segunda-feira, dezembro 16, 2024

Evitar ser governado pelos piores

 

Os resultados das eleições autárquicas mudaram as expectativas dos actores políticas e da sociedade quanto ao futuro próximo e ao ciclo eleitoral já iniciado. Perante a magnitude da vitória do Paicv na Praia e o nas restantes autarquias (15 em 22) os cerca de 15 meses que separam as legislativas das autárquicas quase que colapsaram ligando imediatamente as duas eleições. Para as lideranças, para os militantes e para a base eleitoral dos dois maiores partidos é como se o futuro passasse a ser agora. Euforia de um lado e pessimismo de outro.

A reacção do líder no Paicv tendo em conta a dimensão da vitória na Praia foi cautelosa patrocinando a ideia de se escolher no congresso próximo o melhor candidato para o futuro primeiro-ministro nas legislativas e procurando não se impor-se como líder incontornável. O alinhamento pode não lhe ser favorável, mas diz privilegiar a unidade do partido em antecipação das eleições. Quanto ao MpD, o partido do governo e o derrotado nas eleições, a ausência de pronunciamento do líder do partido e primeiro-ministro causa alguma perplexidade.

De facto, não é compreensível o tempo tomado para reunir órgãos do partido e ter uma posição pública para o país e os militantes e simpatizantes. Deixa um vazio em termos de decisão e orientação para o futuro que contribui para, na mente e na atitude das pessoas, se juntar duas eleições, quando na realidade estão separadas por mais de um ano. E o país precisa funcionar normalmente e não se deixar adiar por se ver em estado de campanha eleitoral permanente meses a fio.

Na sociedade o mais normal é que depois da surpresa inicial, perante a inesperada mudança na correlação de forças, pelo menos em certos segmentos se acabe eventualmente por observar posicionamentos de conveniência à medida que a data das eleições se aproximar, criando alguma agitação social e política. Greves e reivindicações diversas poderão proliferar enquanto diferentes classes sociais e grupos corporativos procuram explorar fraquezas para impor novas condições ou garantir que promessas feitas sejam cumpridas antes do fim do ciclo político. Agrava-se a situação se não se estabelecer um ambiente político que permita o país funcionar sem polarização desnecessária e sem descredibilizar as instituições com suspeições avulsas de se estar a privilegiar uma ou outra força política.

Já o posicionamento do presidente da república logo a seguir à divulgação dos resultados autárquicos deixa entender que vai ser mais actuante nos próximos tempos. Considerando o que tem sido a relação entre os órgãos de soberania, o mais provável é que dessa interacção não resulte um ambiente de tranquilidade institucional. Um exemplo é a insistência do PR na questão dos órgãos externos por nomear com foco na legitimidade dos actuais titulares com mandato terminado.

Deixa transparecer outras motivações, designadamente o desacordo entre a presidência da república e o tribunal de contas quanto às conclusões do relatório de auditoria financeira aos serviços da Casa Civil, que retiram eficácia à sua intervenção. Também no discurso do início do ano judicial tinha apresentado os mesmos argumentos quando a lei é clara que dentro do princípio da continuidade do Estado quem exercer cargos públicos deve manter-se em funções até a tomada de posse do seu substituto. Deslegitimar cargos públicos não é a melhor via para garantir o regular funcionamento das instituições.

Nas democracias as eleições são absolutamente necessárias para renovar mandatos, escolher governantes e legitimar o exercício do poder. Para serem funcionais e cumprir com as promessas de liberdade, segurança e prosperidade não se pode estar permanentemente em estado de campanha eleitoral com toda a polarização que isso acarreta. Nem tão pouco se deve criar um ambiente de guerrilha institucional que alimenta o cinismo em relação à democracia e à política e desmobiliza as forças da solidariedade baseada no sentido de pertença a uma comunidade livre e igualitária. A crise actual das democracias provém em boa parte de não se conseguir inflectir a tendência para o individualismo, o narcisismo e o relativismo, que põe em causa o princípios e valores liberais, aumenta a descrença nas instituições e desincentiva a busca da verdade e do conhecimento, mas que expõe as pessoas à tentação de se reverem em demagogos, que potenciam o seu medo e ressentimento para ganhar eleições.

