segunda-feira, abril 22, 2019

Alternância por concretizar

No próximo dia 20 de Abril completam-se três anos da inauguração da actual legislatura dominada pelo MpD. A vitória nas eleições de 16 de Março negara um quarto mandato ao PAICV abrindo o caminho para uma alternância na condução do país.
A dimensão da derrota eleitoral do PAICV, que ficou reduzido a pouco mais do que terço dos deputados, pareceu sugerir que o eleitorado quereria uma mudança de políticas mais do que uma mudança de governo. E compreende-se: a situação do país vinha-se deteriorando em crescimento, emprego e segurança enquanto se tornava mais notória a vulnerabilidade da população rural e acentuava-se a desesperança numa parte significativa da juventude. A promessa do turismo ainda ficava aquém do desejado tanto pela relativa baixa da qualidade dos postos de trabalho criados como também pelo seu fraco efeito de arrastamento na economia nacional. Quis-se pois alternância para mudar este estado coisas.
É um facto que as políticas públicas aplicadas na década anterior tinham desembocado numa estagnação económica que se arrastava há vários anos com óbvio impacto no emprego, no rendimento das pessoas e nas perspectivas futuras das pessoas e em particular dos jovens. A par disso, via-se como o Estado se tinha endividado ultrapassando então mais de 125% do PIB enquanto empresas públicas como a TACV tornavam-se num risco crescente para o país. Também se constatava que a trajectória centralista do Estado se mantinha ou tornava-se pior criando nas diferentes ilhas a sensação de estarem a ficar para trás. Por seu lado, a administração pública, na sua ineficiência e resistência a reformas, continuava a ser um obstáculo à melhoria do ambiente de negócio e um travão no esforço para tornar o país mais competitivo. Juntam-se a isso as dificuldades crescentes da população jovem saída dos liceus e universidades não só em encontrar emprego como também a adequar-se à oferta existente de trabalho. Não espanta pois que perante um quadro tão difícil a votação nas urnas não clamasse por uma outra governação e outras políticas para o país.
O problema é o que acontece depois de ganhar o poder. O desafio logo à partida é como proceder para que ao mesmo que se faz a gestão diária se esteja preparado para fazer as alterações de políticas que abram caminho ao cumprimento das promessas eleitorais. Para isso conviria não se deixar afogar nos problemas que são sempre maiores do que parecem quando se está na oposição e nem deixar-se levar pela tentação de confrontar o adversário como se as eleições não tivessem sido realizadas e ganhas. Mas não é o que normalmente acontece nessas circunstâncias e o resultado é a continuação por muito tempo da crispação política típica dos tempos eleitorais e a perda de ímpeto para a mudança que isso acarreta com claro prejuízo para se fazer as reformas que se impõem. Para um país como Cabo Verde que de há muito que vem “esticando” a corda de um modelo de desenvolvimento claramente gasto e obsoleto, os resultados podem ser desastrosos porque há muito coisa inadiável a ser feita. E no meio de confrontos políticos, que são simples repetição de diferenças do passado, os problemas do presente não são devidamente debatidos. Como há desconfiança não se criam vontades. E se não houver vontade nem debate lúcido dificilmente os problemas podem ser equacionados e resolvidos. O que se passou com a lei da regionalização na semana passada no parlamento é ilustrativo a esse respeito.
Ninguém fica tranquilo se perante as dificuldades a abordagem adoptada continua essencialmente a ser “mais do mesmo” e se conveniências político-partidárias continuam a perturbar o reconhecimento dos problemas e a procura de soluções. A verdade é que faz confusão às pessoas, por exemplo, notar que afinal crescimento não está a trazer mais emprego, que mais educação não está a criar mais oportunidades de trabalho para os jovens, e que o país continua grandemente vulnerável às secas. Também incomoda verificar que apesar de grandes investimentos no Estado persistem as queixas da sua ineficiência e da sua insensibilidade no tratamento dos utentes e operadores económicos. No mesmo sentido vê-se com alguma apreensão que soluções encontradas em certos sectores embora contribuam para estancar sangrias de recursos públicos e diminuir défices orçamentais deixam espaços vazios que as pessoas e a economia no seu todo pagam em custos mais elevados, em acesso limitado e baixa qualidade de serviço. Globalmente não há percepção que se está perante uma abordagem nova sem as amarras das políticas no passado que falharam em proporcionar mais rendimento e mais oportunidades de uma via melhor. E isso não é bom para as pessoas nem para a democracia.
A democracia corre o risco de entrar numa crise profunda se se desenvolver a percepção geral que todos os partidos são iguais, que todos os governos fazem o mesmo e que a alternância política é uma farsa porque todos vão para o governo para se servirem e não para servir o interesse geral. Como já alguém disse, a democracia não garante bons governos mas assegura que maus governos podem ser mudados e o país reorientado com outras políticas. A história demonstra que se isso não acontece e o sistema partidário falha em assegurar verdadeira alternância corre-se o risco de descredibilização das instituições e de toda a classe política. O forte desgaste sofrido pelas instituições nos últimos três anos a começar pelo parlamento mas não deixando incólume nenhum outro órgão de soberania ou instituição pública tem como base essa frustração com alternâncias que não se materializam e levam ao descrédito do regime.
No próximo ano de 2020 começa o novo ciclo eleitoral com eleições autárquicas seguidas de legislativas e presidenciais que irá prolongar-se para a segunda metade do ano 2021. Tendo como referência o que se passa noutras democracias pode-se dizer que provavelmente vai-se ter eleições como nunca antes aconteceu no que respeita aos protagonistas, às tácticas utilizadas e ao papel a desempenhar pelas redes sociais nas campanhas eleitorais. E como outras experiências democráticas já demonstraram nenhum partido está seguro de manter a sua importância e o seu peso eleitoral por mais legado histórico que reivindicar ou maior número de militantes que reclamar. Se persistir a descrença na incapacidade dos actuais actores em fornecer alternativas credíveis pode-se ter que lidar com a ascendência de partidos extremistas e eventual aparecimento movimentos sociais inorgânicos. A verificar-se a fragmentação do campo político cabo-verdiano neste molde já com exemplos em outras latitudes seria um desastre de total responsabilidade dos dois grandes partidos cabo-verdianos. Desempenhar com sentido de estado e respeito pelo interesse geral o papel de partido de situação e o de partido de oposição no regime democrático é fundamental para o funcionamento, credibilidade e eficácia da democracia. Infelizmente, há demasiados exemplos que isso não tem sido a norma, em particular nos últimos anos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 907 de 17 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 15, 2019

