segunda-feira, maio 27, 2024

Manter o poder judicial credível e eficaz

 

De tempos em tempos questões à volta da eficácia da justiça vêm à tona. Às vezes são trazidas por utentes, políticos, académicos, advogados e pelos próprios magistrados. Outras vezes por acontecimentos, posicionamentos e decisões com elementos conflituantes que precisam de ser dirimidos. Desta vez surge na sequência de uma entrevista do presidente do supremo tribunal da justiça (STJ) à rádio pública em que afirma que o excesso de garantias é um dos factores que também contribui para a morosidade da justiça. A ordem de advogados respondeu com um comunicado dizendo que a morosidade da justiça não reside na diminuição das garantias processuais, mas sim na melhoria estrutural e funcional do sistema judiciário.

Subjacente a todos os momentos em que se verificam desencontros de opinião quanto às causas da morosidade da justiça está a preocupação geral com o facto conhecido de que a “justiça que tarda, falha”. E numa comunidade que quer viver em liberdade, na paz e em democracia não se pode ter a percepção de que a justiça falha, que não é eficaz e não serve a todos. Por isso mesmo é que em tempo útil deve-se assegurar que conflitos de interesses são dirimidos, que os direitos dos cidadãos são protegidos e que são reprimidos quaisquer atentados à legalidade democrática. Como conseguir isso é o grande desafio que se põe em particular às sociedades democráticas para que, como dizia Martin Luther King Jr., se continue a acreditar que “o arco do universo moral é longo, mas inclina-se no sentido da justiça”.

A consecução da justiça justa pretendida por todos implica que os tribunais sejam independentes, os juízes sigam a lei e a sua consciência e que se respeite o due process of law, ou seja, se respeite estritamente os processos e procedimentos ao longo de todo a investigação, acusação e julgamento dos casos. Vital para o sistema é que haja meios necessários para o seu funcionamento e que as partes que o compõem contribuam de forma efectiva para se ter resultados em tempo útil. Obter a cooperação das partes, conciliar interesses dos vários operadores e evitar corporativismo das classes profissionais e também interferências políticas é crucial.

Inevitavelmente tensões entre as partes acabam por surgir e reclamações de operadores e dos utentes vão-se ouvir. A isso seguem-se propostas de mais meios e de reformas para ultrapassar os problemas, acompanhadas ou não da tentação de pôr a culpa das falhas sobre uns e outros. O caso actual que levou ao comunicado da ordem de advogados é ilustrativo a esse respeito. De facto, é parte de um debate que se repete várias vezes aqui e noutras paragens. Por exemplo, em Portugal, o actual presidente do STJ, Henrique Araújo, em entrevista ao jornal Observador também disse que “há um excesso de garantias de defesa. Há muitas possibilidades de parar um processo através de manobras dilatórias”. E se “se quer ter uma justiça mais célere, terá de reduzir as garantias de defesa dos arguidos para encontrar um melhor equilíbrio entre a eficácia e os direitos dos arguidos”.

Propõe-se maior eficiência processual para ultrapassar isso. Nesse quesito o legislador tem o papel central, mas é uma matéria sensível. Particularmente num país onde depois de duas ditaduras sucessivas, antes e após a independência, tem especial sensibilidade em relação a qualquer limitação nas garantias de defesa.

Outros factores poderão contribuir para melhorar a eficácia da justiça como sugere a ordem dos advogados. No comunicado divulgado há uma referência à necessidade de adopção de uma cultura de trabalho e orientada para produção de resultados. Acrescenta-se ainda que os magistrados devem trabalhar, no limite das suas possibilidades, para evitar que os prazos sejam ultrapassados”. Mais meios e uma capacitação superior para a investigação dos crimes também é sentida como fundamental para garantir aos cidadãos que a justiça está realmente a funcionar e que podem nela confiar. E como os meios não são ilimitados, particularmente num país de parcos recursos, a cooperação entre os vários operadores, especialmente entre as diferentes polícias, é essencial para se conseguir resultados em tempo útil.

