Pelo telejornal da TCV, na segunda-feira à noite, podia-se ficar com a impressão que Cabo Verde teria regredido para a condição de um Estado que, embora afirmando-se uma democracia, vestia as roupagens ideológicas do regime de partido único dos primeiros quinze anos pós-independência. Como na época se fazia nos dias festivos do regime, as imagens da luta de libertação produzidas pela propaganda do PAIGC nos anos sessenta e setenta foram passadas e ao longo de toda a entrevista feita a Graça Machel teve-se como pano de fundo a fotografia icónica do “líder supremo”. Em declarações nesse mesmo telejornal o presidente da república completou o quadro dizendo que “precisamos para cumprir Cabral dar o grande salto na transformação e modernização do país”.
Cumprir Cabral foi a justificativa de base das opções políticas, económicas sociais e culturais do anterior regime. E o resultado viu-se. Nos finais dos anos oitenta o país sem liberdade, sem cidadania plena e com uma economia estagnada ansiava por mudança. Numa conjuntura internacional marcada pela queda do Muro de Berlim e do império soviético, o país acabou por enveredar por um processo de democratização que culminou com a adopção da Constituição de 1992 baseada no respeito pela dignidade humana e consagrando os princípios e valores da liberdade, do pluralismo e o primado da lei. É evidente que na segunda república assente nesses valores não há espaço para culto de personalidade orquestrado pelo Estado. Isso só acontece nos regimes autoritários e totalitários. Nas democracias não se fala em cumprir Churchill, Roosevelt ou qualquer outro político de renome.
Naturalmente que no quadro do pluralismo e da liberdade de expressão associações, fundações e outras organizações podem promover os respectivos patronos. Não cabe ao Estado e aos seus titulares apelar aos cidadãos para cumprir com os sonhos de alguma figura histórica e a se inspirarem no pensamento ou acção de alguma personalidade. A vitalidade da democracia tanto para se encontrar os caminhos da prosperidade colectiva como para corrigir erros de liderança e de políticas depende da crença que não há verdade única, nem líderes eternos. O mesmo se passa com a liberdade e a segurança de cada cidadão que também só estão garantidas porque a ninguém é dado o poder de impor a sua verdade aos outros sem qualquer controlo. O progresso do país nos últimos trinta anos aconteceu em boa parte porque se criou um ambiente em que ideias, projectos, políticas e estratégias foram lançados, contestados e testados na prática e obteve-se saldo positivo apesar das múltiplas insuficiências que ainda perduram.
O futuro vai depender muito da capacidade de se manter esse mercado de ideias livre da interferência de um Estado ideologicamente comprometido e em contramão com o comando constitucional que o proíbe de estabelecer “directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas e religiosas”. São evidentes os sinais do crescente comprometimento ideológico do Estado e, por extensão, da comunicação social pública, do sistema educativo e de outras instituições. A parceria cada vez mais estreita com a Fundação Amilcar Cabral reiterada esta segunda-feira pelo primeiro-ministro quando questionado sobre a celebração do centenário de Amilcar Cabral vai nesse sentido. Ninguém espera que a fundação nesta parceria não procure realizar o seu objectivo de preservar os fundamentos ideológicos e a memória da luta na Guiné e do regime de partido único. O que não é aceitável é que o Estado democrático assuma essa agenda e que participe activamente de várias formas entre as quais com fundos públicos.
Em particular o que briga com qualquer sensibilidade democrática é o culto de personalidade que cada vez mais se faz da figura de Amilcar Cabral. Primeiro timidamente, mas agora abertamente, como se ouviu na rádio e televisão públicas, está-se a passar a ideia de que ele é considerado o segundo maior líder da história da humanidade com base numa evidência tão frágil como uma votação online organizada por uma revista da BBC, a World Histories Magazine. Cinco mil leitores votaram e ganhou o marajá Ranjit Singh da Índia com 38% dos votos, cabendo a Cabral 25%.
De facto, tudo parece servir para construir o mito. Em matéria de rituais do Estado como deposição de coroa de flores nas datas nacionais e nas visitas de chefes de Estado estrangeiros o que se faz em Cabo Verde não tem respaldo no que as democracias são e representam, mas com o que se via na União Soviética nas cerimónias no túmulo de Lenine e ainda se vê na Coreia do Norte e em regimes similares com culto de personalidade instituídos. No mesmo sentido vai a proclamação de Cabral como Fundador da Nacionalidade feita pelo regime de partido único logo na primeira sessão da Assembleia Nacional Popular a 4 Julho de 1975 num país em que a consciência de nação, no sentido de identificação territorial, cultural e linguística, vem de muito antes do seu nascimento.
Far-se-ia mais justiça a Amilcar Cabral se ao invés de insistir no mito se deixasse conhecer realmente o homem e a sua época abrindo os arquivos e financiando estudos por investigadores e historiadores. Isso o Estado de Cabo Verde deveria promover. Afinal em seu nome se erigiu e se manteve um regime durante quinze anos e que na primeira oportunidade que os cabo-verdianos tiveram liberdade para votar massivamente o rejeitaram. Faria ainda melhor o Estado de Cabo Verde em manter bem vivo os princípios e valores que a esmagadora maioria dos cabo-verdianos desfraldaram em bandeira para pôr um fim à ditadura dos quinze anos.
Em vez da parceria com a fundação Amilcar Cabral, que certamente tem os meios para realizar a sua agenda – ou não é o seu presidente recipiente do prémio milionário de Mo Ibrahim – o que se devia esperar do governo e de outras instituições do Estado seria um engajamento mais forte e mais visível na celebração do trigésimo aniversário da Constituição da República. A escassos dias do 25 de Setembro, o Dia da Constituição, não se conhece ainda o programa de uma comemoração que ao longo de todo o ano de 2022 devia ter tido o maior impacto na sociedade, na academia e junto das pessoas. Porque o que realmente se precisa é conhecer e cumprir a Constituição para que o país tenha liberdade, democracia e uma justiça eficaz. Com a garantia de ordem social e política pode-se, com iniciativa, criatividade e capacidade de inovar, enfrentar os actuais desafios, preparar o futuro e fazer prosperar o país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1085 de 14 de Setembro de 2022.
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