Avisos à navegação

Cabo Verde no seu afã diário de sobrevivência e a sonhar com o desenvolvimento de vez em quando depara-se com factos, situações e constatações que deviam obrigar a uma pausa seguida de reflexão mais aprofundada.
O crescimento de 5,5% do PIB sem aparente efeito nos níveis de desemprego que, de acordo com o INE, permaneceram de 2017 para 2018 em 12,2% bem podia ser um dos tais momentos para reavaliações colectivas das políticas públicas. Infelizmente, como já tinha acontecido com a seca de 2017 não foi desta que a classe política se muniu da serenidade necessária para analisar as razões por detrás do aparente desfasamento entre crescimento e emprego e das vulnerabilidades que persistem no país, em particular no mundo rural. Pelo contrário, foi pretexto para mais um “round” de picardia política que nada acrescentou à preocupação geral sobre como criar empregos sustentáveis e com qualidade. A verdade é que, apesar dos tropeções na realidade que de tempos em tempos acontecem, é grande a tentação para se continuar no ilusionismo das promessas várias vezes repetidas e dos milhões que vêm de fora para resolver os problemas. O jogo do poder não deixa que a classe política desista do discurso populista e demagógico. A sociedade civil não mostra autonomia, vontade ou capacidade para forçar a saída deste paradigma de existência.
Assim, por exemplo, face à seca de 2017 que continuou em 2018 e deixou bem claras as vulnerabilidades do mundo rural pergunta-se o que é que mudou. Não parece que se tenha feito um balanço das políticas em direcção ao sector da agricultura e pecuária que há pouco se centravam nas barragens, na mobilização de água e no agronegócio. A seca e a pobreza revelada da população rural pôs tudo a nu mas há quem ainda insista que eram políticas correctas e que os investimentos realizados justificavam-se. Os resultados negativos indisfarçáveis em situação de crise não contribuem para alterar minimamente essa crença. Tão pouco dão sinal de mudar no essencial a abordagem da situação no mundo rural. Paradoxalmente continua-se a acreditar que é possível agir para ao mesmo tempo fixar as populações, criar empregos e aumentar a produtividade da economia rural. Agora quer-se mobilizar água recorrendo à dessalinização e focar estudos e projectos na constituição de cadeias de valor e no acesso aos mercados das ilhas turísticas. O puzzle a construir para que tudo isso dê certo ainda deve incluir transportes eficientes, regulares e a custos competitivos para além do devido condicionamento e a certificação dos produtos. Claro que o problema central de escala que se coloca em tudo o que diz respeito à produção no país não deixará de existir e afectar a competitividade de produtos. Entrementes, o que parece incompatível com a produção bem-sucedida para nichos de mercado, para o aumento da produtividade e a melhoria do rendimento no campo é manter o actual nível populacional ocupado na agricultura e até elevá-lo com os esforços de fixação e criação de empregos.
A história do desenvolvimento de diferentes países revela claramente a evolução da economia a partir da agricultura, pecuária e indústrias extractivas do sector primário para o sector secundário com a industrialização e posteriormente para o sector terciário dos serviços. Uma evolução que se suportou no aumento da produtividade e que foi acompanhada de deslocação da mão de obra primeiro para indústria e progressivamente para os serviços e que resultou na emergência de uma classe média e na diminuição geral da pobreza. Actualmente com a economia digital, o estabelecimento de cadeias de valores globais e o comércio livre entre as nações o potencial para expansão parece não ter limite e imparável a tendência para a concentração das pessoas nas cidades e nas grandes áreas metropolitanas. Claro que face a essas tendências há um esforço para se evitar o agravamento excessivo das desigualdades territoriais mas numa perspectiva dinâmica com alargamento do leque de ofertas locais sem