Ainda factores de uma natureza diferente poderão afectar a percepção dos cidadãos quanto à credibilidade e eficácia da justiça. Nesse sentido, considerando o papel do poder judicial no controlo da legalidade e de actos dos poderes executivo e legislativo e o facto de não ser eleito e não ter meios próprios, é de maior importância garantir que não há interferência dos outros poderes na sua actuação. Não é aconselhável que se caminhe nem para a judicialização da política, nem para a politização da justiça.

A realidade, porém, é que, com o aprofundamento da crise das democracias e a falta de diálogo e de capacidade de negociar e firmar compromissos, é cada vez maior a tentação de mobilizar os tribunais para forçar a prestação de contas, livrar-se de adversários inconvenientes e ultrapassar bloqueios políticos. É um fenómeno que está a manifestar-se em várias democracias que, em certas situações, ajudaram a contornar crises como no Brasil (Bolsonaro) e no Reino Unido (Boris Johnson). Noutras situações, pelo contrário, levaram, como nos Estados Unidos, a meio de múltiplas acções judiciais contra Donald Trump, ao condicionamento efectivo do processo eleitoral para as eleições presidenciais.

Tudo isso é acompanhado de descrédito das instituições da justiça como se constata em relação à perda progressiva de prestígio do supremo tribunal dos Estados Unidos nestes últimos anos. Em Portugal a queda do governo de maioria absoluta na sequência de actuações do ministério público provocou reacções de vários sectores da sociedade que no manifesto dos 50 chegam ao ponto de dizer que “a justiça funciona quase inteiramente à margem de qualquer escrutínio ou responsabilidade democráticos”. Também em Cabo Verde, pouco depois da câmara da Praia ter sido objecto de buscas e apreensões realizadas pelo ministério público e do aproveitamento político do facto pelos partidos, é o próprio presidente da república que chama a atenção para a judicialização da política, talvez não do melhor palco, num discurso no Dia do Município da Praia.

Face ao que se vem constatando nas democracias em que a crise vem polarizando cada vez as posições e tornando difícil o debate político é de maior conveniência que se procure manter um nível de integridade do poder judicial. Para isso é de maior importância procurar garantir-lhe os meios necessários para o seu funcionamento e avançar com reformas e inovações que melhorem de forma significativa a sua eficácia. Também é fundamental que as magistraturas desenvolvam uma cultura de trabalho e de responsabilidade que, por um lado se traduza numa justiça célere, competente e justa e, por outro, se mostrem capazes de resistir às tentativas de politização da justiça. Há que garantir que em todas as circunstâncias saberão orientar-se pelos princípios e valores constitucionais e a administrar a justiça em nome do povo, aplicando a lei democraticamente aprovada. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1173 de 22 de Maio de 2024.

sexta-feira, maio 17, 2024

É preciso tirar o país do colete de forças

 

O primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva em vários momentos da semana passada ligados às comemorações à volta do campo do Tarrafal repetiu a mensagem de que é preciso ficar em paz com a história. Não foi a primeira vez. Praticamente desde a vitória nas eleições de 2016 sempre que é confrontado com o facto de a história oficial ser muita próxima da narrativa histórica do regime de partido único do PAIGC/PAICV socorre-se dessa expressão falaciosa. A verdade é que os manuais escolares repetem na democracia a mesma história do regime anterior, a comunicação social pública lê pela mesma cartilha e as instituições do Estado com as devidas adaptações prestam vassalagem aos ícones, ritos e figuras do regime de partido único. Não há realmente “paz” com a história, mas sim submissão a uma narrativa ideológica que foi legitimadora de uma ditadura.

