão que alguém sabe realmente como fazer. Aparentemente ninguém tem um plano de rever as transacções internacionais do país para deixarem de ser mais de 80% com países que não são da CEDEAO e não produzir essa taxa comunitária elevadíssima e desproporcional. Isso obrigaria Cabo Verde, um país insular a mais de 400 milhas da costa ocidental da África a industrializar-se e a diversificar a sua economia no sector de serviços e das tecnologias de informação e comunicação de forma a competir com outros países no acesso aos mercados africanos. De facto, é só com a expansão da economia nacional provocada pelo aumento de produtos transaccionáveis com a África é que se pode pretender pagar o montante da taxa em dívida e a prazo minimizar o valor anual da própria taxa. E sem pagamento não há meio de Cabo Verde ter algum papel de relevo na comunidade como todos tiveram a oportunidade de constatar no caso recente da apresentação da candidatura à presidência da CEDEAO.
Ou seja, todos podem proclamar ter a melhor, a mais inteligente e mais pragmática política externa, mas a verdade é que sem uma consistente política interna de atracção de investimentos, de incentivo à iniciativa privada e de desenvolvimento dos recursos humanos não há como posicionar-se externamente de forma vantajosa para crescer e produzir riqueza. Fica-se na prática por uma política externa dirigida para a captação de ajudas que pode parecer pragmática por não questionar a origem e os condicionalismos das doações e até “esperta”, numa perspectiva de curto prazo de mobilizar fluxos externos para o país. A médio e longo prazo porém revela-se pouco inteligente porque sendo na essência passiva e submissa não é articulada com uma política interna virada para o crescimento. Com o andar dos anos, já se passaram mais quatro décadas após a independência nacional, acabam por se revelar os custos das opções feitas visíveis na persistente vulnerabilidade do país, e na precariedade da vida das populações e num endividamento externo quase insustentável.
Um debate sobre a política externa do país não deveria ficar por exercícios de auto-congratulação por supostos grandes resultados conseguidos. Muito menos deveria servir de arma de arremesso para conquistar eleitores na emigração com vista às próximas eleições legislativas e presidenciais. A fragilidade do país é por demais notória e a pandemia do coronavírus veio expô-la ainda mais. Sem uma política interna dirigida para a potencialização dos recursos do país a começar pelos recursos humanos e sem espírito de abertura ao mundo para realisticamente aperceber das oportunidades e agir sem complexos e com desembaraço para os aproveitar fica difícil construir um outro caminho. E isso é fundamental para sair do que retrospectivamente se pode constatar como tendo sido uma gestão “corrente” do Estado que apesar de avanços nalguns indicadores do crescimento económicos e social nunca de facto foi capaz de colocar o país numa plataforma sustentável de desenvolvimento.
A urgência de uma nova abordagem é ainda maior quando é mais que evidente que o mundo está a mudar e que o multilateralismo das últimas décadas dificilmente irá sobreviver nos mesmos moldes. Nesse sentido há que considerar que já passou o tempo da guerra fria em que se podia tomar como grandes artes da diplomacia saber esconder certas simpatias ideológicas para aproveitar o grosso da ajuda externa que vinha das democracias da Europa e da América. Ou que se podia recorrer às velhas reivindicações de utilidade do país no plano internacional como eixo da política externa em grande parte para salvaguardar o orgulho nacionalista e terceiro-mundista e para justificar um quadro de relação que era de facto de dependência da ajuda externa.
O tempo é agora fundamentalmente para a utilidade que conduz a maior autonomia das pessoas e da sociedade e traz prosperidade e que o país pode granjear atraindo investimentos, sendo destino turístico de qualidade e integrando cadeias de valor globais. Também em simultâneo com o fortalecimento de relações multilaterais deve-se investir em relações bilaterais fortes e confiáveis na base da partilha de princípios e valores que sirvam de âncora para enfrentar as múltiplas ameaças, sejam elas do crime, do terrorismo ou dos diferentes tráficos, sejam elas naturais como a da actual pandemia e as alterações climáticas. O pragmatismo na actual situação deve significar evitar que resquícios ideológicos de outras épocas interfiram nas relações com os outros países não deixando espaço para que a prosperidade mútua se construa na base de confiança.
A pandemia do coronavírus enquanto ameaça global tem permitido obter uma perspectiva dinâmica das relações entre as nações e seu possível impacto no futuro. A escassez sucessiva de máscaras, álcool gel, máquinas de PCR e reagentes e agora de vacinas desencadeou várias reacções dos países desenvolvidos que vão desde o proteccionismo com controlo de certas exportações consideradas vitais, a apelos para fazer regressar ao país (onshoring) indústrias estratégicas e até à redefinição das actuais cadeias globais de abastecimento. Em tal ambiente sofrem os mais pequenos e os mais fracos. Desembaraçam-se melhor os que souberam alimentar relações bilaterais fortes por razões históricas ou outras com países em posições- chave.
As ilhas Maurícias e as Seichelles por exemplo receberam da Índia respectivamente 100 mil e 50 mil doses de vacinas e puderam iniciar a imunização da sua população em Janeiro. O mesmo aconteceu nas Caraíbas onde várias ilhas que se suportaram na relação especial com países da União Europeia para beneficiar da quota das vacinas atribuídas. Já Portugal, em Janeiro, abdicou de comprar 800 mil doses de vacinas que constavam da sua cota. Se logo no início da pandemia o aprofundamento da relação bilateral com Portugal tivesse sido visto como estrategicamente vital para o país talvez as coisas tivessem corrido melhor na luta contra a covid-19, fruto de melhor articulação, acesso a recursos diversos e apoio científico.
Os tempos de hoje pedem um outro foco nas relações externas que realmente beneficiem o país e não sejam simplesmente ir atrás de certos sentimentos ou interesses que depois trazem custos como a taxa comunitária que ninguém depois sabe como justificar ou como pagar. O debate sobre a política externa deve ter essa perspectiva de futuro e não deixar-se apanhar por distracções como o pseudo conflito entre embaixadores políticos e embaixadores de carreira, que só servem para o arremesso político e justificar as insuficiências da diplomacia. Convenhamos que ninguém ignora que o vaivém entre cargos políticos e cargos diplomáticos não é de hoje. Vem desde sempre e nunca constituiu o problema maior da política externa cabo-verdiana.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1001 de 3 de Fevereiro de 2021.
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