segunda-feira, julho 25, 2022

Sem riscos não se constrói o futuro

 

Diz-se muito vezes, particularmente agora que a palavra resiliência entrou no discurso oficial e das organizações internacionais, que Cabo Verde é um país resiliente. Com essa expressão quer-se provavelmente passar a ideia que, apesar das adversidades vividas das secas, das fomes, do isolamento e da perda de população, o país tem capacidade de absorção de choques externos e de recuperação para um ponto a partir do qual pode continuar a sua trajectória como nação. A história mais recente a partir do século XIX e com enfase em grande parte do século XX mostra perfeitamente isso e deixa perceber como tudo aconteceu.

Momentos particulares de entrosamento do país com a economia global, devido à importância mais ou menos duradoira da sua posição estratégica na navegação marítima e aérea, na pesca ou nas comunicações e ainda à exportação de alguns produtos com valor no mercado da época, trouxeram algum desafogo necessário para essa caminhada. A música, a literatura e a postura cívica e cultural do cabo-verdiano e das suas elites que resultaram daí dão testemunho dessa resiliência. Sobrevivência e afirmação cultural não são, porém, suficientes. É fundamental diminuir as vulnerabilidades e ir além das limitações impostas pela pequenez do país, do seu mercado e dos parcos recursos naturais para se conseguir prosperidade e desenvolvimento. Claramente que viver na dependência da generosidade dos outros não deve ser opção de existência.

Quebrar o círculo vicioso da pobreza não é fácil. Para alguns, deixar de contar só com a ajuda de Portugal no quadro do império colonial para beneficiar da generosidade mais alargada da ajuda internacional depois da independência seria suficiente para se dar o pontapé de saída em direcção ao desenvolvimento. A realidade posterior de mais uma década veio a demonstrar que não é assim. Opções de política incluindo estatização da economia, industrialização na base de substituição de importações e a hostilidade ao turismo e ao investimento directo estrangeiro trabalhavam contra isso. Apesar de algum aumento no rendimento médio das populações e alguma protecção contra choques externos como as secas a tendência era para crescimento anémico e para uma maior dependência das populações em relação ao Estado.

Como se veio a constatar nos anos posteriores, foi só com a liberalização da economia acompanhada de privatizações, de atracção de capital estrangeiro, industrialização para a exportação e abertura para o turismo é que se conseguiu elevar o potencial da economia nacional, criar riqueza e gerar rendimentos para as populações. Mesmo assim não foi suficiente para romper o círculo de pobreza. Ganhos de um momento no quadro de programas de luta contra a pobreza rapidamente cediam lugar a perdas face a qualquer revês ou choque externo como secas e inundações, expondo vulnerabilidades profundas. Também os sinais de avanço nos bons anos não diminuíam significativamente o grau de dependência das pessoas e do sector privado em relação ao Estado e custos de contexto continuavam a pesar sobre a competitividade e a produtividade das empresas e da economia.

A tripla crise da seca, da pandemia e da guerra na Ucrânia veio expor o quanto é que, de facto, não se rompeu com círculos viciosos que reproduzem a pobreza no país. Os avisos já vinham de longe e tornaram-se mais frenéticos em cada etapa desta crise. Mesmo assim foram praticamente ignorados e não é certo que agora estejam realmente a ser escutados. A tendência é para utilizar os recursos disponibilizados em tempos de carestia como sempre se fez e o resultado só pode ser o de aprofundamento da dependência, da perda de autonomia e de uma maior fragilização face a crises futuras. Romper significaria mudar de atitude de forma a fazer de Cabo Verde uma sociedade de aprendizagem e de adaptação com base no conhecimento e estar na disposição de correr risco na identificação e aproveitamento das oportunidades. A inércia institucional e sociopolítica tem-se mostrado difícil de vencer e ideologias prevalecentes que desincentivam o espírito crítico e limitam a capacidade de aprendizagem, prejudicando o processo cumulativo do conhecimento, central para o desenvolvimento do país.

