Na segunda-feira quase sem aviso prévio o primeiro-ministro apareceu a declarar a situação de emergência social e económica de Cabo Verde.
Invocou a guerra na Ucrânia e o seu impacto na oferta e nos preços dos produtos alimentares e dos combustíveis. Na sua intervenção o PM disse que a iniciativa da declaração “vai permitir accionar junto dos parceiros instrumentos e mecanismos ajustados às respostas de emergência e mobilizar recursos”. Acrescentou ainda que também visa o reforço da consciencialização dos cabo-verdianos sobre a grave situação que o mundo vive e o seu impacto no país.
Avaliando a oportunidade da tomada de posição do governo pode-se dizer que, no que toca à consciencialização dos cabo-verdianos sobre a gravidade das ameaças e desafios com que Cabo Verde se depara, a declaração, não obstante as propostas pertinentes e sensíveis, provavelmente terá sido algo tardia. A emergência económica e social já vem da pandemia, dos sucessivos surtos, das dificuldades posteriores na retoma e das incertezas em relação ao futuro derivado do chão movediço em que o mundo procura apoiar-se nestes tempos. As tensões geopolíticas e a guerra subsequente só vieram agravar ainda mais a situação. Também a declaração terá sido omissa num renovado apelo à solidariedade de “todos para com todos”, algo que não se perde nada em repetir para assegurar que os recursos próprios são canalizados de melhor forma e que há total empenho para que a ajuda internacional concedida tenha a melhor utilização e atinja as pessoas que mais dela necessitam.
De facto, as crises sucessivas dos últimos anos durante as quais se tem a registar a contracção de quase 15% do PIB do país e o aumento na dívida pública acima dos 150% do PIB acabaram por deixar a nu as profundas vulnerabilidades do país e as dificuldades de a médio prazo as poder ultrapassar. Mas a particularidade de, mesmo com essas situações extremas, não haver a consciencialização desejável dos extraordinários desafios que se colocam impediu a mobilização de energias suficientes para os enfrentar de forma sistemática e decisiva. Ficou-se sempre na expectativa de ver a pandemia passar, de não haver mais surtos de coronavírus e de rapidamente se voltar à normalidade anterior. E qualquer sinal de actividade era tido como prenúncio de retoma. Não havia como cristalizar essa consciência das dificuldades e deixá-la crescer num ambiente desses, ainda para mais, em cima de eleições que por natureza são polarizantes.
Não espanta que logo que com o esvanecer da vaga da variante Ómicron em fins de Janeiro do corrente ano se tenha descortinado uma oportunidade para voltar às práticas anteriores. Vê-se isso no proliferar de festas com subsídio público, de viagens e de outros eventos provavelmente dispensáveis porque realmente não prioritários como tinha ficado provado durante a pandemia. O mundo, porém, de facto mudou e nem sempre para o melhor e as boas novas da vacina não eram suficientes para garantia completa de imunidade. Por outro lado, dificuldades inesperadas surgiram no abastecimento e nos preços devido a estrangulamentos nas cadeias de abastecimento e a inflação reapareceu a assombrar a todos, impactando negativamente no rendimento das pessoas em particular dos mais pobres. A guerra, as sanções e as incertezas vieram piorar ainda mais a situação. Sofre mais quem menos conseguiu ler os sinais dos tempos e não construiu resiliência económica, nem tão pouco resiliência cívica e solidária para enfrentar incertezas.