A realização patética de duas comemorações do encerramento do campo do Tarrafal, a primeira a 1º de Maio pela presidência da república e a segunda, uma semana depois, pelo governo, no dia 8 de Maio, revelou que, não obstante as rivalidades de protagonismo, os órgãos de soberania convergiam no essencial: todos queriam fazer o país acreditar que, primeiro, a prisão do Tarrafal foi encerrada no dia 1º de Maio de 1974 e que, segundo, era um campo de concentração. Não interessa que o facto que o campo albergou 72 prisioneiros políticos depois dessa data e que ninguém mais, nem Portugal que no tempo da ditadura teve no Tarrafal mais presos políticos, a classifica de campo de concentração. O que é importante é manter a narrativa.

Até parece que se está no domínio da pós-verdade e das realidades alternativas em que a verificação dos factos, o fact checking, não é suficiente para repor a verdade. Uma situação que só se mantém porque, fazendo uso do poder do Estado e das suas ramificações nas instituições e na sociedade, impõe-se uma historiografia oficial. Com isso o caminho fica aberto para, parafraseando o PM, se calar a história, para se branquear a história e para se truncar a história. Mas como se vive numa democracia na qual a circulação de ideias, de informação e de conhecimento é livre não se pode ficar só por mentiras, omissões e desinformação. Corre-se o risco de ser apanhado em falso.

Para bloquear essa possibilidade há que mobilizar sentimentos em indivíduos e grupos recorrendo ao culto de personalidade, a patriotismos exacerbados e reivindicações identitárias que os tornem impérvios a quaisquer factos presentes ou passados que ponham em causa a sua leitura do mundo. Consegue-se isso mantendo um estado de polarização permanente da sociedade recorrendo a questões fracturantes como a tensão entre o crioulo e o português, a negação da cabo-verdianidade e a exaltação da africanidade e o contra-senso de apresentar Amílcar Cabral como ídolo tanto do partido único como do regime democrático.

Não interessa se ir por esse caminho traz custos traduzidos em perdas de cerca de quatro anos na aprendizagem das crianças e jovens do país, como foi assinalado no último relatório do Banco Mundial. Não interessa que se continuem a cavar divisões com base em diferendos identitários artificialmente criados num dos únicos países da região com consciência nacional consolidada. Nem que se insista no conflito de princípios e valores antagónicos que leva à esterilidade do debate político e à descredibilização da democracia.

Narrativas legitimadoras de regimes ditatoriais usam a história selectivamente para encontrar factos, eventos e acontecimentos que justifiquem a sua própria existência, o seu papel histórico e a inevitabilidade das suas acções. Também para cinicamente exigir gratidão de todos pelo “serviço” prestado. A história nessa óptica não é realmente o passado que se pode abordar de vários pontos de vista. Também não é o passado que se deve procurar estudar e aprender para melhor construir o futuro, evitando cometer erros anteriores. Na perspectiva dos guardiões das narrativas, o controlo do passado é fundamental para exercer o poder no presente e condicionar o futuro. É evidente que com isso a sociedade fica sujeita a um autêntico colete de forças sem real liberdade de expressão, sem liberdade intelectual, sem pensamento crítico e limitada em criatividade e inovação.

No dia 13 de Janeiro de 1991, nas primeiras eleições livres e plurais realizadas em Cabo Verde, o povo mostrou com uma maioria qualificada de mais de dois terços dos votos a sua disposição de se ver livre desse colete de forças. A força dessa rejeição foi confirmada cinco anos depois nas eleições seguintes com uma maioria qualificada ainda maior, um feito extraordinário só visto com a ANC na África do Sul. O resultado do quebrar das amarras viu-se ao longo da década de noventa em liberdade política e liberdade económica. Consolidou-se a democracia e o país aumentou extraordinariamente o seu potencial de crescimento e atingiu as maiores de taxa de crescimento do PIB de sempre, excluindo a taxa de crescimento de 2022 de recuperação da contracção de mais de 20% devido à Covid-19.