É da maior importância para qualquer país atrair investimento externo que inclua capital, transferência de tecnologia e know how e acesso a mercado. Para os países mais pequenos, menos populosos e insulares como Cabo Verde, e por isso mesmo com fraca poupança interna, mercado doméstico minúsculo e custos acrescidos para o acesso a espaços continentais, é algo vital. Como qualquer opção de política, a atracção de investimento externo via privatização e abertura do capital social de empresas nacionais a capitais estrangeiros ou com incentivos fiscais e outros a investimento directo estrangeiro acarreta riscos próprios de todo e qualquer empreendimento de não ser bem-sucedida ou de ficar aquém dos objectivos pretendidos. O contrário que seria não correr riscos e fechar-se ao mundo como se fez nos tempos idos já se sabe que levaria a um futuro de estagnação ou então a um crescimento anémico.

Naturalmente que os riscos devem ser calculados e que em caso de falhas nas estratégias implementadas se procure averiguar o que correu mal, determinar as responsabilidades e aprender com os erros cometidos. Em todos os países onde se fizeram privatizações, sejam os do Ocidente a partir de 1979 com Margaret Thatcher no Reino Unido sejam os países comunistas no pós queda do Muro de Berlim, raros são os casos que com o olhar de hoje se pode dizer que o processo foi perfeito ou que não se cometeram erros. Também em Cabo Verde se privatizou primeiro para se fazer a transição de uma economia estatizada para uma economia de mercado e depois para modernizar e inserir o país na economia mundial.

Certamente entre os ires e vires nas orientações dos diferentes governos de Cabo Verde, para além dos casos de sucesso, evidente para todos, houve outros casos em que se cometeram erros e depois levaram a verdadeiras renacionalizações como foi o caso da Electra na primeira década deste século e agora da TACV. Do processo da Electra conduzido pelo governo do Paicv e altamente politizado ainda se está a pagar a rescisão do acordo com a EDP em tarifas elevadíssimas de energia, em investimentos não realizados e no atraso na implementação de uma política energética que melhor preparasse o país para a actual e futuras crises devido à transição energética. Do processo da TACV em pleno governo do MpD e também altamente politizado os custos não vão se resumir ao anunciado 1,46 milhões de dólares que resultou do acordo assinado com o grupo Icelandair. A distorção dos preços de transporte aéreo de Cabo Verde tanto doméstico como internacional ainda vai continuar por muito tempo e com reflexos negativos na economia do país e na sua atractividade para viagens, turismo e negócios.

A destruição de valor resultando de negligências, omissões e politização excessiva da gestão da transportadora de há muito que vem acontecendo. Aliás, as várias tentativas de privatização tiveram com um dos objectivos pôr fim a esse sugar aparentemente interminável de recursos públicos. Até agora sem sucesso porque em meio de grande volatilidade política não se consegue extrair lições de erros e abordagens anteriores, nem se tem a ousadia de realisticamente dimensionar a empresa para o papel que eventualmente poderá ter no quadro de uma política nacional de transportes aéreos. Há gente que com esses infortúnios na gestão de parcerias externas queira agitar o espantalho do risco na ligação com a economia mundial. Mas sem riscos não se constrói o futuro.

É preciso deixar claro que para Cabo Verde romper com o círculo de pobreza e diminuir a dependência externa tem que ir para além da resiliência e correr riscos para poder prosperar. As falhas na TACV não devem ser impedimento para que com mais sabedoria se avance com iniciativas de grande alcance como a concessão dos aeroportos. Quem ousa ganha.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1077 de 20 de Julho de 2022.

segunda-feira, julho 18, 2022

Cabo Verde, nação resiliente e com sentido de futuro?

