segunda-feira, dezembro 13, 2021

Democracia e eficiência

 

Finalmente tomou posse esta segunda-feira o novo ministro do Mar depois de mais de um mês que formalmente o Primeiro-ministro tomou conhecimento do pedido de demissão do cargo apresentado por Paulo Veiga.

Na primeira reacção, o PM disse que a nomeação do novo titular ficaria para depois do empossamento do Presidente da República que estava marcado para 9 de Novembro. Nada o obrigava a esperar, considerando que o então PR estava em plena posse dos seus poderes. Se ainda levou mais de três semanas para propor, outras razões terão pesado na decisão, ou indecisão, conforme as interpretações, considerando que acabou simplesmente por entregar a pasta da Economia do Mar ao ministro da Cultura.

O país não ficou realmente surpreso com a solução encontrada porque tem sido a forma standard de operar do actual primeiro-ministro. Não é dado a reais remodelações do governo nem com a mudança de legislatura e nem até agora com a crise pandémica, não obstante o seu impacto sem precedentes ao nível económico e social. Quando surgem vagas no governo por razões de demissão, desaparecimento físico ou desgaste político de vária ordem tende a entregar a pasta a um outro ministro ou faz acréscimos pontuais. Não estranha que a discussão sobre a funcionalidade do governo fique sobre se é “gordo ou magro” visto da perspectiva de quanto o número de titulares do momento estará a pesar nas despesas do Estado. Deixar sem titular durante mais de um mês um sector-chave da economia nacional e depois ir para o que até prova contrária poderá passar a imagem de ser uma solução de recurso alimenta esse tipo de debate porque fica-se sem saber que objectivos são prioritários e qual é a estratégia que se está a seguir para os atingir.

Com o turismo ainda longe de reocupar o seu papel na dinamização da vida nacional, a que se acrescentam as múltiplas incertezas provocadas por surtos de variantes do sars-cov-2 e outros constrangimentos da economia mundial, é cada vez mais clara a necessidade de se proceder à diversificação da economia. O sector da economia do mar é fulcral nesse sentido. Entre as suas várias contribuições permite explorar recursos naturais através da actividade piscatória e aquacultura, aproveitar a geo-localização do país para prestar um leque importante de serviços e via investimentos já feitos na investigação científica, ensino superior e formação profissional capacitar mão-de-obra especializada para demandas nacionais e estrangeiras em vários domínios. Em simultâneo, é também fundamental na criação de condições para se manter a ligação entre as ilhas, unificar o mercado nacional e permitir a certas actividades agro-pecuárias e industriais beneficiar de economias de escala que de outra forma não seriam possíveis. Não é, pois, um sector que em algum momento ou em qualquer questão concreta se queira passar qualquer sinal de descaso, indecisão ou fragilidade.

Particularmente em tempos de crise devia-se procurar transmitir com maior vigor uma imagem de firmeza institucional, de comprometimento com os objectivos definidos e de sentido de Estado e de defesa do bem público. Também devia-se evitar tacticismos político-partidários que só levam a bloqueios e a degradação do discurso político. De outra forma começam a proliferar comportamentos e iniciativas fora do quadro procedimental já estabelecido dos quais ninguém acaba por ganhar, só se criam tensões desnecessárias no sistema político e dá-se azo para futuros conflitos de competências.

Há duas semanas atrás aconteceu que o PM foi com uma delegação de dois ministros apresentar a proposta de orçamento do estado ao PR. Na sequência, o PR fez uma série de contactos junto dos partidos políticos com assento parlamentar, câmaras de comércio e sindicatos ficando a impressão no público que poderia haver dificuldades em passar o OE. Tudo afinal não passou de falso alarme como foi comprovado na sessão do parlamento em que para apoiar a proposta do governo esteve uma maioria sólida. Ninguém beneficiou com os equívocos criados e as iniciativas que bem podiam ser mais úteis noutros momentos, mas no ar e provavelmente na mente de alguns o governo ao longo do processo deixou passar um quê de fragilidade.

Esta segunda-feira, foi a vez do presidente da Assembleia Nacional a encontrar-se com o presidente da república para apresentar a agenda parlamentar. Segundo as declarações do PAN à imprensa foram abordadas várias questões entre as quais a eleição dos órgãos externos à Assembleia Nacional, a questão da segurança do parlamento e “a revisão da Assembleia Nacional para suprir as lacunas, acabar com os excessos que temos no regimento, para que o parlamento possa imprimir maior eficiência e eficácia no seu desempenho”. Tudo isso é no mínimo surpreendente não só pelo insólito como também por não se imaginar que papel o presidente da república poderia ter nessas matérias que são da competência exclusiva do parlamento, um órgão de soberania plural eleito directamente pelo povo. Em Outubro último o parlamento elegeu com a maioria de dois terços dos deputados presentes os membros do Conselho Superior de Defesa Nacional e os membros da comissão de fiscalização dos Serviços de Informação da República. Há, portanto, disponibilidade para colaboração dos grupos parlamentares e nada aparentemente impede que essa vontade que já se manifestou também se estenda para a eleição dos órgãos externos. Certamente que o presidente da Assembleia Nacional pode sozinho pressionar para que isso aconteça o mais cedo possível.

O ambiente de “competências pouco definidas” ou “fluídicas” que parece querer instalar-se nos últimos tempos já se faz sentir também ao nível do poder local. Na Câmara da Praia o presidente num conflito aberto com a maioria dos vereadores entre os quais alguns pertencente à sua lista dá sinal de querer assenhorear-se das competências do órgão executivo colegial, nomeadamente a aprovação da proposta do orçamento municipal a apresentar à assembleia municipal, como estabelece o estatuto dos municípios. Está-se supostamente a contrapor à lei de organização e funcionamento dos municípios a lei das finanças locais que diz que a proposta do orçamento elaborada pelo presidente é submetida à apreciação da Câmara até dia 15 de Setembro numa interpretação que esvazia de qualquer importância um órgão político colegial directamente eleito, anulando efectivamente o mandato dos eleitos que no caso até representam diferentes partidos.

A última reunião da assembleia municipal que devia ser de discussão e aprovação dessa proposta não se realizou com esse ponto na agenda porque continua o braço de ferro. Aparentemente a AM está a hesitar em seguir o procedimento adoptado durante os trinta anos de poder local democrático em todos os municípios do país que é de se discutir e aprovar o orçamento do município depois de a câmara ter aprovado o projecto de orçamento municipal (art. 92º nº 2, alínea r). Com essa falha procedimental põe-se em causa os equilíbrios do sistema de poder local ao provocar a deslocação excessiva de poder para o presidente da câmara em detrimento dos outros órgãos eleitos e incorre-se no risco de perda de eficácia na actuação pública municipal e de com isso defraudar os eleitores.

A realidade tem demonstrado que cair na tentação de seguir a via do voluntarismo, da discricionariedade e da unicidade de poder só porque parece dar respostas rápidas e fortes traz custos que todos acabam por pagar e constituiu um lastro que impede o desenvolvimento. Há, pois, que manter a aposta no aprofundamento da democracia que implica respeito pela separação de poderes e competências, pluralismo nas deliberações e responsabilização permanente. É ainda o melhor caminho para maior eficiência e eficácia do Estado na vida pública e para se conseguir o almejado desenvolvimento inclusivo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1045 de 8 de Dezembro de 2021

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