sexta-feira, agosto 18, 2023

Política na silly season

 Diz-se que o mês de Agosto até à rentrée política é em termos de notícias uma silly season, ou seja, um período de notícias frívolas que de algum modo capturam a atenção das pessoas. Na semana passada, depois dos grandes confrontos políticos que em Cabo Verde culminaram no debate sobre o estado da Nação em fins de Julho, entrou-se efectivamente numa silly season.

Durante dias seguidos na comunicação social e nas redes sociais pronunciamentos vários avisavam contra atentados à liberdade de expressão e denunciavam posições que alegadamente punham em causa o Estado de Direito e a democracia no país. E tudo isso por causa de um painel formado por duas personalidades para comentário político do telejornal de domingo da televisão pública.

A TCV não tem comentadores residentes. Aparentemente não vê necessidade de os ter talvez pelos custos associados de pagamento. É claro que isso tem consequências designadamente em termos de sustentabilidade dos painéis e qualidade do comentário. Uma delas, por exemplo, é que organiza painéis com convites ad hoc a personalidades que muitas vezes acabam por ser ex-dirigentes partidários e ex-governantes. Como a televisão pública está obrigada por comando constitucional a garantir a expressão e o confronto de ideias das diversas correntes de opinião com um painel de dois convidados o normal é que, sendo um deles figura notória de um dos grandes partidos, o outro tenha expressão similar na área política contrária.

Depois de dois painéis, um constituído por uma ex-governante e dirigente partidário da oposição e por um académico e professor universitário (9 de Julho) seguido de outro também constituído por dirigente partidário da oposição e tendo por contraponto uma figura apartidária (23 de Julho), houve críticas. Algum reequilíbrio se procurou ter no terceiro painel que já veio formado por dois dirigentes dos grandes partidos (30 de Julho). Com esse ajuste, porém, como dizem os portugueses, caiu o Carmo e a Trindade e de repente surgem denúncias num tom que pelo dramático podia-se pensar que o Estado de Direito democrático estava na iminência de se desmoronar.

Já se vem tornando frequente que face à discordância em relação a certas matérias, nem sempre de grande relevância, convenientemente se verifique um extremar de posições que tende a pôr em causa as instituições e a descredibilizá-las. Há mesmo quem entenda essa forma de actuar como o verdadeiro exercício de cidadania. Esquece-se facilmente que só se tem cidadania plena quando numa ordem constitucional consensual estão garantidos os direitos fundamentais dos cidadãos, existe o primado da lei e assegura-se a independência dos tribunais para dirimir conflitos. Atirar “pedras” contra o sistema, querer mudá-lo por vias que não os processos e procedimentos previstos e fazer crer que todos os tribunais no seu conjunto (tribunal constitucional, tribunais judiciais, tribunal de contas) não são isentos nem competentes, é, de facto, deixar os cidadãos completamente desprotegidos em relação a ditadores e a demagogos. Factos recentes em vários países demonstram isso e Cabo Verde sabe isso de experiência própria.

Especial responsabilidade têm as forças políticas que pelo seu papel no sistema político podem recorrer a instrumentos próprios para assegurar o normal funcionamento do sistema, podem melhorá-lo com alterações na legislação e até conseguem mudar as regras pela via da revisão constitucional. Infelizmente, parece que a preferência é para criar ruído, para descredibilizar e passar a ideia que a corrupção entremeia e perpassa tudo. Fiscalizar para evitar a corrupção é importante, mas toda a intervenção política não pode esgotar-se no activismo contra a corrupção, à procura de ganhos imediatos sobre o adversário. Corre-se o risco de perder a visão de conjunto sobre o sistema e de não se mostrar suficientemente responsável pela sua funcionalidade e estabilidade.