 

Já na segunda metade do ano 2022 e ainda não é claro qual irá ser o futuro próximo. As incertezas tendem a manter-se, mas com contornos nem sempre previsíveis. Logo nos primeiros dias do corrente ano, no início de Janeiro, com mais um surto do SARS-Cov-2 na variante Ómicron já se tinha que lidar com incertezas quanto à retoma da economia devido a constrangimentos nas viagens, no turismo e nas cadeias de abastecimento.

Depois de 24 de Fevereiro e na sequência da invasão da Ucrânia e das sanções aplicadas à Rússia e da subida em flecha dos preços dos combustíveis e dos bens alimentares e, de modo geral, da inflação, a situação global agravou-se consideravelmente.

O facto de nesta matéria ainda não se ver um fim e, pelo contrário, de se correr o risco de uma escalada nas hostilidades entre a Rússia e o Ocidente, com impacto sócio económico profundo em particular nos países mais pobres e nas populações mais desprotegidas, mostra que o panorama geral não só não mudou como tende a priorar. Receia-se que o que aconteceu no Sri Lanka dias atrás com a destituição do governo por multidões nas ruas se venha a repetir em outros pontos do planeta. A ameaça de um alargamento brusco da insegurança alimentar e mesmo de situações de fome no mundo é real, se persistirem os estrangulamentos no abastecimento de cereais e no fornecimento de fertilizantes a partir da Ucrânia e da Rússia.

Entretanto, a pandemia não acabou e surtos de subvariantes do Ómicron cada vez mais contagiosos, mas aparentemente menos letais, continuam a acontecer. Em Cabo Verde apesar de na última semana se ter conseguido diminuir bastante o número de casos activos da Covid-19, registaram-se dezenas de hospitalizações e cinco mortos desde de Junho. De acordo com as autoridades sanitárias, constatou-se também a presença das subvariantes BA.4 e BA.5 que por serem particularmente capazes de evadir o sistema imunitário levam a reinfecções de pessoas já vacinadas e facilitam o contágio a partir de infectados, mas assintomáticos. Daí a necessidade de continuar a vacinar e a administrar “boosters” para evitar complicações principalmente entre os mais vulneráveis.

Não há ainda um regresso à normalidade. Mantém-se o estado de alerta e continua-se a impor algumas restrições que de uma forma ou outra interferem com a circulação e a concentração de pessoas e prejudicam a produtividade com as exigências de cinco ou sete dias em quarentena, em caso de infecção, afectando negativamente a possibilidade de uma plena retoma da economia. É verdade que as pessoas estão cansadas de quase dois anos de pandemia e estão ávidas de uma vida mais livre e espontânea, mas não se pode deixar cair a guarda. Para muitos especialistas o vírus ainda não acabou de evoluir e possibilidades de sequelas com o chamado Covid longo deviam aconselhar cautela e incentivar hábitos de uso de máscara em situações especiais, a par com regulamentação da ventilação e qualidade do ar em recintos fechados.

Num contexto de crises sucessivas, saber fazer as mudanças que se impõem para as enfrentar é fundamental. Também importante é adoptar a atitude certa que reforça a confiança, facilita a cooperação e traz ao de cima o espírito de solidariedade. Em qualquer país isso é inegável. Em Cabo Verde é crucial para se poder ultrapassar os extraordinários constrangimentos que se colocam a um pequeno país de parcos recursos naturais, diminuta população e baixa conectividade. De outra forma seria resignar-se com crescimento económico que não satisfaz, que não diminui as desigualdades e que não reduz as vulnerabilidades particularmente das pessoas no mundo rural. As projecções de crescimento do FMI, no documento que acompanha o crédito de 60 milhões de dólares assinado dias atrás, situam-se à volta de 5% nos restantes anos desta década, menos que os 7% consensualmente considerados pelos próprios partidos políticos como o mínimo necessário para um verdadeiro “take-off” do país.

