Assistiu-se na semana passada a mais alguns episódios do que se podia chamar a novela da “não Justiça”. O julgamento de um advogado que alegadamente difamou magistrados judiciais, entre os quais juízes conselheiros, foi pontuado por vários incidentes que, sem surpresa, levaram a mais um adiamento dos procedimentos para o dia 5 e seguintes de Março.
Será a quarta tentativa de julgamento. Inicialmente previsto para 5 de Janeiro depois de um hiato de quase dois anos – a última tentativa tinha sido em Março de 2019 – o julgamento foi adiado para 23 de Fevereiro por não comparência do acusado. A detenção do advogado com o intuito de prevenir a repetição da não comparência em Janeiro não serviu de muito para garantir o prosseguimento normal do julgamento.
Actos perturbadores dos procedimentos como abandono de sala, contestação da competência do juízo criminal e questionamentos quanto à idoneidade da juíza que se seguiram e tiveram eco ao longo da semana em órgãos de comunicação social e nas redes sociais foram suficientes para provocar mais outro adiamento. Curiosamente do lado de onde vêm denúncias parece haver maior disponibilidade e criatividade no uso de tácticas diversas para garantir que a justiça fica sempre adiada, confirmando num círculo vicioso a noção inicial de “não justiça” no país. Sem julgamentos iniciados e concluídos não há como os caluniados obterem reparação de quem os acusou nem este tem a possibilidade de finalmente provar as denúncias feitas. Os estragos vão porém muito além ao deixar sob suspeita juízes, processos e procedimentos judiciais. É todo o sistema judicial que se arrisca a ser descredibilizado se a situação perdurar por muito mais tempo.
Na democracia a realização da justiça é fundamental para a Liberdade e a paz social. O Estado de Direito democrático instituído, para além de se reger pelo princípio de separação dos poderes tem o seu suporte no primado da lei e na independência dos tribunais. A democracia corre perigo se se transmite a ideia de que a lei pode não ser igual para todos, que a justiça não é eficaz ou que há espaço para os juízes servirem interesses próprios ou de outrem na administração da justiça sem receio de serem punidos e expurgados do sistema. Não é por acaso que os inimigos da democracia liberal e constitucional tomam a integridade e a independência da justiça como alvo central de ataque. Sempre que acontecimentos, eventos ou conjunturas se mostrarem propícios a ataques à justiça nota-se como que de repente e de diferentes quadrantes frustrações com a actuação da justiça ou sua morosidade se juntam a sentimentos às vezes cépticos em relação à democracia e em alguns casos até anti-sistémicos para descredibilizar a democracia.
Em Cabo Verde é visível como, com o arrastar por anos seguidos do julgamento referido em que magistrados judiciais foram alegadamente caluniados, o caso tem sido transformado na bandeira de quantos querem demonstrar o seu descontentamento com o sistema de justiça e o actual regime democrático. Nos últimos tempos a força gravitacional desse caso tem aumentado, ameaçando atrair os próprios partidos políticos, em particular os mais pequenos que julgam poder capitalizar a onda populista que nele se revê. Não havendo no país factores fracturantes do tipo existentes noutras democracias nomeadamente grupos étnicos ou religiosos em tensão permanente, migrações expressivas de outras regiões, ou discriminações claras entre grupos populacionais, fica muito pouco para ser canalizado por sentimentos anti-sistema e por descontentes da democracia. Não estranha pois que alguma percepção da crise na justiça existente na sociedade seja aproveitado nesse sentido.
