O ano 2022 trouxe boas notícias para a democracia com a contenção pela via eleitoral de movimentos populistas em vários países com destaque para a França, Estados Unidos e Brasil. A democracia liberal ganhou também um grande alento com a solidariedade mundial demonstrada ao povo ucraniano pela coragem na luta pela sua liberdade, integridade territorial e autonomia na escolha do seu futuro. Já o ano 2023, logo no seu início com os acontecimentos de Brasília do dia 8 de Janeiro, veio relembrar com particular estridência que a democracia ainda tem muitos inimigos e que o descontentamento que grassa em franjas significativas da população em relação ao funcionamento das instituições e a actuação da classe política pode ser utilizado para a enfraquecer ou mesmo destruir.
A dois dias de celebração do 13 de Janeiro, “Dia da Liberdade e da Democracia”, é fundamental que se tenha presente a importância de se salvaguardar a democracia e o seu sistema de valores. Isso é particularmente urgente quando sistemas rivais e diametralmente opostos em matéria de respeito pela dignidade humana, pluralismo, separação dos poderes e o primado da lei ainda são brandidos como recomendáveis ou mesmo superiores. O desafio nos tempos actuais feito à democracia liberal não se limita às criticas dos descontentes que sempre teve ao nível nacional. Vai mais longe com ataques às instituições-chave do Estado de Direito democrático, como se viu agora no Brasil e há dois anos atrás nos Estados Unidos da América, e com ramificações incluindo financiamentos e outros apoios internacionais num quadro que estará a desenhar-se de rivalidade entre as democracias e as autocracias.
Hoje é facto assente que Winston Churchill tinha razão quando disse que “a democracia é pior forma de governo à excepção de todos os outros experimentados ao longo da história”. Para os cabo-verdianos que iniciaram da sua livre vontade, bem expressa nas urnas há 32 anos atrás a experiência com a democracia, a frase de Churchill confirma-se plenamente. Apesar das suas insuficiências, é facto que a prosperidade acompanhada de liberdade e de autoestima que se ganhou com a democracia e a transição para a economia de mercado não tem paralelo com o cinzentismo da vida no regime de partido único e o crescimento raso do PIB que caracterizou os seus derradeiros anos.
Historicamente as democracias têm provado que são mais capazes de potenciar os recursos naturais e humanos do país para criar riqueza e fazer uma redistribuição mais equitativa. Na África, por exemplo o Botswana, com os seus diamantes e a sua democracia, destacou-se sempre nas melhores posições em todos os rankings enquanto outros países com grandes recursos minerais e petrolíferos sobre endividam-se, apresentam grandes desigualdades sociais e níveis elevados de corrupção. Já na maioria esmagadora dos países que adoptaram regimes autocráticos não se verificou o desenvolvimento desejável ou expectável.
Só aconteceu em alguns países como Singapura e China que sustentaram durante décadas taxas de crescimento próximo de dois dígitos e agora parece que Ruanda e o Vietname estarão a ir pelo mesmo caminho. São casos raros em que de alguma forma os regimes viram o crescimento acelerado como factor de legitimação do regime. Em Cabo Verde, a autocracia também não funcionou talvez porque a base de legitimidade era outra e durou até quando o povo teve oportunidade de livremente fazer a escolha dos seus governantes.
Estão, pois, muito equivocados os renascentes saudosistas do regime de partido único que pretendem hoje resolver os problemas económicos do país, designadamente dos transportes, abastecimento e energia recorrendo às fórmulas estatizadas do antigamente que já na época eram ineficientes e no contexto actual não têm qualquer cabimento. Do mesmo modo se enganam os que parecem sugerir que a existência de milícias e tribunais de zona, órgãos revolucionários de base local próprios do regime anterior, poderia prevenir problemas de violência e criminalidade nas comunidades. A verdade é que não se pode avançar construtivamente no debate sobre a economia nacional contrapondo sistematicamente fórmulas antigas de governação e pretensos resultados obtidos à realidade presente.
Também no plano social não se consegue encarar devidamente o impacto negativo no tecido social do país de décadas de políticas que levaram à atomização da sociedade, ao aumento da dependência das pessoas em relação ao Estado, à perda da confiança interpessoal e a correspondente diminuição do capital social e do civismo. E sem isso pode-se alocar mais e mais recursos, mas é mais provável que os resultados fiquem aquém do desejado como tem acontecido. O mais complicado é que nem mesmo o espectáculo de, na sequência de megaoperações policiais, se ver milhares de armas brancas confiscadas em particular aos jovens, de se constatar a posse ilegal de centenas de armas de fogo em buscas e de se descobrir nas pequenas encomendas mais de oito mil balas que seriam para venda ilegal parece despertar para um diálogo mais profundo sobre o que claramente são as causas do problema e encontrar a abordagem mais compreensiva e eficaz para os resolver. Ilusões sobre o passado não podem constituir-se em obstáculo para o debate que deve ser feito.
A democracia tem os seus problemas e as suas imperfeições e nem sempre parece estar à altura das suas promessas, em particular quando se trata de levar prosperidade a todos. Apesar de tudo, como se pôde constatar durante a pandemia da Covid-19, é o regime que, quando enfrenta desafios da mais variada ordem e gravidade, permite mais criatividade e inovação na procura de soluções e o que mais fácil permite identificar erros cometidos e mudar para políticas que funcionam. Para que possa revelar todas suas virtualidades e estar à altura do que todos esperam do sistema democrático é fundamental que o seu núcleo central constituído por instituições, normas e regras procedimentais seja respeitado, protegido e seguido por todos, especialmente pelos seus titulares.
O choque sentido mundialmente aquando dos acontecimentos de Brasília traduz o sentimento de profunda inquietação que se seguiria ao desmoronar das instituições que todos têm por asseguradas. Esquece-se demasiadas vezes que para evitar isso é fundamental que todos cumpram com as suas competências, com a integridade e carácter de quem serve o público e não se serve das suas funções para ganho pessoal. Do Brasil ainda vieram outros avisos. Um deles que corrobora o que já se tinha verificado nos Estados Unidos quanto à importância do sistema judicial na protecção da democracia nos momentos críticos. Um outro também fundamental é papel das forças armadas nas democracias. Não são nem anteriores ao Estado, nem estão acima do Estado, ou tutelam a democracia. São defensoras da ordem constitucional vigente e subordinam-se ao poder civil e como tal devem ser imunes aos apelos de grupos extremistas, saudosistas ou revisionistas nos embates contra a democracia.
Ainda uma questão importante é o papel do presidente da república. Órgão singular, o PR é eleito directamente pelo povo, como bem diz António Barreto num artigo do jornal Público de 7 de Janeiro “para acrescentar legitimidade e solidez ao edifício do Estado democrático. Não para vigiar, sabotar, contrapesar ou fiscalizar”. Nestes momentos de crise da democracia, em que para além dos descontentes há que ter em conta inimigos, não há talvez nada mais fundamental do que essa função de manter a integridade do Estado de Direito Democrático.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1102 de 11 de Janeiro de 2023.
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