O Millennium Challenge Corporation (MCC) anunciou no dia 14 de Dezembro a escolha de Cabo Verde para mais um acordo de financiamento (compact). Como das duas primeiras vezes, em 2005 e depois em 2012 quando o país foi contemplado com o financiamento do MCC, o anúncio foi recebido com entusiasmo geral. Desta vez não se proclamou que o montante poderá significar uma “quarta independência”, mas não se ficou por menos em euforia perante a perspectiva real de vir a receber uns milhões de dólares.
Mas como era de esperar, junto como o regozijo geral surgiu logo a disputa, ao estilo habitual da política no país, para saber quem mais contribuiu para essa vitória. Partidos e personalidades políticas cada um à sua maneira procuraram atrair para si o mérito de ter conseguido os compactos do MCC. Para uns é o trabalho feito hoje, para outros é trabalho que vem detrás com os financiamentos anteriores. Já para, o MCC segundo o seu comunicado oficial, Cabo Verde foi seleccionado de entre outros países por causa do seu compromisso claro com a governança democrática e seus significativos desafios de desenvolvimento e de redução da pobreza.
Por isso mesmo, o momento devia ser menos de disputa para saber quem merece a gratidão do povo por mais um compacto do MCC e mais de focalizar em como usar a disponibilidade de financiamento para o utilizar de forma mais eficaz e estratégica para o país. Num passado recente, em 2005, e posteriormente, em 2012, foram assinados dois compactos que no primeiro caso foi direccionado para infraestruturas, nomeadamente o Porto da Praia, e, no segundo, para projectos de suporte aos investimentos no turismo, designadamente em matéria de direito de propriedade e no saneamento e abastecimento de água às populações. Com o actual compacto, segundo o mesmo comunicado do MCC, pretende-se apoiar Cabo Verde “na geração de crescimento económico através de uma integração mais profunda com a região da África Ocidental”.
É de supor que a priorização da integração regional para acelerar o crescimento económico terá sido indicação do governo de Cabo Verde e não escolha imposta pelo conselho da administração do MCC. De qualquer forma isso significa que os projectos a serem desenvolvidos no quadro do novo compacto vão necessariamente ser dirigidos para efectivar essa integração. A questão que se coloca é se é essa a primeira das prioridades nacionais considerando que há outras como, por exemplo, investir para fazer a transição energética e baixar os custos de água e energia para as famílias e para as pessoas e ainda para diminuir as importações de combustíveis e a exposição do país aos riscos de fornecimento dos mesmos e à volatilidade dos preços. Também que urge implementar uma estratégia compreensiva de saúde que responda às necessidades actuais da população e ao crescimento do turismo. E que há a necessidade premente de construir a estrutura de produção de bens e serviços transaccionáveis para melhor aproveitar o mercado que o fluxo turístico representa e aceder a outros mercados externos.
Quase a completar cinquenta anos de independência constata-se que o comércio com a região da África Ocidental ainda não ultrapassa os 3% do comércio externo do país. Alguma razão existe para que as importações e exportações no quadro da CEDEAO não tenham conseguido ganhar expressão significativa. Certamente, não será por opção política ou preferências ideológicas porque, além de se ter regularmente alternância na governação o país, durante 30 dos últimos 50 anos teve à sua frente um partido com a sigla Partido Africano da Independência. Razões outras deverão existir sendo as mais óbvias derivadas da insularidade do país que se situa a cerca de 600 km do continente.
Se para os membros da CEDEAO no continente o comércio inter-regional não chega aos 19% não se podia esperar que as trocas comercias com o continente do único membro que é insular tivessem uma dinâmica maior. Muito menos que cheguem a ponto de se transformar no acelerador do crescimento económico do país, como aparentemente se pretende, focando todo o compacto do MCC na integração regional. Uma outra questão é que os investimentos necessários para se materializar o mercado de livre comércio entre os países, particularmente em termos de transporte e de conectividade, devem ser em grande parte um esforço da própria comunidade. Aliás, é o que acontece na União Europeia e também na CEDEAO com os grandes projectos de estradas, caminhos de ferro e telecomunicações.
Na realidade não há esforço visível para se conectar com o único membro que é insular. E não seria de esperar que o mais pequeno dos estados fosse suportar por si próprio os custos. Mas, paradoxalmente, parece que é o que se pretende. Como alguém já uma vez notou a propósito da importância estratégica muita efémera que as ilhas obtêm ao longo da história, são em geral os países continentais que vêem utilidade nas ilhas e não o contrário. Investir para se fazer reconhecer útil na maior parte das vezes resulta em elefantes brancos, dívida pública pesada e desvio do foco daquilo que realmente pode aumentar a produtividade e a competitividade, em particular o investimento no capital humano.
À semelhança do surfista que nunca criou ondas e sabe que todas vão morrer na praia e deve cavalgá-las enquanto puder, a partir das ilhas dificilmente se pode criar ou condicionar mercados. Ter capacidade e sagacidade para reconhecer tendências e aproveitar oportunidades à medida que cadeias de valor e de abastecimento se criam e mudam com as transformações em curso, é fundamental para melhor se posicionar neste mundo complexo da actualidade. Para isso, porém, é essencial que o debate democrático produza os seus frutos e se evite que, sem uma discussão de fundo, mais uma vez se utilize recursos excepcionais disponibilizados ao país em iniciativas cujos resultados, o mais certo, é que fiquem muito aquém do prometido e desejado.
Debate esse que pelas implicações das opções a serem feitas não devia ser esvaziado logo à partida pela actual tendência de polarização política e de descredibilização das instituições. Um fenómeno que se nota actualmente na generalidade das democracias e ao qual claramente Cabo Verde não está alheio. Particularmente agora que o recrudescer do conflito ideológico entre valores e narrativas do regime de partido único e os valores e princípios da democracia liberal, sob a capa da comemoração do centenário de Amílcar Cabral, tem reactivado fracturas antigas e polarizado a sociedade, não deixando incólume quase nenhuma instituição incluindo os órgãos de soberania, como se pode constatar das tensões e acusações mútuas.
Num ambiente desses dificilmente se poderá debater com suficiente objectividade o mérito de estabelecer como prioridade a aposta na integração regional usando os recursos do MCC e, por essa via, fazer a economia crescer e diversificar. O mais provável é que sentimentos deslocados continuem a prevalecer sobre a razão e que nos próximos anos não se consiga ir muito mais além do ponto atingido nas primeiras cinco décadas de independência.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1151 de 20 de Dezembro de 2023.
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