A petição “em prol de uma melhor justiça em Cabo Verde” dirigida ao presidente da república, provavelmente associada às manifestações recentes de pessoas e grupos à volta dos julgamentos sucessivamente marcados e adiados, terá deixado alarmado o próprio presidente de república, como parece transparecer de um seu post na sua página do Facebook. No post de 26 de Fevereiro logo a seguir a um outro de 25 de Fevereiro em que confirma ter recebido a petição, o PR escreve : “ficamos surpresos às vezes quase «arrepiados», ao lermos e ouvirmos coisas, propostas, manifestações, crenças, opções, de gente que - legítima e justificadamente insatisfeita com a situação em que vive e que observa no dia a dia - nos parecia completamente vacinada contra remédios do autoritarismo político, de um bonapartismo à mão de semear, sugestões aventureiras, amiúde a roçar a leviandade e/ou fundadas em grosseira manipulação de factos e realidades, propalados por profetas da salvação fácil, imediata e, portanto, atraente!”
De facto é muito complicado encarar questões importantes da vida do país quando o ponto de partida não corresponde aos factos. Para se propor uma “comissão de gente independente” para investigar a justiça começa-se primeiramente por semear dúvidas e suspeições numa espécie de realidade alternativa: “terá sido ordenado um inquérito”; “é verdade que não se lhe conhecem os resultados”; “é evidente que um inquérito dessa natureza (realizado pelos pares) não dá garantias de credibilidade”. Facto é que foram feitos três inquéritos: dois do Ministério Público e um outro pelo serviço de inspecção judicial a pedido do Conselho Superior de Magistratura judicial (CSMJ). Os comunicados da Procuradoria-Geral da República, um datado de 10 Abril de 2019, e o outro de 3 de Janeiro de 2020, são peremptórios a dizer que existem “prova bastante de não verificação dos alegados crimes” e anunciam que os despachos de encerramento estão abertos na PGR para consulta por qualquer cidadão. Vai no mesmo sentido o comunicado do CSMJ de 20 de Outubro de 2017. Porém, mais complicada ainda será a aparente sugestão posta a circular que não há “garantia de isenção que permita ao cidadão dizer em consciência, caso não se provar as acusações”, que [o réu] merece ser severamente punido por ter-se permitido denegrir a Justiça do país”. Ou seja, sugere-se que não se aceite a sentença do tribunal.
Ora, acontecimentos recentes vieram relembrar precisamente a importância de se manter a credibilidade do sistema judicial face às ameaças a que nos tempos actuais as democracias estão sujeitas. Há pouco mais de um mês viu-se como o sistema judicial, as comissões eleitorais nos diferentes estados americanos e a postura da instituição militar nos Estados Unidos da América contribuíram para salvar a democracia americana das investidas de forças antidemocráticas que contestavam os resultados das eleições. No Brasil, e noutros países onde os sinais da crise da democracia são mais evidentes, vê-se como o poder judicial ajuda a conter o populismo iliberal e como também se torna o alvo preferido de todas as manifestações anti sistémicas. Quando todas as democracias, sejam elas novas ou consolidadas, parecem estar a passar por uma crise profunda, incluindo crise de representação, descredibilização das instituições e o recrudescer de sentimentos anti elitistas, é fundamental que se preserve a confiança no sistema da justiça.
Em Cabo Verde os dados recentes apresentados pelo Afrobarómetro deram conta do desgaste já sentido nas instituições democráticas do país. Há razões externas que na actual conjuntura afectam todas as democracias e que se fazem sentir no país mas também há razões internas que importa identificar e contrariar para se poder reverter o actual curso. Os partidos políticos têm responsabilidade no processo, mas a culpa não deve ser somente atribuída à classe política. É fundamental exigir-se a responsabilidade de quantos em várias instituições reguladoras, de fiscalização e supervisão contribuem para que a sociedade seja autónoma e inovadora e se mantenha plural. Em particular do sistema judicial todos esperam que com competência e celeridade necessária garantam a eficácia da justiça e mesmo nos momentos difíceis saibam manter a confiança das pessoas. Dessa relação de confiança é que depende toda a credibilidade e a legitimidade do sistema judicial aos olhos do cidadão comum. Os sobressaltos dos tempos de hoje mais do que nunca convidam a relembrar de como é fundamental preservar a justiça para se ter paz e liberdade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1005 de 3 de Março de 2021.
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