Não ajuda o facto que no mundo de hoje, cada vez mais, ganha eleições e poder quem traça uma linha directa para a vitória, sem olhar aos meios e sem respeitar as regras do jogo. Com o repetido sucesso de alguns, há um forte incentivo no sentido de todos os actores políticos fazerem o mesmo, o que a acontecer levaria ao fim da democracia. Impedir que se vá por esse caminho é fundamental e devia ser a responsabilidade primeira de governantes e lideranças partidárias. Infelizmente muitas vezes não é o caso e, pelo contrário, são os próprios que promovem essa deriva na luta pelo poder a todo o custo. Por isso é que é fundamental a sociedade insistir no cumprimento das regras e procedimentos democráticos e com essa pressão forçar os titulares dos cargos políticos e os partidos políticos a cumprirem com as suas competências e a se mostrarem responsáveis pelo equilíbrio no funcionamento da democracia, não obstante as suas imperfeições.

Razão pela qual também é preciso combater o cinismo político promovido por supostos independentes e críticos da democracia a partir dos média institucionais e também das redes sociais. O cinismo desarma os cidadãos face às derivas autocráticas e iliberais que quando se tornem reconhecíveis é demasiado tarde. Da mesma forma é preciso contrariar a tendência para a tribalização política que acompanha a liderança demagógica e populista. Ao capturar partidos tradicionais o líder reduz os militantes a seguidores do chefe e põe a conquista do poder como objectivo único, deixando o partido de servir efectivamente a sociedade com visão, conhecimento e competência executiva.

Aliás, uma das marcas da ascensão ao poder de demagogos e populistas é a incompetência que demonstram na condução dos assuntos do Estado, às vezes com consequências catastróficas para o país. Hoje fala-se da caquistocracia ou Kakistocracia, o sistema de governo pelos piores, menos qualificados e/ou mais sem escrúpulos, que se está a espalhar pelo mundo. Até a revista The Economist já propôs a expressão caquistocracia como palavra do ano 2024. E assim é porque infelizmente pelos resultados de algumas eleições recentes nota-se que na maior parte dos casos não é o partido mais capaz ou seguidor das regras democráticas que vence.

Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de cair nessa tentação. Para isso é fundamental que todos sejam plenos cidadãos e, em caso de militância num partido, serem engajados e participativos e não simples seguidores que prestam vassalagem ao chefe em troca de migalhas do poder. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1202 de 11 de Dezembro de 2024.

segunda-feira, dezembro 02, 2024

É crucial fazer o melhor uso do financiamento climático

 Terminou em Baku, no Azerbaijão, a conferência sobre mudança climática (COP25) com decisões sobre o financiamento de projectos para adaptações relacionadas com a transição energética e para mitigar os efeitos das alterações climáticas, embora sem satisfazer plenamente as expectativas. Pretendia-se chegar a um compromisso de financiamento de 1,3 milhões de milhões (trilion) de dólares até 2035, mas ficou-se apenas por 300 mil milhões (billions) de dólares, a serem disponibilizados pelos países mais desenvolvidos. Desde a conferência de Paris de 2015 e das suas grandes promessas, o mundo mudou muito e, com o regresso de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, o cenário pode ainda piorar, tornando mais difícil conseguir os consensos necessários para as cumprir.

Entretanto, o facto de que os extremos do clima têm, nos últimos anos, tornado incontornável a realidade das mudanças a nível global constitui um incentivo à inovação na mobilização de financiamento. Nesse sentido, procura-se com maior afinco encontrar fontes diversificadas, tanto de natureza pública como privada, e tenta-se explorar fundos bilaterais e multilaterais, assim como recursos alternativos de capital. As necessidades são crescentes, tanto nos países pobres, que, proporcionalmente, mais sofrem com as consequências das alterações climáticas, sejam elas derivadas de furacões, secas, cheias ou aumento do nível médio das águas do mar, como nos países de crescimento médio, que têm de acelerar a transição energética.