Já nas duas décadas do século XXI constata-se que se perdeu o ímpeto do crescimento com níveis de produtividade baixa, insuficiente desenvolvimento do capital humano e progressiva resistência a reformas essenciais para o aumento da competitividade do país. Não é simples coincidência que esses anos de declínio desses indicadores foram acompanhados do reforço das narrativas do regime anterior que nunca tinham sido totalmente questionadas e por isso continuaram a ser reproduzidas nos sistemas de educação e de cultura do país e promovidas por outras instituições do Estado. O mais complicado é que o partido, o MpD, que foi o portador da vontade expressa em duas maiorias qualificadas para libertar o país do colete de forças, quando regressou ao poder nas eleições de 2016, resolveu nas palavras do primeiro-ministro “ficar em paz com a história”.

Na sequência, desenvolveu-se uma tendência em seguir com uma linha de continuidade nas políticas públicas expressa na proclamação que o meu partido é Cabo Verde e que deixou o país sem os benefícios do confronto democrático de políticas alternativas. Aliás, cada vez mais se nota que os programas dos sucessivos governos orientam-se mais pelas agendas e prioridades das organizações multilaterais como as Nações Unidas e o Banco Mundial e outros parceiros do que por visões diferenciadas de desenvolvimento dos dois grandes partidos. Uma das consequências disso é a crescente dificuldade em resolver os problemas sistémicos que vão surgindo nos diferentes sectores económicos e sociais.

Fazem-se tentativas sem grande sucesso ou com sucesso momentâneo, criam-se passivos financeiros e outros, alguns problemas tornam-se quase intratáveis, mas a tendência é continuar a fazer as mesmas abordagens e a propor as mesmas soluções. Paradoxalmente esperam-se resultados diferentes. Entretanto, há gente que desiste e procura emigrar e outros como os profissionais em áreas críticas procuram tirar o máximo do sistema. Ainda há os que no jogo político usam todos os estratagemas para substituir quem está no poder, para, no fim, fazer praticamente o mesmo.

Claramente que um dos principais ingredientes em falta é o pensamento crítico. Não se aprende nas escolas, não é cultivado nas organizações e não se é recompensado por o manifestar. Em ambientes onde se normalizaram narrativas de pós-verdade é o conformismo que se impõe. E ficar em paz com o que o poder dita é a via para a sobrevivência pessoal. Não é, porém, a via para o desenvolvimento do país e para a realização do direito à felicidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1172 de 15 de Maio de 2024.

sexta-feira, maio 10, 2024

Exigir reparações não desculpabiliza má governação

 A problemática das chamadas reparações a países colonizados ou que sofreram com o tráfico de escravos no Atlântico e com a escravatura ganhou uma outra dimensão e outro vigor com as declarações do presidente Marcelo Rebelo de Sousa nos dias que antecederam as comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril. Na opinião do presidente, Portugal deve assumir a sua responsabilidade por crimes cometidos durante a época colonial e “pagar os custos”.

Reacções imediatas surgiram de todos os quadrantes com sectores da direita de feição nacionalista a condenar essa posição e sectores da esquerda com a sua visão do mundo dividido entre opressores e oprimidos a apoiar. Do governo português veio uma nota de cautela em relação a uma matéria que sempre que é levantada revela-se delicada e complexa. Já nas ex-colónias, pelo menos até agora, com excepção do Brasil e de S. Tomé e Príncipe, a questão não criou muita celeuma.

Internacionalmente a exigência de reparações pela escravatura e o colonialismo tem mobilizado adeptos mesmo nas antigas potências coloniais. Previsivelmente na maioria desses países há também uma rejeição forte de qualquer tipo de pagamento, preferindo em geral ficar por um pedido de desculpas. Entre os países da África e das Caraíbas e da América Latina o engajamento para obter reparações dos países europeus é muito forte e vem ganhando expressão mais abrangente com a criação de fundos como o Global Reparation Fund, estabelecido em 2023 junto da Organização da União Africana.