comprometer as necessidades de mão-de-obra dos sectores em rápido crescimento. Em Cabo Verde parece não ser esse o entendimento. Aparentemente pretendeu-se contornar a fase da industrialização e desembocar diretamente nos serviços como, aliás, aconteceu num grande número de países africanos. O resultado vê-se na agricultura ainda basicamente de subsistência, numa grande população rural vulnerável e crescente população nas periferias das cidades ocupadas em atividades informais de baixa produtividade e de fraca capacidade de criação de emprego. Mesmo a parte formal dos serviços não tem suficiente dinâmica para criação massiva de empregos que historicamente a industrialização demonstrou ter.
Daí as persistentes e elevadas taxas de desemprego em África contrariamente ao que se verifica na Ásia que escolheu industrializar-se para exportação. Uma outra consequência pode ser vista no rendimento per capita desses países. Maurícias tem três vezes o rendimento per capita de Cabo Verde. Diferenças similares ou mais pronunciadas existem entre países asiáticos e africanos. E assim é porque enquanto Maurícias industrializava-se para exportação nos anos 70 e 80, Cabo Verde submetia-se a políticas que viravam o país para dentro, negava o investimento directo estrangeiro e hostilizava o sector privado nacional. As tentativas de industrialização dos anos noventa vieram relativamente tarde e não tiveram seguimento na década seguinte. Na África existe agora uma forte motivação para se industrializar como se pode ver com particular destaque na Etiópia, Quénia e Ruanda. Percebe-se finalmente que dificilmente se será bem-sucedido na luta contra a pobreza e na construção de um futuro de progresso sem indústrias competitivas. O sucesso da China está aí para demonstrar qual deve ser o caminho.
Pode-se pois concluir que na ausência de uma política de industrialização dificilmente um país ou uma economia consegue criar empregos em número e qualidade para baixar significativamente o desemprego. E certamente não é pela via do auto emprego, fazendo uso de receitas diversas de empreendedorismo e sonhando com start ups que se vai chegar lá. Sucessos por essas vias exigem na maior parte das vezes um ambiente de negócios favorável, um nível elevado de formalização da economia e existência de mercados estruturados que à partida não se pode assumir. Tem que se construir. Mesmo a formação profissional e um sistema de estágios massificado para trazer resultados positivos têm que se enquadrar dentro de um círculo virtuoso onde densidade empresarial, cultura industrial e de serviços e organização das profissões são ingredientes essenciais. Claro que para um país como Cabo Verde de pequena população e espalhada por nove ilhas a oportunidade que a emergência da sociedade do conhecimento e da economia digital podia oferecer devia ter sido logo identificada. Entre outras vantagens permitia contornar constrangimentos como localização geográfica e dispersão de recursos humanos e potenciar conhecimento e habilitações técnicas individuais. Mas isso só seria possível se se tivesse assumido realmente uma aposta séria na qualidade da formação e do conhecimento do cabo-verdiano. Investiu-se na massificação do ensino em detrimento da qualidade.
O resultado é que sem industrialização e com um sector de serviços ainda pouco dinâmico não estranha que a habilitação média do jovem desempregado seja o 9º ano de escolaridade. O aviso que isso iria acontecer vem de longe, como, aliás, todos os outros avisos que apontavam para falhas e incongruências de políticas públicas e que foram ignorados. Está-se perante mais um outro alerta de que o crescimento económico pode não estar a traduzir-se em mais emprego. O futuro dirá se será desta vez que o alerta será ouvido e que serenamente se irá debater e agir para que finalmente o desemprego deixe de ser estrutural e empregos cheguem a todos.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 906 de 10 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 08, 2019