A instituição de uma taxa de carbono é uma das vias inovadoras que tem sido explorada, ainda que paulatinamente, tendo como alvo as indústrias poluentes, a indústria do plástico e as emissões de gases provenientes de barcos e aviões alimentados por combustíveis fósseis.

A par disso, já há algum tempo, têm sido consideradas as chamadas taxas de solidariedade como uma forma de preencher o défice deixado pela diminuição de fundos públicos, em particular dos países ricos. Crises recentes nesses países, ao forçarem o redireccionamento de recursos para responder a necessidades urgentes de defesa, melhorias nos serviços de saúde e investimento em infra-estruturas, limitaram a disponibilidade para outras causas. Em compensação, progressivamente, tem-se introduzido taxas de carbono para passageiros transportados por via aérea e marítima, explorando-se também a possibilidade de taxar fluxos financeiros, criptomoedas e grandes fortunas. A ideia, ao que parece, é chegar ao COP30, em Novembro de 2025, no Brasil, com um número considerável de países que adoptaram alternativas de financiamento suportadas pela taxa de carbono.

São 21 os países, segundo o jornal Financial Times de 20 de Novembro, que actualmente já avançaram com taxas de solidariedade, entre os quais Portugal e Suécia, que incidem sobre passageiros de linhas aéreas e marítimas. São evidentes as vantagens para o combate às mudanças climáticas resultantes da arrecadação de receitas, que, segundo estimativas desse jornal, em termos mundiais, poderão chegar a 164 mil milhões (billions) de dólares anuais. Cabo Verde, que, a partir da aprovação na semana passada da taxa de carbono, passou a integrar esse grupo de países, também poderá beneficiar dessas vantagens. Com uma taxa de 550 escudos (5 euros), prevê-se arrecadar mais de um milhão de contos, que, de acordo com o ministro das Finanças, em declarações no parlamento, serão utilizados exclusivamente para financiar acções de mitigação e adaptação aos efeitos das alterações climáticas.

Há, porém, quem aponte desvantagens, considerando que essas taxas constituem um custo extra que sobrecarrega os viajantes em geral, particularmente os de menores recursos. Pode também interferir no fluxo turístico. Nos países com um volume estável de passageiros, os efeitos serão mínimos; mas, noutros, onde o turismo ainda está por consolidar-se e tem maior peso na economia, não se pode descurar eventuais impactos negativos na competitividade do destino. Para que as vantagens sejam reais, é fundamental que as acções de mitigação e adaptação às alterações climáticas sejam bem definidas, estabelecendo prioridades, garantindo sustentabilidade e articulando pequenos projectos com uma estratégia nacional e uma visão de futuro.

De facto, é essencial focar na construção de um país mais resiliente face aos extremos climáticos e mais preparado para beneficiar da transição energética em termos de crescimento e competitividade. O grande esforço de mobilização de fundos que está a ser feito neste momento não deve ser encarado como mais um dos exercícios feitos no passado para promover o crescimento económico global. É sabido como esses esforços ficaram aquém do pretendido, resultando em desperdícios extraordinários de recursos e na persistência de grandes manchas de pobreza em várias regiões do globo.

Faz sentido que hoje se procure uma maior mobilização de recursos financeiros, mas impõe-se que esta seja acompanhada de outras medidas. Realmente é de não repetir práticas que não resultaram em instituições inclusivas. Nem de manter a mesma cultura de governação que, em muitos países, levou a fracos crescimentos e ao aumento da desigualdade. Deve-se também rever a governação multilateral, que frequentemente impõe regras sem dar a devida atenção aos resultados, às especificidades locais e aos seus anseios. O combate à vitimização, que enfraquece o esforço global, e à desresponsabilização, que impede a cooperação necessária, é essencial para ultrapassar o momento crítico que enfrentamos. Está em jogo o futuro global perante ameaças potencialmente existenciais. Não há muita margem para fracassos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1200 de 27 de Novembro de 2024.