Também assim como há muita gente a favor desses fundos para compensar pelos extraordinários prejuízos causados, há quem negue pagar por eventuais culpas cometidas em séculos passados e ainda conteste por que só são exigidos aos europeus e não, por exemplo, aos árabes que também traficaram milhões de pessoas. De qualquer forma, já houve casos de promessas de pagamento como é o da Alemanha por genocídio no território da actual Namíbia e a devolução de obras de arte e artefactos, os chamados Bronzes do Benim.

Assim com a experiência de devolução não tem sido a mais positiva, considerando que em certos casos as peças foram vendidas ou desviadas para colecções particulares, também se questiona se a infusão de fundos de reparações irá efectivamente contribuir para a melhoria da vida das populações. De facto, um dos argumentos para exigir pagamentos tem como base a ideia de que o atraso desses países é derivado do colonialismo e da depauperização humana por causa do tráfico de escravos. E certamente que esses males tiveram impacto.

O problema é que, passados mais de sessenta anos após a independência, fica cada vez mais difícil explicar a estagnação económica, as manchas de pobreza extrema e a forte vontade dos jovens em emigrar para a Europa e os Estados Unidos mesmo com risco de perda da própria vida. Num número crescente de países da África a constatação de que o atraso provém fundamentalmente da má governação até já levou que no desespero as populações tenham optado por apoiar golpes militares. O facto de que em vários países onde tal se verificou não ter faltado recursos naturais ricos e montantes consideráveis de ajuda externa corrobora a ideia de que mais transferências de dinheiro em forma de reparação não irão alterar o panorama existente.

Provavelmente terão o mesmo destino que as elites detentoras do poder nesses países têm dado aos recursos existentes ou disponibilizados ao longo de décadas. Ninguém estranhará se forem desviados, delapidados ou mal aplicados e que em consequência não se altere significativamente a situação da população e as perspectivas de crescimento. Aliás, é o que já poderá estar a acontecer com muito dos financiamentos externos em nome das alterações climáticas, transição energética e digital e economia azul.

A avidez com que as elites governativas repetem os discursos e os slogans à volta dessas reformas, que realmente são cruciais para o crescimento e para integração futura dos países na economia mundial, não augura que tenha havido uma real mudança de atitude em relação ao passado. O mais provável é que não se continue a ter preocupação de eficácia na implementação das políticas e que o foco seja colocado mais nos meios do que nos resultados. E sem retornos sustentáveis não há como trazer benefícios duradoiros para a população. Pelo contrário, tende a retirar autonomia às pessoas e deixá-las mais dependentes do Estado. Nesse sentido, aventar a possibilidade de mais meios, via reparações, só ajuda essas elites com a promessa de olear ainda mais a máquina e com renovado sentimento de dependência das pessoas devido à expectativa criada.

No caso de Cabo Verde, com os seus constrangimentos já conhecidos, qualquer incentivo a uma postura de maior dependência como a levantada, pela hipótese de reparações por vitimização no passado, só torna mais difícil escapar dos círculos viciosos em que o país tende a se enredar. Mesmo quando são claramente visíveis como o que vem tornando a questão dos transportes no país quase intratável e cada vez mais custosa a tentação é de neles ficar preso. Perante, por exemplo, as dificuldades da TACV em garantir transporte aéreo nas ilhas, percebe-se que não interessando os custos, a vontade do político é anunciar novas rotas e o mesmo é a do jornalista a perguntar pelos voos para a América e para o Brasil.

Também o Banco Mundial, num relatório sobre desenvolvimento do capital humano apresentado esta segunda-feira, pode estabelecer que no total dos anos de escolaridade “existem quase quatro anos durante as quais as crianças não conseguem adquirir a aprendizagem esperada” e recomendar “um ambiente de aprendizagem com os professores a falarem mais português na sala de aula”. Logo se vão ouvir vozes a apresentar o crioulo como facilitador para aprender o português. Não interessa que, com índice relativamente baixo de capital humano, o país poderá segundo o mesmo relatório estar a perder 1.3 % do crescimento económico futuro.