Incongruências na lei da regionalização

A Lei da Regionalização continua em discussão na Assembleia Nacional. Aprovada na generalidade em Novembro de 2018 foi retomada em sede de discussão na especialidade na última reunião plenária de Março findo. Os trabalhos no parlamento foram interrompidos na sequência da não aprovação do artigo 6º sobre os órgãos da Região que exigia uma maioria qualificada de dois terços dos votos. Criou-se um impasse ao não se chegar a consenso em como proceder a partir da queda de um artigo central da lei no que respeita à organização das regiões. Segundo a RTC, o governo na pessoa do ministro dos Assuntos Parlamentares prometeu rever a redacção do artigo sexto “chumbado” e trazer de volta o diploma em Abril. Uma solução inédita e duvidosa, mas não muito diferente do que se tem visto no processo de legislar sobre autarquias supramunicipais, carregado como está de incongruências várias.
Começou-se a querer legislar para as regiões há cerca de dez anos atrás. O problema para quem tinha a iniciativa foi sempre conseguir os votos das outras forças políticas e a maioria qualificada necessária para passar a lei ao mesmo tempo que assegurava que ficava com todos os louros de ter levado avante a lei e os outros com o estigma de terem sido contra. Em 2010, na impossibilidade de convencer a oposição a aprovar uma lei de criação de regiões, o então governo de José Maria Neves fez aprovar o regime de criação de regiões no quadro de uma lei da descentralização aprovada por maioria absoluta e abstenção e voto contra das outras forças. E ficaram com os louros. Agora com o governo de Ulisses Correia e Silva avança-se com a lei das regiões, mas falta chegar a um acordo com as outras forças políticas em boa parte porque há uma disputa para saber quem tem o mérito da iniciativa e no processo vai-se fazendo acusações ou insinuando de que os outros são contra. Apesar de não existirem estudos que comprovam um sentimento maioritário da população a favor da regionalização, nem evidência que seja a única via para combater com eficiência e eficácia a excessiva centralização do país, todos os partidos agem nessa matéria como se tratasse do grande prémio eleitoral a conquistar a todo o custo.
Daí as múltiplas incongruências que se pode vislumbrar nas propostas apresentadas. A primeira que faz de cada ilha uma região, ou seja, uma autarquia supramunicipal, confronta-se com a dificuldade de nas ilhas com um único município o território e a população das duas categorias de autarquias coincidirem. Aparentemente não se está a criar regiões para ganhar escala, aumentar os recursos materiais e humanos e elevar o nível de actuação. Uma segunda incongruência é criar excepção à regra de região-ilha que tem como base o reconhecimento do percurso histórico e cultural único de cada uma delas – e por isso força a criação de regiões mesmo em ilhas como Brava e Maio com pequena população e fracos recursos – para depois criar duas regiões em Santiago com o simples argumento do peso demográfico da ilha. Uma terceira incongruência que é consequência da segunda vê-se na quebra do princípio da igualdade na representação das ilhas em instâncias de decisão sobre a utilização de recursos do Estado como parece consagrar a Constituição de 1992 ao atribuir ao Conselho dos Assuntos Regionais, onde as ilhas são igualmente representadas, competências na emissão de pareceres sobre o plano nacional de desenvolvimento regional e os planos regionais. Depois da revisão constitucional de 1999 e a criação do Conselho Económico e Social, a lei do Conselho de Desenvolvimento Regional aprovada em Julho de 2014 consagrou as mesmas competências e reafirmou o princípio da igualdade de representação das ilhas. Uma quinta incongruência é fazer da Praia a sede da região Santiago Sul e nessa condição centro gerador de uma identidade da região quando constitucionalmente se lhe dá um estatuto administrativo especial para se assumir em pleno como Capital da Nação.
Finalmente encontra-se uma incongruência de monta entre a intenção de fazer da regionalização o instrumento para criação de riqueza com valorização das especificidades próprias da ilha, potenciação de recursos e desenvolvimento de vantagens comparativas e competitivas e o discurso com enfase na redistribuição dos recursos do Estado pelas ilhas que tem acompanhado toda a agitação política sobre a matéria. Diz-se que se quer as ilhas mais autónomas, dinâmicas e voltadas para o futuro, mas de algum modo continua-se a encorajar e a alimentar reflexos nocivos já profundos nas pessoas e na sociedade cabo-verdiana produzidos pelo reciclar de dádivas vindas directamente do exterior ou por intermediação do poder central.
Os ganhos político-eleitorais, com vantagem para quem governa, que os partidos irão querer obter logo à cabeça poderá ser o maior obstáculo à substituição nas ilhas da narrativa de ressentimento de quem até agora se se considerou discriminado pela narrativa de possibilidade que o empoderamento das regiões deverá criar. Eleitoralismo e dependência ficaram ligados por demasiado tempo. Custa romper a ligação existente e construir outros laços entre o Poder e a sociedade no pressuposto de que é o sucesso na promoção do desenvolvimento para todos que assegura uma legitimidade maior e sustentada à governação.
Incongruências várias caracterizam políticas públicas em Cabo Verde devido à falta de visão e a ausência de estratégia que tem caracterizada a actuação dos governantes durante décadas Ao focar a sociedade na procura de meios propiciados pelos outros não se deixa espaço para encontrar via própria de produção de riqueza nem capacidade para aproveitar oportunidades. Não espanta que os anos passam e não se consegue confrontar adequadamente o problema do desemprego como mostram os últimos dados do INE mesmo face a um crescimento do PIB de 5,5%. A governação do país ao longo de décadas deixou a maior parte mão-de-obra em sectores de baixa produtividade, foi incapaz de no tempo próprio aproveitar as janelas que se abriram à indústria virada para exportação e criação rápida de emprego e não se mostrou suficientemente visionário para investir na educação de qualidade necessária para a sociedade digital e de conhecimento que se anunciava. Incongruências nas políticas públicas levam a isso. Infelizmente não há muitos sinais de se querer ir mais além, como se pode depreender das últimas discussões na Assembleia Nacional.

