Ontem, pelas comemorações dos 47 anos de independência nacional, repetiu-se o habitual. Foi proclamado o dia maior de Cabo Verde mesmo que para se conseguir o 5 de Julho teve-se que, primeiro, negar aos caboverdianos o direito à autodeterminação e logo a seguir submetê-los a um regime autocrático que duraria 15 anos.
Constatou-se pela quadragésima sétima vez que a independência valeu a pena porque supostamente teria posto fim às fomes passando por cima do facto que desde a última em 1947, segundo José Vicente Lopes, no seu recente livro, não aconteceram mais. Assistiu-se à mais uma demonstração do culto de personalidade de Amilcar Cabral que semelhanças só tem com o culto de figuras revolucionárias como Lenine, Mao Tse Tung e Kim il Sung e como tal é naturalmente impróprio das democracias.
Ainda repetiu-se pela enésima vez a cantilena que muitos não acreditavam na viabilidade do Cabo Verde como país independente. Como se ao longo destes anos o país tivesse provado o contrário, diminuindo vulnerabilidades e dependência da ajuda externa a exemplo das Maurícias que recebeu uma advertência similar do Prémio Nobel da Economia James Meade, mas conseguiu prosperar com superior governança. Tudo isso no ritual costumeiro de glorificação dos auto-intitulados “melhores filhos do povo” e de demonstração de eterna gratidão que os retira qualquer responsabilidade pela forma como exerceram o poder durante anos e efectivamente desperdiçaram oportunidades e recursos do país.
A comemoração do dia da independência não devia servir para isso. De facto, numa democracia onde a legitimidade do exercício do poder político é dado pelo voto livre e plural não se espera apologia directa ou indirecta de regimes suportados em legitimidade histórica. E num Estado de Direito Democrático não se reconhece “Estado de Direito” em regimes com Lei do Boato, com a direcção nacional de segurança a deter cidadãos até cinco meses, com civis a serem julgados por tribunal militar, juízes nomeados por ministros e restrições efectivas à liberdade de expressão, de imprensa e de associação.
A celebração da independência é o momento para toda a comunidade político-nacional se ver una e não a revisitar as divisões do passado. Também deve ser para renovar o “contrato social” com base nos princípios e valores da liberdade, da democracia e do Estado de Direito” sem o qual não há suficiente consenso na república que possibilite o dissenso indispensável para se encontrar os caminhos para a prosperidade, respeitando a dignidade de todos. Se com cada comemoração se dá ou não um passo para enfrentar o presente e para construir do futuro vai depender do carácter da nação que se souber erigir.
Como dise John Kennedy esse caracter, tal qual o caracter do indivíduo, “é produzido em parte por coisas que fizemos e em parte pelo que nos foi feito. É o resultado de factores físicos, factores intelectuais e factores espirituais. Na paz, como na guerra, sobreviveremos ou fracassaremos” na medida em que se souber lidar com isso tudo. Não deixar que memórias e narrativas criadas para legitimar actos do passado desestruturem o presente é essencial para se manter a energia e o foco necessários para vencer os desafios actuais e não ser apanhado em círculos viciosos que reproduzem vulnerabilidades e aumentam a dependência.
A fragilidade que o país tem demonstrado perante as crises sucessivas deixa entender que ao longo de todos estes anos de independência não houve atitude e acção consistentes da parte de toda a nação e da sua governação que efectivamente permitisse ao país dar o salto para um outro patamar. Houve avanços, muita ajuda foi recebida, mas está-se muito aquém do ponto onde se devia estar. Num dia como o da independência nacional devia-se falar com clareza da realidade das coisas sem cair no jogo de pôr a culpa no outro e sem sentimentalismos que apenas servem para escamotear a realidade. O país precisa de factos, de honestidade e de motivação solidária para enfrentar os graves problemas da actualidade.
Para Michael J. Mazarr, cientista político sénior da Rand Corp, são sete os atributos necessários para o sucesso competitivo das nações: ambição e vontade nacional; identidade nacional unificada; oportunidade compartilhada; um Estado activo; instituições eficazes; uma sociedade de aprendizagem e adaptação; e diversidade competitiva e pluralismo. Cabo Verde com uma consciência nacional de séculos e sobrevivente de fomes sem nunca ter sucumbido ao fatalismo não devia ter dificuldade em mostrar ambição e vontade na consecução dos seus objectivos. Nesse sentido, prejudicial são as narrativas que ao alimentar sentimentos de vitimização e ressentimento deixam as pessoas presas em círculos viciosos de dependência e de pobreza. Pior ainda, são aquelas outras que em vez de ver riqueza na diversidade como bem cantou Antero Simas introduzem elementos de desestruturação de uma identidade nacional unificada em vez de a potenciar. Perde-se um factor de sucesso competitivo por causa de ideologias completamente alheias à formação da nação cabo-verdiana.
O contrato social que deve ser renovado em comemorações da independência, para ser efectivo e conseguir engajamento de todos, deve incluir a promessa da oportunidade compartilhada que não deixa ninguém de fora. De outra forma deixa-se campo aberto para os populistas que apresentando-se como anti-elitistas mais não fazem do que polarizar a sociedade sem resolver os problemas reais dos mais pobres. Nesse sentido, é essencial um Estado activo, mas eficiente e instituições eficazes nos diferentes sectores económicos sociais e culturais que propiciem um ambiente adequado para iniciativas individuais e empresariais e para manifestações criativas e inovações capazes de produzir riqueza e criar empregos de qualidade.
A suportar tudo isso deve-se alimentar o amor ao conhecimento e uma preocupação com a verdade e com os factos que depois se traduzam numa sociedade ávida de aprender e pronta a se adaptar a novos desafios. Imagine-se que para isso não se pode ter a realidade condicionada e distorcida por ideologias ultrapassadas no tempo, memórias ficcionadas e cultos de personalidade. Pior ainda, se suportadas por estruturas do Estado no sistema educativo e na comunicação social pública que estão sob o comando constitucional de não impor “directrizes filosóficas , estéticas, políticas, ideológicas e religiosas”.
O mundo está a mudar rapidamente e as incertezas são muitas e não se sabe qual será o rumo que as coisas vão tomar. Fixar-se em reforçar os factores de sucesso competitivo que Michael J. Mazarr apontou é fundamental para se ter a nação pronta para os enormes desafios que se colocam e suficientemente maleável para uma realidade em transformação a todos os níveis. Manter o ambiente sócio-político e económico diverso e plural sem cair em extremismos e divisões artificiais garante a dinâmica que a troca livre de ideias pode propiciar para se encontrar as melhores soluções para os problemas e situações difíceis que poderão estar à frente.
Cabo Verde é um país pequeno e frágil e não pode ficar simplesmente dependente da generosidade dos outros até porque já deve saber que há limite para isso. Contar consigo próprio e com a força, a energia e o sentido de destino comum que construiu durante séculos é fundamental para o país poder fazer o melhor das oportunidades e da ajuda que eventualmente receber do mundo. Datas comemorativas devem servir para o reforço desse espírito e não para impor narrativas, inibir o pensamento livre e alimentar realidades alternativas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1075 de 6 de Julho de 2022.
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