quinta-feira, março 14, 2024

Salvaguardar a autonomia do BCV

A iniciativa do INPS de organizar leilões para depósitos na perspectiva de conseguir maior rentabilização das poupanças da instituição continua a provocar polémica. No passado dia 1 de Março o BCV, depois de, em Dezembro, ter recomendado aos bancos que se abstivessem de participar nos leilões veio dar-lhes razão na reclamação então apresentada. No comunicado, o BCV deixou claro que o processo de leilões violou o princípio de transparência e que seria passível de anulação pelas entidades competentes. O insólito aconteceu quando, numa conferência de imprensa, no dia 8 Março, com a presença dos dois ministros de tutela, o ministro das Finanças veio contrapor ao BCV afirmando que o INPS andou muito bem em avançar com os leilões e que são para continuar.

Na segunda-feira, o presidente da república em entrevista à TCV relembrou ao governo a autonomia do BCV e a sua função de entidade reguladora independente do sistema financeiro. Razão por que, segundo ele, o governo “não pode realizar reunião entre o Banco Central, o INPS e o próprio governo para articular posições” como se propôs fazer o ministro das Finanças nas suas declarações da sexta feira passada. De facto, a lei orgânica do BCV, de 2002, é clara em afirmar  que a autonomia do Banco Central deve ser respeitada, não podendo nenhum órgão ou pessoa influenciar o governador ou qualquer membro do conselho de administração no desempenho das suas funções.

 A lei traduz a opção por uma maior autonomia e independência do Banco Central que foi consagrada na revisão constitucional de 1999 na sequência da assinatura do Acordo Cambial que criou o peg fixo com o euro. O respeito pelos seus pressupostos trouxe ao país anos de inflação baixa e uma imagem de país com estabilidade cambial e do sistema financeiro. Não se pode com ligeireza ou voluntarismos fragilizar a arquitectura institucional que tem suportado essa estabilidade.

De acordo com o ministro das Finanças na TCV a iniciativa dos leilões é uma questão nova para o INPS, para o BCV e para o próprio Governo e que nem o BCV tem ou tinha regulamentos nessa matéria. A pergunta que se põe é: sendo os leilões de depósitos uma inovação, por que se avançou com o processo sem primeiro o regulamentar e sem aparentemente o acordo explícito da tutela dos dois ministros. Leilões de produtos financeiros não são propriamente desconhecidos no país. Acontecem regularmente com as emissões de obrigações e bilhetes do tesouro.

A diferença é que são regulados respectivamente pelos decretos-leis 59/2009 e 60/2009 de 14 de Dezembro que remetem para o Banco Central /Auditoria Geral do Mercado de Valores Mobiliários, aspectos operacionais de realização de leilão, de liquidação financeira e de consulta. Também é sempre ouvido previamente o BCV/AGMVM quando são estabelecidas as condições de emissão e outras questões técnicas ligadas aos leilões dos títulos do tesouro.  Na Bolsa de Valores os títulos são oficiosamente cotados e colocados por leilão. 

Por aí pode-se constatar que há processos e procedimentos em matéria de leilões já consolidados no país e com enquadramento institucional adequado que dificilmente permitem dizer que se está perante uma situação completamente nova. De facto, novidade parecem ser os leilões de depósitos de fundos sociais. Aparentemente não se registam muitos exemplos no mundo lá fora.

O caso mais referido é do Banco da Rússia onde, por razões de gestão de excesso de liquidez estrutural e também de imposição legal de aplicação de contribuições para fundos de pensões, se realizam leilões periódicos de depósitos. São realizados na Bolsa de Moscovo, o Banco da Rússia estabelece as regras para garantir transparência, protecção dos fundos de pensões e promover a competição entre os bancos e certifica-se que há conformidade com as directivas do ministério das finanças. Ou seja, há todo um enquadramento institucional prévio para se colher os benefícios do processo e para assegurar a estabilidade e a confiabilidade do sistema.

Também em Cabo Verde devia-se começar por dar esse enquadramento legal a todo o processo a exemplo do que foi feito com os leilões dos Títulos do Tesouro.  É evidente o interesse geral em rentabilizar os fundos do INPS, mas há que fazê-lo sem deixar quaisquer dúvidas quanto à transparência do processo e salvaguardando a integridade do sistema financeiro. Por outro lado, há que assacar responsabilidades e conter os eventuais estragos institucionais e reputacionais por um imbróglio que se arrasta há três meses, uma parte em surdina e mais recentemente às claras como deixam entender os sucessivos comunicados vindos a público.

Já são claros os sinais do confronto político que se anunciam e o posicionamento do governo na conferência de imprensa da sexta-feira não serviu para apaziguar a situação. Depois da chamada de atenção do presidente da república para a necessidade de se garantir o normal funcionamento das instituições, devia-se procurar pôr o processo de rentabilização dos depósitos do INPS no caminho certo e com a supervisão adequada.

 Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1163 de 13 de Março de 2024.

 

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