A mesma postura paradoxal vai-se encontrar quando se está perante uma queda de oito pontos na liberdade de imprensa. O mal maior como apontam os Repórteres sem Fronteiras está na autocensura dos jornalistas e é derivado em parte da posição dominante dos órgãos públicos da comunicação social. Absorvem o grosso das receitas para o sector, captam a maior fatia da publicidade e são mais atractivos para os recursos humanos. Toda a gente sabe que com tal distorção todo o sector é condicionado, acusações de manipulação não vão desaparecer e a qualidade do trabalho jornalístico não melhora. Ninguém, porém, está disposto a alterar a situação inaugurada com a tomada das rádios privadas no dia 7 de Dezembro de 1974.

Entretanto, como vários outros tipos de problemas no país, vai-se continuar a escondê-los e a viver sempre na expectativa de algo - pode ser a promessa das reparações - que vai manter a máquina a funcionar. Nem sempre foi assim. A vivência nas ilhas, remotas e com secas e fomes periódicas, desenvolveu um carácter nas gentes que certamente não era de dependência, mas sim de resiliência e sobrevivência. Algo mudou e, como reconheceu o ex-presidente da república Aristides Pereira, em 1988, as “frentes de trabalho de alta-intensidade de mão-de-obra (FAIMO), eram o local onde se degradava a consciência laboriosa do povo”. Há que evitar a armadilha da vitimização para se recuperar autonomia, caracter e dignidade e poder atingir o desenvolvimento desejado por todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1171 de 8 de Maio de 2024.

sexta-feira, maio 03, 2024

Equívocos não trazem paz inclusiva

 Equívocos diversos continuam a fazer mossa em Cabo Verde. Às vezes são equívocos à volta da história e da memória. Outras vezes derivam da incompreensão que o país é, de facto, insular e de pequena população, pobre de recursos e localização remota. Ainda há os equívocos de competência entre os órgãos de poder exacerbados pelo crescente protagonismo dos actores políticos.

A celebração dos 50 anos da libertação dos presos do campo do Tarrafal hoje dia 1º de Maio é um dos tais acontecimentos envolvidos em equívocos que desembocaram em confrontos entre a presidência da república e o governo: o presidente da república encaminhou os visitantes da sua página do facebook para o esclarecimento do chefe da casa civil da presidência sobre a suposta falta de articulação com o governo publicado nessa rede social. A réplica do ministro da cultura veio logo de seguida no mesmo espaço mediático.

Um primeiro equívoco é o de confundir o acto de libertação dos condenados pelo regime salazarista no dia 1º de Maio de 1974 com o fim de actos ditatoriais em Cabo Verde e também com o encerramento do campo do Tarrafal como prisão para presos políticos. Não foi nem uma coisa nem outra. Actos ditatoriais iriam ser praticados em Cabo Verde por mais uma década e meia, começando em Dezembro de 1974 com a prisão no Tarrafal de 72 pessoas consideradas inimigas do PAIGC. E o encerramento do campo do Tarrafal só se tornou definitivo com o decreto lei nº 3/75 de 19 de Julho de 1975.

É evidente que a confusão só ajuda os que queram manter a narrativa do PAIGC que a sua luta se estendia a Cabo Verde e até tinha prisioneiros num campo de concentração. Uma ideia que é reforçada ao se associar Angola e Guiné-Bissau nas celebrações e a obter a chancela de Portugal. O desencanto posterior dos que lá estiveram presos dá conta de como essa narrativa era, de facto, uma farsa que apenas visava pôr o poder nas mãos dos “melhores filhos do povo”.

Por outro lado, ao conjugar as comemorações do 25 de Abril com a celebração da saída dos presos do campo do Tarrafal quer-se afirmar que nos dois casos era a mesma a motivação de luta contra a ditadura. Na realidade, o 25 de Abril deu origem a um movimento popular que levou Portugal a uma democracia liberal e constitucional. Já em Cabo Verde aconteceu precisamente o contrário. Abriu o caminho para a captura do movimento popular com vista à substituição de uma ditadura por outra.