Um outro risco que se pode incorrer é de não ver outros problemas de fundo que mesmo quando trazidos com particular assertividade, como aconteceu com os alertas do Banco Mundial no memorando de 14 de Julho sobre o cansaço do modelo de crescimento de Cabo Verde e seu possível esgotamento, têm dificuldade em atrair o olhar da classe política e da cidadania activa que circula nas redes sociais. Não espanta que o Relatório do Estado da Economia publicado pelo Banco Central de Cabo Verde, que também veio alertar para as dificuldades do modelo de desenvolvimento de Cabo Verde, não tenha despertado mais atenção.

Mas a verdade é que, nos dois últimos parágrafos da avaliação global da economia, o BCV foi explícito em dizer que o potencial de crescimento da economia está ainda condicionado por níveis baixos da produtividade total dos factores, como já o Memorando do BM tinha assinalado. Também acrescenta que é extremamente importante reduzir o nível da dívida, avançar com reformas das empresas públicas e promover os investimentos em sectores catalisadores para aumentar e elevar o potencial de crescimento. É evidente que sem isso não se pode promover a inclusão social e construir resiliência a choques exógenos.

Infelizmente, pelo tipo de matéria que gerou euforia com que se entrou na silly season, pode-se ver que o renovar de alertas não vai provocar qualquer recentragem na abordagem dos problemas do país. O mais provável é que, até a rentrée política e ao regresso à política habitual, se procure explorar frivolidades políticas para manter as hostes partidárias mobilizadas. Entretanto, mudanças tectónicas nos campos geopolítico e económico vão acontecendo por aí sem que o país seja capaz de focar para “arrumar a casa” e preparar-se tanto para aproveitar as oportunidades como para resistir aos choques externos.

No relatório do BCV compara-se num quadro (fig.4) o impacto da crise pandémica sobre Cabo Verde, sobre a África subsaariana e os países da CEDEAO. A contracção da economia no país foi de 19,3% do PIB enquanto na África ficou-se por 1,7% e na CEDEAO por 0,6%. A vulnerabilidade do país ficou aí bem clara. Para a diminuir é evidente que Cabo Verde precisa de um engajamento mais sério e mais focado da sua classe política nos seus reais problemas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1132 de 9 de Agosto de 2023.

segunda-feira, agosto 07, 2023

Por uma política da verdade e de resultados

 

​Do debate sobre o estado da Nação no dia 28 de Julho a primeira impressão com que se fica é das posições extremadas da situação e da oposição quanto à realidade actual e passada do país. Tal impressão não constitui propriamente uma surpresa. É expectável considerando o nível de polarização político-partidária existente no país. O inesperado é o facto de os partidos em simultâneo convergirem na compreensão e enquadramento de matérias mesmo que discordem verbalmente do que na prática são as consequências ou o impacto das medidas de política que lhes são direccionadas. A persistente polarização das forças políticas pode levar a um sentimento geral de uma certa inutilidade da política. Já a convergência num certo tipo de construções, narrativas e autênticos mitos aponta para um outro problema que é o de poder não existir uma real alternativa de governação para o país.

De facto, percebe-se nos múltiplos debates políticos que se toma como verdades assentes certas suposições, a começar pela ideia secular que Cabo Verde seria um país de fartura e felicidade se chovesse. Uma outra ideia é a de ter uma localização estratégica única entre três continentes. Uma outra ainda mais recente é que o seu destino estaria numa proximidade à Africa com seus 300 milhões de consumidores na CEDEAO e mil milhões na União Africana. Vai-se mais fundo na ficção quando ao propor potenciar todos esses recursos apostando em clusters de agronegócios, hubs aéreos e transhipments e centro financeiro e apresentando-se como porta de entrada para África não se tem em devida conta a sua condição de arquipélago, de ilhas com secas cíclicas e pouco terreno arável, de um país de pequena população e mercado fragmentado e de parcos recursos naturais.

