segunda-feira, agosto 07, 2023

Por uma política da verdade e de resultados

 

​Do debate sobre o estado da Nação no dia 28 de Julho a primeira impressão com que se fica é das posições extremadas da situação e da oposição quanto à realidade actual e passada do país. Tal impressão não constitui propriamente uma surpresa. É expectável considerando o nível de polarização político-partidária existente no país. O inesperado é o facto de os partidos em simultâneo convergirem na compreensão e enquadramento de matérias mesmo que discordem verbalmente do que na prática são as consequências ou o impacto das medidas de política que lhes são direccionadas. A persistente polarização das forças políticas pode levar a um sentimento geral de uma certa inutilidade da política. Já a convergência num certo tipo de construções, narrativas e autênticos mitos aponta para um outro problema que é o de poder não existir uma real alternativa de governação para o país.

De facto, percebe-se nos múltiplos debates políticos que se toma como verdades assentes certas suposições, a começar pela ideia secular que Cabo Verde seria um país de fartura e felicidade se chovesse. Uma outra ideia é a de ter uma localização estratégica única entre três continentes. Uma outra ainda mais recente é que o seu destino estaria numa proximidade à Africa com seus 300 milhões de consumidores na CEDEAO e mil milhões na União Africana. Vai-se mais fundo na ficção quando ao propor potenciar todos esses recursos apostando em clusters de agronegócios, hubs aéreos e transhipments e centro financeiro e apresentando-se como porta de entrada para África não se tem em devida conta a sua condição de arquipélago, de ilhas com secas cíclicas e pouco terreno arável, de um país de pequena população e mercado fragmentado e de parcos recursos naturais.

Nesse sentido, por exemplo, não há falta de apelos vindos de todos os quadrantes políticos para se apostar na agricultura e particularmente no que é mais visível: a mobilização de água. Dizem uns que é para criar mais postos de trabalho e outros que é para fixar a população no mundo rural. Tirando de lado qua não há muito campo para cultivar e que não há uma logística de transporte e distribuição que pudesse fazer chegar os produtos aos mercados das ilhas, o memorando do Banco Mundial (BM) de 14 de Julho último foi taxativo em dizer que a produtividade na agricultura é particularmente baixa correspondente a cerca de metade do nível encontrado na indústria e nos serviços. E sem produtividade não há como aumentar o rendimento das pessoas e, muito menos, criar emprego. Daí a grande percentagem de pobres e de muito pobres na população rural nomeadamente no interior da ilha de Santiago, como se pode ver nos dados do INE (IMC 2022, gráfico 29). O discurso político, imperturbável perante isso tudo, continua praticamente igual, mas com nuances, substituindo barragens por dessalinização de água e insistindo no objectivo de fixar os jovens.

No domínio dos transportes mesmo as grandes dívidas acumuladas na companhia aérea de bandeira e os enormes subsídios para os transportes marítimos não conseguem levar o debate sobre o sector para padrões racionais. A emoção reina, assim como as denúncias de abandono e as exigências para se construir mais estradas, disponibilizar mais barcos e abrir mais rotas. Não é tido em devida conta o facto que com a população actual e a fraca estrutura produtiva não se ter volume suficiente de passageiros e carga para rentabilizar tudo o que é exigido. Aliás, tende-se a amplificar o ruído nas discussões, atraindo mais carga política quando, como nota o Memorando do BM, acaba-se por focar a concessão dos transportes marítimos no movimento de passageiros, apesar de os estudos de suporte feitos terem identificado a carga como principal fonte de receitas.

Algo similar acontece quando, no esforço de tornar operacional a companhia de bandeira nos transportes aéreos para melhorar e baixar os custos de conectividade do país, imediatamente se procura restaurar rotas com as comunidades que notoriamente contribuíram para a sobrecarga das dívidas. E não são as recentes proclamações de que afinal a população residente mais a emigrada poderá perfazer dois milhões que mudará a situação. A tentação de hiperbolizar o impacto da emigração na economia pode servir em confrontos tácticos para arrecadar ganhos políticos, mas, na prática, só torna os problemas do país mais intratáveis e com mais custos para todos, incluindo os emigrantes.

Por isso quando a realidade bate à porta, na forma de um memorando do BM a chamar a atenção para o facto que o modelo de desenvolvimento dá sinais de cansaço e está a esgotar-se, a reacção imediata é de aumentar o volume do embate político para que o ruído afaste uns com desgosto da política. Mais crispação serve também para esconder dos outros que realmente as forças políticas não se mostram capazes de fazer reformas e mobilizar as energias necessárias para elevar o potencial de crescimento e melhorar a produtividade e a competitividade do país. Mesmo quando confrontadas com o desejo de emigrar que se percebe massivo, em particular nos jovens, derivado da falta de perspectivas de crescimento e de oportunidades de emprego, esforçam-se por não prestar a devida atenção. Sente-se a necessidade de o negar ou então de o desvalorizar afirmando que de uma forma ou outra o país ganha. Ofuscadas talvez pela ideia de uma suposta nação global até se quer tomar por igual o impacto que no país e na economia nacional têm as remessas dos emigrantes movidas por laços de afeição e o contributo do cidadão residente pela via de participação no processo produtivo nacional, por rendimentos ganhos no país e pelos impostos pagos.

A verdade é que o país tem que “cair no real”, como dizem os brasileiros. O mundo não está para se viver de ilusões e de mitos e narrativas que não deixam construir um futuro de crescimento e prosperidade. Restaurar um quadro racional de fazer política, em que a arrogância disfarçada de teimosia e o apelo sistemático a emoções e sentimentalismos não façam escola, é fundamental para se encontrar as respostas certas para os problemas do país. Há que, de facto, fazer menos festivais, evitar discursos demagógicos e investir mais no capital humano. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1131 de 2 de Agosto de 2023.

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