A conjuntura internacional actual marcada por incertezas devia imprimir uma maior urgência na adopção de uma nova atitude. Momentos de crise são de grandes mudanças e não há crise mais claramente explícita do que a da Ucrânia que resulta de uma guerra aberta que, querendo ou não, vai pelas suas repercussões provavelmente desconstruir a actual ordem mundial e criar outras mutuamente hostis ou pouco colaborantes. Não é talvez muito arriscado pensar que poderão emergir mundos separados na base de segurança, de comércio, de ordem monetária e financeira, de energia e mesmo de internet. No processo quase que se vai forçar cada país a tomar partido. Saber adaptar-se às novas exigências vai ser crucial.

Entrementes todos vão sentir o choque provocado pelas placas geopolíticas em movimento na espiral inflacionista alimentada pelos altos preços dos combustíveis e dos bens alimentares, no aumento das taxas de juro, no movimento de capitais para fora dos países emergentes, na alta do dólar e no agravamento da situação dos países devedores. Outras consequências mais graves poderão vir de um agravamento do conflito na Ucrânia provocado pelo avanço das tropas russas no território ucraniano que iria obrigar a uma reacção mais robusta dos Estados Unidos e da Europa. No sentido contrário o eventual sucesso das tropas ucranianas com armamento fornecido pelo ocidente também iria colocar à Rússia um dilema de alargar a guerra ou de chegar a um cessar-fogo provavelmente difícil de manter, porque em território ucraniano ocupado. As próximas semanas dirão da sua justiça relativamente às duas hipóteses e se o pior cenário de uma guerra interminável e destruidora continuará a provocar os seus efeitos nefastos sobre todo o mundo.

A percepção de que a conjuntura internacional marcada por crises sucessivas e por incertezas várias dificilmente mudará para melhor a curto e médio prazo terá levado o governo de Cabo Verde a tomar a iniciativa de mobilizar confissões religiosas, organizações da sociedade civil, ONGs, câmaras municipais e outras instituições para o “Fórum Nacional – Emergência de uma Frente Comum para Enfrentar e Vencer as Crises”. A iniciativa peca por vir tardia. Há muito que se devia ter chamado a atenção da nação cabo-verdiana pelos particulares desafios que enfrentava. Já aquando da seca e das profundas consequências que teve no mundo rural devia-se ter interrogado como tão facilmente as vulnerabilidades das populações vieram à tona apesar de anos de investimento e crescimento económico. Não aconteceu.

Depois veio a pandemia, os “lockdown” e a violenta contracção da economia e não foi acompanhada de uma reflexão que levasse a focar a nação no que claramente era uma antevisão de problemas futuros de natureza global que careciam de um especial engajamento de todos para serem enfrentados. Continuou-se a fazer o mesmo e a desvalorizar a crise com anúncios de retoma que depois ficavam pelo caminho. Finalmente veio a guerra na Ucrânia e só quase cinco meses depois se está a alertar para as profundas consequências do conflito. Durante crises sucessivas o país deixou-se embalar na política altamente polarizada que não deixa muito espaço para compromissos e tende a fazer do discurso político um exercício estéril. Não se elegem os órgãos externos da competência da Assembleia Nacional, não se consegue chegar a entendimentos em matérias fulcrais para o país como a segurança, educação e transportes e deixa-se passar ao lado os múltiplos projectos financiados pela cooperação internacional sem uma discussão sobre os objectivos pretendidos e os resultados obtidos.