Nesse sentido, por exemplo, não há falta de apelos vindos de todos os quadrantes políticos para se apostar na agricultura e particularmente no que é mais visível: a mobilização de água. Dizem uns que é para criar mais postos de trabalho e outros que é para fixar a população no mundo rural. Tirando de lado qua não há muito campo para cultivar e que não há uma logística de transporte e distribuição que pudesse fazer chegar os produtos aos mercados das ilhas, o memorando do Banco Mundial (BM) de 14 de Julho último foi taxativo em dizer que a produtividade na agricultura é particularmente baixa correspondente a cerca de metade do nível encontrado na indústria e nos serviços. E sem produtividade não há como aumentar o rendimento das pessoas e, muito menos, criar emprego. Daí a grande percentagem de pobres e de muito pobres na população rural nomeadamente no interior da ilha de Santiago, como se pode ver nos dados do INE (IMC 2022, gráfico 29). O discurso político, imperturbável perante isso tudo, continua praticamente igual, mas com nuances, substituindo barragens por dessalinização de água e insistindo no objectivo de fixar os jovens.

No domínio dos transportes mesmo as grandes dívidas acumuladas na companhia aérea de bandeira e os enormes subsídios para os transportes marítimos não conseguem levar o debate sobre o sector para padrões racionais. A emoção reina, assim como as denúncias de abandono e as exigências para se construir mais estradas, disponibilizar mais barcos e abrir mais rotas. Não é tido em devida conta o facto que com a população actual e a fraca estrutura produtiva não se ter volume suficiente de passageiros e carga para rentabilizar tudo o que é exigido. Aliás, tende-se a amplificar o ruído nas discussões, atraindo mais carga política quando, como nota o Memorando do BM, acaba-se por focar a concessão dos transportes marítimos no movimento de passageiros, apesar de os estudos de suporte feitos terem identificado a carga como principal fonte de receitas.

Algo similar acontece quando, no esforço de tornar operacional a companhia de bandeira nos transportes aéreos para melhorar e baixar os custos de conectividade do país, imediatamente se procura restaurar rotas com as comunidades que notoriamente contribuíram para a sobrecarga das dívidas. E não são as recentes proclamações de que afinal a população residente mais a emigrada poderá perfazer dois milhões que mudará a situação. A tentação de hiperbolizar o impacto da emigração na economia pode servir em confrontos tácticos para arrecadar ganhos políticos, mas, na prática, só torna os problemas do país mais intratáveis e com mais custos para todos, incluindo os emigrantes.

Por isso quando a realidade bate à porta, na forma de um memorando do BM a chamar a atenção para o facto que o modelo de desenvolvimento dá sinais de cansaço e está a esgotar-se, a reacção imediata é de aumentar o volume do embate político para que o ruído afaste uns com desgosto da política. Mais crispação serve também para esconder dos outros que realmente as forças políticas não se mostram capazes de fazer reformas e mobilizar as energias necessárias para elevar o potencial de crescimento e melhorar a produtividade e a competitividade do país. Mesmo quando confrontadas com o desejo de emigrar que se percebe massivo, em particular nos jovens, derivado da falta de perspectivas de crescimento e de oportunidades de emprego, esforçam-se por não prestar a devida atenção. Sente-se a necessidade de o negar ou então de o desvalorizar afirmando que de uma forma ou outra o país ganha. Ofuscadas talvez pela ideia de uma suposta nação global até se quer tomar por igual o impacto que no país e na economia nacional têm as remessas dos emigrantes movidas por laços de afeição e o contributo do cidadão residente pela via de participação no processo produtivo nacional, por rendimentos ganhos no país e pelos impostos pagos.

A verdade é que o país tem que “cair no real”, como dizem os brasileiros. O mundo não está para se viver de ilusões e de mitos e narrativas que não deixam construir um futuro de crescimento e prosperidade. Restaurar um quadro racional de fazer política, em que a arrogância disfarçada de teimosia e o apelo sistemático a emoções e sentimentalismos não façam escola, é fundamental para se encontrar as respostas certas para os problemas do país. Há que, de facto, fazer menos festivais, evitar discursos demagógicos e investir mais no capital humano. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1131 de 2 de Agosto de 2023.