segunda-feira, junho 14, 2021

Plano credível para construir o futuro

 

A pandemia da Covid-19 poderá estar a aproximar-se do seu término. Em alguns países já se respira ares de normalidade e se fazem planos de regresso ao trabalho fora de casa, de viagens ao estrangeiro e de participação em actividades culturais, desportivas e outras que atraem multidões.

Está-se, porém, longe de dar como garantido o regresso ao que era habitual. A vacinação ainda é muito desigual num mundo altamente conectado que deixa todos expostos a surtos repentinos em qualquer ponto do globo. Também a enorme exposição de pessoas ao coronavírus abre o caminho para o aparecimento de mutações que além de se revelarem mais transmissíveis e eventualmente mais letais permitem ao vírus contornar as vacinas pondo em causa o esforço de imunização das pessoas. E ainda não é de se desprezar o número considerável dos que duvidam e se opõem às vacinas e com essa atitude criam e mantêm um espaço onde o vírus pode circular, mutar e, de um momento para outro, saltar para a população.

Apesar das incertezas que se mantêm e a realidade de se poder vir a enfrentar novas vagas de covid-19 acompanhadas de recuos no progresso em direcção à normalidade, não se pode deixar de pensar no futuro e em tentar resolver os graves problemas criados pela crise pandémica levando à perda de emprego e à perda de rendimento para muita gente em todos os países do mundo. Contudo, agir não significará simplesmente retomar o fio do que antes se fazia. Aliás, nem é fazer o mesmo, nem se pode esperar que tudo será resgatável ou até mesmo que as actividades possíveis possam ser retomadas em pleno no imediato. Compreender isso é fundamental, por um lado, para temperar as expectativas de regresso rápido aos níveis de crescimento anteriores e, por outro, para utilizar os recursos existentes com eficiência e eficácia mais apuradas para minimizar o impacto da crise nas pessoas e na economia e preparar o futuro.

Transformações importantes aconteceram nas relações comerciais e na forma como os países vêem a globalização. Rivalidades hegemónicas assumidas, em particular, entre os Estados Unidos e a China e derivas nacionalistas na forma de “políticas industriais” adoptadas por vários países e blocos económicos já indiciam que mudanças a nível global afectando a produção e a circulação de bens e serviços e a movimentação de capitais poderão ter caracter permanente. Navegar nesse novo oceano de interesses não será fácil, em particular, quando comportar a exigência de escolher o lado a seguir, seja em matéria de tecnologia, seja de opções de investimento e até de vacinas. Mas nem tudo será mau.

Do lado positivo para os países em desenvolvimento o fim da pandemia traz no seu seio a possibilidade de que taxas elevadas de crescimento nos países ricos tenham forte impacto em particular nas exportações e no turismo, dinamizando o resto da economia. Também o facto de a Covid-19 ser global obriga a que para a vencer definitivamente se tenha que, a par de acções de vacinação, ajudar os países mais vulneráveis na retoma da economia para poderem efectivamente combater a pandemia. Nesse sentido e, de acordo com Martin Wolf no Financial Times, é grande a perspectiva de que um volume enorme de recursos financeiros em forma de doações, empréstimos concessionais e perdão da dívida externa poderá constituir um autêntico “maná para os pobres”. Acrescenta ainda que tal sorte grande só será proveitosa se for para apoiar os governos que têm planos credíveis para recuperar o terreno de desenvolvimento perdido e que não se tente comprar reformas via condicionalidade.

O vice-primeiro-ministro Olavo Correia, na semana passada, colocou em cinco mil milhões de euros o financiamento que Cabo Verde precisa investir nos próximos dez anos. Para o ministro “sem uma solução para a dívida pública actual, dificilmente [Cabo Verde] conseguirá fazer investimentos em sectores da saúde, água, saneamento, qualificação urbana e do fomento empresarial”. Para Cabo Verde, como para os outros países endividados e vulneráveis, o problema é se, conseguido o perdão ou a reestruturação da dívida, o financiamento que daí resulta irá para implementação dos tais planos credíveis referidos por Martin Wolf. Aliás, trata-se de um verdadeiro dilema com que a generalidade dos países se deparam – sejam eles ricos da União Europeia nas vésperas de aceder a biliões em ajuda pós-pandémica ou pobres à espera de perdão da dívida – sempre que estão em vias de receber investimentos massivos destinados ao desenvolvimento.

Não há garantia que os recursos serão usados para construir o futuro ou se serão destinados para o “mais do mesmo”, desperdiçados em projectos de estimação ou dissipados em devaneios ideológicos e jogadas de poder. Da qualidade do debate democrático a começar pela apreciação do programa do governo no parlamento e posterior discussão e aprovação do orçamento do Estado irá depender muito do que de produtivo e eficaz se vier a fazer dos financiamentos conseguidos. Objectivos, estratégias e prioridades terão que ser discutidos e assumidos. Não se pode é ficar pela proverbial “lista de lavandaria” de medidas ou listagem sem encadeamento, sem um tempo próprio para implementação e sem uma orientação para resultados.

De se evitar também é a condicionalidade de que fala Martin Wolf. Segundo este economista comprar reformas com condicionalidade quase nunca funciona. O problema é que quando instalado o hábito de se deixar condicionar pelas prioridades “du jour” dos doadores para poder obter financiamento reformas não acontecem, recursos são desperdiçados, vulnerabilidades persistem e o futuro fica comprometido. Permitir que isso aconteça outra vez não é aceitável. Depois da pandemia e com as incertezas no horizonte seria de uma irresponsabilidade sem paralelo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1019 de 9 de Junho de 2021.

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