Já na segunda metade do mês de Fevereiro torna-se cada vez mais evidente que o ano de 2024 vai ser um ano de mudanças ainda mais profundas do que se esperava. Crise da democracia, tensões geopolíticas e perturbações no comércio internacional a par do problema crescente das migrações e das alterações climáticas conjugam-se para criar um quadro global volátil. As guerras existentes poderão ser ampliadas e outras poderão emergir das enormes tensões já existentes. O facto de se calcular que quatro mil milhões de pessoas vão às urnas em todos os continentes durante este ano e que se torna difícil prever os resultados e os governos que vão dali surgir empresta um ar de imprevisibilidade ainda maior aos acontecimentos.
Aqui na vizinhança das ilhas de Cabo Verde a inesperada crise no Senegal na sequência do que que observadores e a imprensa internacional têm chamado de “golpe constitucional” veio juntar-se à situação criada há pouco tempo pelos golpes de Estado no Mali, em Burkina Faso e no Níger. Já antes a Guiné-Conacri tinha sofrido um golpe militar e a GuinéBissau vive de crise em crise nas disputas de protagonismo entre o presidente da república, o governo, o parlamento e os partidos políticas. A própria CEDEAO está em perigo com a saída dos países do Sahel sob regime militar dessa organização regional, anunciada na semana passada.
Prevêem-se consequências graves para o comércio na região, em particular se vier a concretizar a possibilidade das exportações desses países serem canalizadas para os portos marroquinos como lhes foi oferecido por Marrocos. Isso, sem falar de desarticulação no combate aos ataques jihadistas que poderá eventualmente ser criada e que torna todos os países da região mais vulneráveis. Num quadro destes de destabilização, o adiamento no Senegal das eleições presidenciais, sem data marcada para as realizar, não podia ser mais preocupante.
Entretanto, no resto do mundo o desmantelar de uma certa ordem herdada do fim da Guerra Fria não pára. A guerra na Ucrânia desencadeada pela invasão russa que daqui a dez dias vai completar dois anos não dá sinal de terminar. Pelo contrário, tende a agravar-se devido às fragilidades da resistência ucraniana e alguma imprevisibilidade no apoio que poderá continuar a receber dos países ocidentais. Depois das recentes declarações de Donald Trump, um possível candidato ganhador das eleições americanas de Novembro deste ano, a retirar garantias de suporte americano mesmo aos países da NATO em caso de ataque russo, o conflito na Europa até pode vir a alargar e a abranger outros países.
No Médio Oriente, algo similar corre o risco de acontecer com o conflito na Faixa de Gaza a transformar-se numa guerra regional tendo como base um confronto entre os Estados Unidos e o Irão. Ainda os preços dos combustíveis fósseis não foram significativamente afectados pela guerra entre Israel e o Hamas, mas, em caso de um conflito mais generalizado, o mais normal é que disparassem, esvaziando em boa medida os ganhos já conseguidos na luta contra a inflação. A disrupção das rotas de navegação devido aos ataques dos Houthis no Mar Vermelho e no Canal de Suez por onde passa cerca de 30% das mercadorias em contentores correspondentes a 12% do comércio internacional já está a pressionar os preços dos produtos ao obrigar os barcos a contornar a África, com os correspondentes custos. Um conflito generalizado, provavelmente inevitável se não for encontrado um caminho para se chegar à solução dos dois Estados, Israel e Palestina, terá consequências mais desastrosas.
Em Cabo Verde pelo discurso produzido, pelo debate político conduzido e pela acção governativa global não se nota urgência, nem perspectiva estratégica perante uma realidade mundial, regional e local em clara e profunda mudança. A tendência geral é para se seguir com a gestão corrente, alinhar com as agendas multilaterais que justificam doações e créditos concessionais e focar na conquista e preservação do poder político. Por isso, é que se discute o mais do mesmo, nos mesmos termos de sempre acompanhados de acusações mútuas que se repetem ano após ano e em todas as sessões do parlamento. Percebe-se perfeitamente isso ouvindo troca de galhardetes entre a “situação” e a “oposição” a todos os níveis das estruturas do Estado.
Entretanto, os problemas de sempre agravam-se e tornam-se cada vez mais de difícil solução. Isso passa-se em particular nos transportes, na segurança, na habitação, mas também na educação e na saúde. A economia arrasta- -se com taxas de crescimento que estão aquém do que os próprios governantes reconhecem como necessário para colocar o país numa outra plataforma de desenvolvimento. Há desafios a vencer para conseguir ganhos de produtividade e competitividade – que passam por ter um Estado mais eficiente, por potenciar os efeitos do motor da economia que é o turismo e por um investimento mais estratégico no capital humano - mas não se vê o país e a sociedade a se moverem como um todo nesse sentido.
Infelizmente, a política do espectáculo acaba por ofuscar o que devia ser uma postura mais reflectida, mais orientada para o serviço público e com sentido de urgência e oportunidade. Mesmo o que se tem como vantagem, como por exemplo a condição de nação una, corre o risco de se desperdiçar, criando fracturas, em vez de acarinhar a diversidade. Também a democracia funcional se deixa fragilizar não reforçando os seus princípios e valores de referência e não valorizando a cultura de cumprimento das regras e competências constitucionais pelos actores políticos, a começar pelos titulares dos órgãos de soberania. A gravidade da epidemia da covid-19 parece não ter sido suficiente para se inflectir uma postura que claramente não é a mais benéfica para o país.
Ainda hoje Cabo Verde não se recuperou dos anos perdidos e a perspectiva de não tão cedo vir a ganhar dinâmica necessária para um crescimento sustentável deverá estar a motivar muitos a emigrar. Com o mundo neste ano de 2024 a mover-se num sentido de mais incertezas esse sentimento ficará mais forte, com todas as consequências principalmente para os que, por uma razão ou outra, não conseguirem.
A atitude a ser esperada do governo e de toda a classe política é a de compreender que embora haja quem queira tomar o mundo como estático “entretanto ele se move” como diria Galileu Galilei. E quando se está perante rápidas mudanças no mundo real a melhor forma de manter fiel ao princípio de servir é mudar a nossa própria posição. Como bem disse Lenine para se poder mover para a frente há que evitar dogmatismo cego e oportunismo cínico.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1159 de 14 de Fevereiro de 2024.
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