A problemática das chamadas reparações a países colonizados ou que sofreram com o tráfico de escravos no Atlântico e com a escravatura ganhou uma outra dimensão e outro vigor com as declarações do presidente Marcelo Rebelo de Sousa nos dias que antecederam as comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril. Na opinião do presidente, Portugal deve assumir a sua responsabilidade por crimes cometidos durante a época colonial e “pagar os custos”.
Reacções imediatas surgiram de todos os quadrantes com sectores da direita de feição nacionalista a condenar essa posição e sectores da esquerda com a sua visão do mundo dividido entre opressores e oprimidos a apoiar. Do governo português veio uma nota de cautela em relação a uma matéria que sempre que é levantada revela-se delicada e complexa. Já nas ex-colónias, pelo menos até agora, com excepção do Brasil e de S. Tomé e Príncipe, a questão não criou muita celeuma.
Internacionalmente a exigência de reparações pela escravatura e o colonialismo tem mobilizado adeptos mesmo nas antigas potências coloniais. Previsivelmente na maioria desses países há também uma rejeição forte de qualquer tipo de pagamento, preferindo em geral ficar por um pedido de desculpas. Entre os países da África e das Caraíbas e da América Latina o engajamento para obter reparações dos países europeus é muito forte e vem ganhando expressão mais abrangente com a criação de fundos como o Global Reparation Fund, estabelecido em 2023 junto da Organização da União Africana.
Também assim como há muita gente a favor desses fundos para compensar pelos extraordinários prejuízos causados, há quem negue pagar por eventuais culpas cometidas em séculos passados e ainda conteste por que só são exigidos aos europeus e não, por exemplo, aos árabes que também traficaram milhões de pessoas. De qualquer forma, já houve casos de promessas de pagamento como é o da Alemanha por genocídio no território da actual Namíbia e a devolução de obras de arte e artefactos, os chamados Bronzes do Benim.
Assim com a experiência de devolução não tem sido a mais positiva, considerando que em certos casos as peças foram vendidas ou desviadas para colecções particulares, também se questiona se a infusão de fundos de reparações irá efectivamente contribuir para a melhoria da vida das populações. De facto, um dos argumentos para exigir pagamentos tem como base a ideia de que o atraso desses países é derivado do colonialismo e da depauperização humana por causa do tráfico de escravos. E certamente que esses males tiveram impacto.
O problema é que, passados mais de sessenta anos após a independência, fica cada vez mais difícil explicar a estagnação económica, as manchas de pobreza extrema e a forte vontade dos jovens em emigrar para a Europa e os Estados Unidos mesmo com risco de perda da própria vida. Num número crescente de países da África a constatação de que o atraso provém fundamentalmente da má governação até já levou que no desespero as populações tenham optado por apoiar golpes militares. O facto de que em vários países onde tal se verificou não ter faltado recursos naturais ricos e montantes consideráveis de ajuda externa corrobora a ideia de que mais transferências de dinheiro em forma de reparação não irão alterar o panorama existente.
Provavelmente terão o mesmo destino que as elites detentoras do poder nesses países têm dado aos recursos existentes ou disponibilizados ao longo de décadas. Ninguém estranhará se forem desviados, delapidados ou mal aplicados e que em consequência não se altere significativamente a situação da população e as perspectivas de crescimento. Aliás, é o que já poderá estar a acontecer com muito dos financiamentos externos em nome das alterações climáticas, transição energética e digital e economia azul.
A avidez com que as elites governativas repetem os discursos e os slogans à volta dessas reformas, que realmente são cruciais para o crescimento e para integração futura dos países na economia mundial, não augura que tenha havido uma real mudança de atitude em relação ao passado. O mais provável é que não se continue a ter preocupação de eficácia na implementação das políticas e que o foco seja colocado mais nos meios do que nos resultados. E sem retornos sustentáveis não há como trazer benefícios duradoiros para a população. Pelo contrário, tende a retirar autonomia às pessoas e deixá-las mais dependentes do Estado. Nesse sentido, aventar a possibilidade de mais meios, via reparações, só ajuda essas elites com a promessa de olear ainda mais a máquina e com renovado sentimento de dependência das pessoas devido à expectativa criada.
No caso de Cabo Verde, com os seus constrangimentos já conhecidos, qualquer incentivo a uma postura de maior dependência como a levantada, pela hipótese de reparações por vitimização no passado, só torna mais difícil escapar dos círculos viciosos em que o país tende a se enredar. Mesmo quando são claramente visíveis como o que vem tornando a questão dos transportes no país quase intratável e cada vez mais custosa a tentação é de neles ficar preso. Perante, por exemplo, as dificuldades da TACV em garantir transporte aéreo nas ilhas, percebe-se que não interessando os custos, a vontade do político é anunciar novas rotas e o mesmo é a do jornalista a perguntar pelos voos para a América e para o Brasil.
Também o Banco Mundial, num relatório sobre desenvolvimento do capital humano apresentado esta segunda-feira, pode estabelecer que no total dos anos de escolaridade “existem quase quatro anos durante as quais as crianças não conseguem adquirir a aprendizagem esperada” e recomendar “um ambiente de aprendizagem com os professores a falarem mais português na sala de aula”. Logo se vão ouvir vozes a apresentar o crioulo como facilitador para aprender o português. Não interessa que, com índice relativamente baixo de capital humano, o país poderá segundo o mesmo relatório estar a perder 1.3 % do crescimento económico futuro.
A mesma postura paradoxal vai-se encontrar quando se está perante uma queda de oito pontos na liberdade de imprensa. O mal maior como apontam os Repórteres sem Fronteiras está na autocensura dos jornalistas e é derivado em parte da posição dominante dos órgãos públicos da comunicação social. Absorvem o grosso das receitas para o sector, captam a maior fatia da publicidade e são mais atractivos para os recursos humanos. Toda a gente sabe que com tal distorção todo o sector é condicionado, acusações de manipulação não vão desaparecer e a qualidade do trabalho jornalístico não melhora. Ninguém, porém, está disposto a alterar a situação inaugurada com a tomada das rádios privadas no dia 7 de Dezembro de 1974.
Entretanto, como vários outros tipos de problemas no país, vai-se continuar a escondê-los e a viver sempre na expectativa de algo - pode ser a promessa das reparações - que vai manter a máquina a funcionar. Nem sempre foi assim. A vivência nas ilhas, remotas e com secas e fomes periódicas, desenvolveu um carácter nas gentes que certamente não era de dependência, mas sim de resiliência e sobrevivência. Algo mudou e, como reconheceu o ex-presidente da república Aristides Pereira, em 1988, as “frentes de trabalho de alta-intensidade de mão-de-obra (FAIMO), eram o local onde se degradava a consciência laboriosa do povo”. Há que evitar a armadilha da vitimização para se recuperar autonomia, caracter e dignidade e poder atingir o desenvolvimento desejado por todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1171 de 8 de Maio de 2024.
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