Num livro recentemente publicado “Gambling on development” (Apostando no desenvolvimento) o autor Stefan Dercon diz que a “característica definidora de um acordo para o desenvolvimento é o compromisso da elite do país, ou seja, daqueles com o poder de moldar a política, a economia e a sociedade, de lutar pelo crescimento e o desenvolvimento”. Segundo esse economista, é só com esse acordo de elite, por exemplo, é que a própria ajuda externa deixa de ser uma espécie de remendo para os problemas do país para se torna num factor impulsionador nos períodos de crescimento e amortecedor nos momentos difíceis. Infelizmente não há muitos sinais que exista tal acordo em Cabo Verde. É maior a tentação do jogo de soma zero em que um ganha com a perda do outro, ou seja, de se manter um processo subtractivo que prejudica ou mesmo inviabiliza a cooperação necessária para se adicionar eficiência e eficácia ao sistema político-económico com proveito geral. Em momentos de emergência social e económica como o actual, existir ou não um acordo dessa natureza é fundamental até para que a ajuda internacional tenha os benefícios desejados de mitigar os efeitos da crise internacional nos mais pobres e no país.
Um bom ponto de partida para se construir um tal acordo seria a luta contra a criminalidade. Os recentes homicídios na Cidade da Praia com destaque para o assassínio de um guarda prisional chamam a atenção para a necessidade urgente de se combater a insegurança na capital e em todo o país. Sem garantia de segurança a todos os níveis não há realmente possibilidade de desenvolvimento. E ordem e tranquilidade pública não são matéria que deva ser escamoteada sob que pretexto ou artifício for. Nem também deve ser objecto de confrontos entre as forças políticas que invariavelmente terminam deixando as coisas como estavam ou como eram feitas, salvando as aparências, enquanto recursos crescentes são sugados sem que haja benefício que justifique os maiores custos incorridos.
Resultados concretos em termos de diminuição da percepção de insegurança devem ser exigidos e não se ficar pelos efeitos mediáticos das mega operações policiais ou com declarações de “guerra” ao crime. Como bem refere o criminologista David Kennedy o que acaba por acontecer nas comunidades mais pobres quando se adopta certo tipo de tácticas e se militariza a polícia é que se cria uma dinâmica estranha de excesso de policiamento e de subprotecção das pessoas, deixando para trás um rasto de desconfiança que dificulta colaboração futura com as autoridades. Um grande avanço seria, sem dúvida, diminuir o que aparentemente é o acesso fácil a armas de fogo de fabrico artesanal e outras por parte de jovens e adolescentes. Em quase todos os crimes violentos fala-se do uso dos “Boka bedju”.
O governo anunciou na semana passada que vai propor alterações na lei para que, entre outros mecanismos de controle de uso e posse de armas, aumentar penas para a posse ilegal. Passaram nove anos depois da entrada em vigor da lei de armas em 2013 e quatro anos depois do comandante da polícia nacional na ilha do Sal, com prejuízo da sua carreira profissional, ter declarado que a lei vigente é amiga das armas na sequência de uns disparos feitos alegadamente por um jovem contra um carro de turistas. Não se tem a percepção que durante os anos seguintes diminuíram as armas em circulação ou são menos utilizadas em assaltos e conflitos entre pessoas e gangs. Pelo contrário.
Razão para que nestes tempos em que todos parecem reconhecer uma situação de emergência social se tomar uma posição de “desarmar a população” como já foi aconselhada em outros editoriais deste jornal e a exemplo do que países como o Reino Unido (1997), Canadá (2020), Austrália (1996) e Nova Zelândia (2019) e o próprio Brasil (2003) fizeram quando confrontados com escalada grave da criminalidade violenta. E esses são países com cultura de armas ou uma cultura de “fronteira” e não Cabo Verde, onde parece que o que alguns chamariam de masculinidade tóxica tem expressão na posse de armas, em assaltos, guerras de gang e, no extremo, ataque a polícias no intuito de roubar a pistola.
A próxima discussão da lei de armas na Assembleia Nacional pode ser a oportunidade para esse acordo da classe política no sentido de desarmar a população e acabar com o sentimento de insegurança no país. A seriedade que se deve mostrar a enfrentar a situação de emergência social e económica deve ser a mesma a ser posta na resolução do problema de insegurança sentida pelas pessoas. Não há uma coisa sem outra.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1073 de 22 de Junho de 2022.
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