É de perguntar se ainda se vai a tempo de construir a vontade comum necessária para se enfrentar os extraordinários desafios que se colocam. Dizia-se que era preciso ultrapassar o ciclo eleitoral para se ter tranquilidade e serenidade para fazer reformas do Estado. Passaram as eleições, mas aparentemente não se aproveitou o período da suposta acalmia eleitoral para se construir consensos que podiam advir de uma responsabilidade constitucional partilhada por todos os partidos. Nem as crises sucessivas conseguiram criar tal milagre. A questão é saber o que é que o impede. Provavelmente não se vai descobrir e as próximas eleições já não estão tão distantes. Cabo Verde certamente que apreciaria a oportunidade de demonstrar que é, de facto, uma nação resiliente e com sentido de futuro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1076 de 13 de Julho de 2022.

segunda-feira, julho 11, 2022

Datas comemorativas devem reforçar o sentido do destino comum

Ontem, pelas comemorações dos 47 anos de independência nacional, repetiu-se o habitual. Foi proclamado o dia maior de Cabo Verde mesmo que para se conseguir o 5 de Julho teve-se que, primeiro, negar aos caboverdianos o direito à autodeterminação e logo a seguir submetê-los a um regime autocrático que duraria 15 anos.

Constatou-se pela quadragésima sétima vez que a independência valeu a pena porque supostamente teria posto fim às fomes passando por cima do facto que desde a última em 1947, segundo José Vicente Lopes, no seu recente livro, não aconteceram mais. Assistiu-se à mais uma demonstração do culto de personalidade de Amilcar Cabral que semelhanças só tem com o culto de figuras revolucionárias como Lenine, Mao Tse Tung e Kim il Sung e como tal é naturalmente impróprio das democracias.

Ainda repetiu-se pela enésima vez a cantilena que muitos não acreditavam na viabilidade do Cabo Verde como país independente. Como se ao longo destes anos o país tivesse provado o contrário, diminuindo vulnerabilidades e dependência da ajuda externa a exemplo das Maurícias que recebeu uma advertência similar do Prémio Nobel da Economia James Meade, mas conseguiu prosperar com superior governança. Tudo isso no ritual costumeiro de glorificação dos auto-intitulados “melhores filhos do povo” e de demonstração de eterna gratidão que os retira qualquer responsabilidade pela forma como exerceram o poder durante anos e efectivamente desperdiçaram oportunidades e recursos do país.

A comemoração do dia da independência não devia servir para isso. De facto, numa democracia onde a legitimidade do exercício do poder político é dado pelo voto livre e plural não se espera apologia directa ou indirecta de regimes suportados em legitimidade histórica. E num Estado de Direito Democrático não se reconhece “Estado de Direito” em regimes com Lei do Boato, com a direcção nacional de segurança a deter cidadãos até cinco meses, com civis a serem julgados por tribunal militar, juízes nomeados por ministros e restrições efectivas à liberdade de expressão, de imprensa e de associação.

A celebração da independência é o momento para toda a comunidade político-nacional se ver una e não a revisitar as divisões do passado. Também deve ser para renovar o “contrato social” com base nos princípios e valores da liberdade, da democracia e do Estado de Direito” sem o qual não há suficiente consenso na república que possibilite o dissenso indispensável para se encontrar os caminhos para a prosperidade, respeitando a dignidade de todos. Se com cada comemoração se dá ou não um passo para enfrentar o presente e para construir do futuro vai depender do carácter da nação que se souber erigir.

Como dise John Kennedy esse caracter, tal qual o caracter do indivíduo, “é produzido em parte por coisas que fizemos e em parte pelo que nos foi feito. É o resultado de factores físicos, factores intelectuais e factores espirituais. Na paz, como na guerra, sobreviveremos ou fracassaremos” na medida em que se souber lidar com isso tudo. Não deixar que memórias e narrativas criadas para legitimar actos do passado desestruturem o presente é essencial para se manter a energia e o foco necessários para vencer os desafios actuais e não ser apanhado em círculos viciosos que reproduzem vulnerabilidades e aumentam a dependência.