Na mesma linha de reforço de certo tipo de narrativas, equívocos vão-se sucedendo com a designação oficial do campo do Tarrafal como campo de concentração. Historicamente foi colónia penal desde 1936 até 1954 com 300 presos políticos. Em 1962 foi reaberto como campo de trabalho com ala para presos políticos e outra para presos de delito comum. A designação de campo de concentração só vai aparecer na resolução do conselho de ministros nº 33/2006 de 14 de Agosto de 2006 do governo do PAICV talvez para dar força dramática à narrativa histórica a que está apegada. Sem se saber porquê foi continuada nos governos do MpD a partir de 2016, ultimamente na proposta de candidatura a património mundial.

Não é uma designação universalmente assumida, nomeadamente pelas instituições portuguesas e compreende-se, considerando que a imagem moderna dos campos de concentração é a dos campos nazis durante a segunda guerra mundial. A assunção oficial desses equívocos pelo Estado de Cabo Verde leva a que sejam reproduzidos em documentos oficiais, nas escolas, e na comunicação social. Tudo isso para justificar uma narrativa histórica que pela sua natureza marcadamente ideológica polariza a sociedade e não é inclusiva. Como tal, no passado, levou à ditadura do partido único e excluiu muita gente. No presente, divide a sociedade e agora alimenta fracturas entre órgãos de soberania como se pode constatar do último choque público entre a presidência da república e o governo.

A presidência da república resolveu assumir as celebrações dos cinquenta anos da libertação dos presos políticos como Homenagem do Estado. Mas como escreveu o reconhecido jurista e antigo assessor jurídico de primeiros-ministros e presidentes da república, Dr. Eurico Pinto Monteiro, comentando o esclarecimento do chefe da casa civil da presidência da república no Facebook, a comemoração “deveria ter sido objecto de uma resolução do conselho de ministros que criaria uma comissão de honra presidida pelo presidente da república e uma outra executiva da qual fariam parte a ministra da presidência do conselho de ministros e o chefe da casa civil, além de outras entidades”. Evitar-se-iam “incidentes” como os que aconteceram.

A verdade, porém, é que é muito provável que tais incidentes continuem a verificar-se. Não só por causa da disputa de protagonismo dos actores políticos, mas também devido a um certo “activismo” à volta de temáticas caras a narrativas ideológicas em colisão directa com os princípios e valores constitucionais. É exemplo disso os “incidentes” na sequência da não aprovação pelo parlamento da proposta de comemoração oficial do centenário de Amílcar Cabral e agora esse confronto à volta do campo do Tarrafal. E há outros exemplos preocupantes de uma certa guerrilha institucional que não poupa até mesmo sectores sensíveis como os negócios estrangeiros e as forças armadas.

Claramente que o país não precisa dessas distracções em particular quando a conjuntura internacional é preocupante com o aumento de tensões geoestratégicas e a reconfiguração das relações comerciais, afectando preços, cadeias de abastecimento e cadeias de valor. Procurar soluções para dificuldades nacionais nos transportes e em vários outros sectores-chave para o futuro como energia e água, educação e saúde não se compadece com a manutenção de uma cultura política que ainda se alimenta de narrativas já provadamente exclusivas. E muito menos surtem efeito apelos para se construir vontades para as enfrentar e vencer.

De facto, não se pode continuar a reproduzir fracturas permanentes na sociedade, a aumentar a ineficácia do Estado e a inibir o desenvolvimento forçando o país a se manter num circulo vicioso. Equívocos alimentados pelo Estado e as suas instituições devem ser ultrapassados não só para evitar incidentes como também para restaurar a paz inclusiva à cidadania. Há que também deixar espaço livre para o exercício do espírito crítico tão crucial para se encontrar os caminhos que podem levar à prosperidade, em Liberdade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1170 de 1 de Maio de 2024.