A fragilidade que o país tem demonstrado perante as crises sucessivas deixa entender que ao longo de todos estes anos de independência não houve atitude e acção consistentes da parte de toda a nação e da sua governação que efectivamente permitisse ao país dar o salto para um outro patamar. Houve avanços, muita ajuda foi recebida, mas está-se muito aquém do ponto onde se devia estar. Num dia como o da independência nacional devia-se falar com clareza da realidade das coisas sem cair no jogo de pôr a culpa no outro e sem sentimentalismos que apenas servem para escamotear a realidade. O país precisa de factos, de honestidade e de motivação solidária para enfrentar os graves problemas da actualidade.

Para Michael J. Mazarr, cientista político sénior da Rand Corp, são sete os atributos necessários para o sucesso competitivo das nações: ambição e vontade nacional; identidade nacional unificada; oportunidade compartilhada; um Estado activo; instituições eficazes; uma sociedade de aprendizagem e adaptação; e diversidade competitiva e pluralismo. Cabo Verde com uma consciência nacional de séculos e sobrevivente de fomes sem nunca ter sucumbido ao fatalismo não devia ter dificuldade em mostrar ambição e vontade na consecução dos seus objectivos. Nesse sentido, prejudicial são as narrativas que ao alimentar sentimentos de vitimização e ressentimento deixam as pessoas presas em círculos viciosos de dependência e de pobreza. Pior ainda, são aquelas outras que em vez de ver riqueza na diversidade como bem cantou Antero Simas introduzem elementos de desestruturação de uma identidade nacional unificada em vez de a potenciar. Perde-se um factor de sucesso competitivo por causa de ideologias completamente alheias à formação da nação cabo-verdiana.

O contrato social que deve ser renovado em comemorações da independência, para ser efectivo e conseguir engajamento de todos, deve incluir a promessa da oportunidade compartilhada que não deixa ninguém de fora. De outra forma deixa-se campo aberto para os populistas que apresentando-se como anti-elitistas mais não fazem do que polarizar a sociedade sem resolver os problemas reais dos mais pobres. Nesse sentido, é essencial um Estado activo, mas eficiente e instituições eficazes nos diferentes sectores económicos sociais e culturais que propiciem um ambiente adequado para iniciativas individuais e empresariais e para manifestações criativas e inovações capazes de produzir riqueza e criar empregos de qualidade.

A suportar tudo isso deve-se alimentar o amor ao conhecimento e uma preocupação com a verdade e com os factos que depois se traduzam numa sociedade ávida de aprender e pronta a se adaptar a novos desafios. Imagine-se que para isso não se pode ter a realidade condicionada e distorcida por ideologias ultrapassadas no tempo, memórias ficcionadas e cultos de personalidade. Pior ainda, se suportadas por estruturas do Estado no sistema educativo e na comunicação social pública que estão sob o comando constitucional de não impor “directrizes filosóficas , estéticas, políticas, ideológicas e religiosas”.

O mundo está a mudar rapidamente e as incertezas são muitas e não se sabe qual será o rumo que as coisas vão tomar. Fixar-se em reforçar os factores de sucesso competitivo que Michael J. Mazarr apontou é fundamental para se ter a nação pronta para os enormes desafios que se colocam e suficientemente maleável para uma realidade em transformação a todos os níveis. Manter o ambiente sócio-político e económico diverso e plural sem cair em extremismos e divisões artificiais garante a dinâmica que a troca livre de ideias pode propiciar para se encontrar as melhores soluções para os problemas e situações difíceis que poderão estar à frente.

Cabo Verde é um país pequeno e frágil e não pode ficar simplesmente dependente da generosidade dos outros até porque já deve saber que há limite para isso. Contar consigo próprio e com a força, a energia e o sentido de destino comum que construiu durante séculos é fundamental para o país poder fazer o melhor das oportunidades e da ajuda que eventualmente receber do mundo. Datas comemorativas devem servir para o reforço desse espírito e não para impor narrativas, inibir o pensamento livre e alimentar realidades alternativas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1075 de 6 de Julho de 2022.

 

segunda-feira, julho 04, 2022

Salvar os oceanos e resolver o futuro

 

Na conferência sobre os oceanos que decorre em Lisboa ao longo desta semana até 1 de Julho representantes de todos os países do mundo reúnem-se para definir objectivos, traçar metas e encontrar vias para ultrapassar os males que hoje afligem os oceanos.

Na mira de todos estarão certamente a poluição, as ameaças à biodiversidade e os plásticos. Questões como as alterações climáticas serão discutidas. Considerando que os oceanos constituem 71% da superfície da Terra e a elevação do nível do mar afectará a todos com efeitos catastróficos em muitos lugares e particularmente nos espaços insulares. Sendo os oceanos grandes produtores de oxigénio e o maior centro de sequestro de carbono para além do seu potencial de produção de alimento, de energia e de metais valiosos, certamente que se procurará chegar a algum tipo de consenso quanto à sua gestão. Já há países que garantem que se vão responsabilizar por pelo menos 30% da sua zona exclusiva.

A dúvida é se realmente é desta vez que haverá o engajamento necessário para isso. A inacção nessas matérias que vem de muito atrás mereceu um pedido de desculpa do secretário-geral da ONU, António Guterres, logo no começo da conferência. Chegou mesmo a dizer, que “fomos lentos e muitas vezes relutantes a reconhecer que as coisas estavam a ficar piores”. Continuou afirmando que “ainda estamos na direcção errada”. Realmente depois da primeira conferência de Nova Iorque, em 2017, não se avançou muito no sentido de salvaguarda dos oceanos. Pelo contrário, houve retrocessos no que respeita aos acordos de Paris em matéria de alterações climáticas e agora na sequência da pandemia e da guerra na Ucrânia tornou-se mais difícil avançar com a transição energética.

Fala-se actualmente em aumentos dos investimentos nos combustíveis fosseis quando se devia estar a tratar da diminuição da sua utilização e da mudança para as renováveis. O caminho para o futuro, porém, tem que ser o que leva à descarbonização da economia e à redução dos riscos associados ao efeito de estufa e a variações extremas de temperatura. De outro modo é todo o planeta que fica à mercê da maior violência e frequência dos ciclones, das grandes e inesperadas inundações, de secas prolongadas, do degelo dos glaciares e consequente elevação do nível do mar com todas as consequências inerentes. É evidente que melhor posicionado para navegar e beneficiar desse futuro estarão os países que previram com devida antecedência a actual situação e souberam preparar-se no tempo certo com investimentos, tecnologias e mudanças comportamentais adequados.

Um futuro marcado pela importância central do mar na economia devia ser óbvio para um país arquipélago como Cabo Verde e para países com extenso litoral e tradição marítima como, por exemplo, Portugal. O facto de não o ter sido no caso de Portugal levou o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, numa intervenção no âmbito da conferência dos oceanos, a dizer aos jovens para não confiarem nos decisores e lutarem por si contra as alterações climáticas e a favor dos oceanos. Aparentemente a inacção das autoridades nessa matéria não se deve ao desconhecimento. Recentemente em Portugal até se criou um ministério do Mar precisamente para dar atenção especial aos problemas do mundo oceânico e procurar explorar os seus recursos de forma sustentada. Do que se pode depreender das reacções de Guterres e do presidente da república portuguesa é que talvez na prática não tenham sido consequentes em termos de políticas viradas para o sector. Algo similar terá acontecido também em Cabo Verde.

Cabo Verde em 1995 e muito antes de Portugal teve o seu primeiro ministério do Mar. O ministério desapareceu anos depois e voltou a reaparecer no governo que resultou das eleições de 2021. Por aí vê-se que durante a maior parte do tempo o sector não era tido como central, mas sim subsidiário de outros como se pode constatar no caso da sua junção ao ministério da agricultura ou quando foi integrado no sector dos transportes. É uma opção que não deixa de ser paradoxal num país arquipelágico e com uma vasta zona económica exclusiva. De facto, para suprir a falta de recursos em terra deveria fazer todo o sentido que se procurasse explorar as sinergias que actividades múltiplas com base no oceano designadamente a pesca, aquacultura, transportes, investigação científica, controlo da poluição, turismo e desporto náutico pudessem facultar.

Nem mesmo no campo da fiscalização das águas territoriais e da zona económica exclusiva do país, onde se devia exigir uma atenção especial porque de soberania, de segurança e de controlo dos recursos naturais, se soube fazer a aposta certa. A opção foi de se ter Exército “em terra” talvez com questões de regime e de segurança interna em mente. A Guarda Costeira criada nos anos 90 ficaria num estado incipiente enquanto deficiente se mantinha ao longo dos anos a fiscalização das costas, do mar territorial e da zona económica exclusiva do país. Isso sem falar em todas as outras missões que constitucionalmente foram-lhe atribuídas em matéria de busca e salvamento, protecção do meio ambiente e controlo da poluição marítima, de apoio à protecção civil e combate aos diferentes tráficos.

O resultado disso tudo é que Cabo Verde, com a sua secular vocação marítima, podia ter-se especializado na prestação de vários serviços de segurança no sector do mar e provavelmente ser útil nesta região do Atlântico Médio e da costa ocidental africana quando ainda hoje tem por estruturar e operacionalizar uma guarda costeira à altura das suas necessidades, ameaças e desafios. Uma boa notícia é que nos últimos dias se passou a ter um Contra-almirante na chefia das Forças Armadas e talvez se consiga finalmente adequar as FA ao que realmente o país precisa. Também em outros sectores a tradição de um país de marinheiros, de pescadores, de industrialização na base de conserveiras em várias ilhas, de escolas do mar podia ter sido potenciada. Infelizmente, as opções foram outras e o resultado é que, apesar dos enormes investimentos feitos, a capacidade de captura de peixe continua insuficiente, as conserveiras dependem de facilidades renovadas anualmente pela União Europeia, a formação profissional em diferentes sectores está aquém das necessidades do mercado e a investigação é incipiente.

Num mundo onde cada vez mais se fala da economia azul e da economia verde o facto de Cabo Verde não estar em posição de beneficiar com soluções próprias e testadas e ser um exemplo a seguir é revelador da falta de visão que terá marcado décadas de governação do país. A exortação de Marcelo Rebelo de Sousa também aqui se aplica. Convenhamos que não devia ser de hoje ter-se uma a estratégia para a transição energética. Eficiência energética e utilização eficiente da água há muito que deviam constituir uma prioridade das políticas do Estado e razão suficiente para mudanças comportamentais com impacto positivo na competitividade, na qualidade de vida e do meio ambiente e na diminuição da dependência de combustíveis fósseis.

Em áreas em que um país é claramente frágil ou mostra desvantagens, o facto de se encontrar soluções inovadoras para as ultrapassar pode revelar-se útil quando outros países se virem em situações similares e precisam de assistência. Michael Porter no livro “A Vantagem Competitiva das Nações” aponta o exemplo de Israel com as soluções de poupança de água e do Japão com os amortecedores para as más estradas do país que depois conquistaram o mundo. A via, porém, para lá chegar não pode ser o acumular de projectos que mais cumprem uma agenda de parceiros internacionais do que fazer parte de uma estratégia própria do país no quadro de uma agenda de futuro. Ao seguir sem critério, corre-se o risco de acabar por ficar com um “cemitério” de projectos e uma dívida pública pesada. Com uma agenda própria o futuro tem a chance de cumprir as promessas feitas.

Nestes tempos críticos, é fundamental não se deixar enredar em slogans ou simplesmente ir atrás das ofertas de dinheiro em nome do salvamento dos oceanos, das alterações climáticas e da transição energética. Resultados duráveis que beneficiam a todos exigem políticas consistentes e sustentáveis. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1074 de 29 de Junho de 2022.