Humberto Cardoso



Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 905 de 03 de Abril de 2019.

segunda-feira, abril 01, 2019

Fundo soberano causa divergências

As opiniões no país continuam a dividir-se quanto aos efeitos sobre a dívida do Estado que eventualmente virão da extinção do Trust Fund e subsequente criação de um fundo soberano de garantia ao investimento privado. O Vice-Primeiro Ministro e Ministro das Finanças voltou a afirmar num encontro com empresários em S. Vicente que se vai avançar com a criação do Fundo Soberano “sem qualquer impacto sobre a dívida pública”. Dias antes o Governador do Banco Central (BCV) foi categórico a dizer que a “dívida pública vai subir, pelo menos a prazo”. A divergência em certa medida está no facto de o governo acreditar que a substituição dos títulos da dívida que o BCV detém neste momento (TCMF) pelos novos títulos TTRP emitidos pelo Tesouro irá acontecer perfeitamente sem fricção financeira, enquanto o BCV duvida que isso seja possível. E a verdade é que se realmente a substituição não proceder como previsto há consequências entre as quais o aumento da dívida pública.
A questão de fundo é que o BCV tem na sua posse títulos de dívida (TCMF) no valor de 4,7103 milhões de contos que deviam ser resgatados em Agosto de 2018 de acordo com a Lei nº 69/V/98 mas não foram. O valor do resgate ou devia ser acautelado pelo Estado ao longo dos vinte anos no fim dos quais os títulos atingiam a maturidade ou devia ser o próprio Trust Fund no valor total de 90 milhões de euros que desde 1998 vinha sendo gerido pelo Banco de Portugal. A intenção do governo em utilizar o activo dos 90 milhões num fundo soberano de garantia a investimentos imediatamente pôs o problema de como fazer isso e ao mesmo tempo assegurar o resgate de todos os TCMF. Se para outros detentores desses títulos como o BCA, a Garantia e o INPS soluções negociadas sempre podiam ser encontradas, já com o BCV pela sua própria natureza e autonomia outros condicionalismos tinham que ser levados em consideração. As outras entidades podiam aceitar substituir os seus TCMF por outros títulos de dívida emitidos pelo Tesouro. Já o BCV está impedido de financiar o Estado por essa via. No cerne das disputas está como ultrapassar o imbróglio.
O governo propõe alterar a lei orgânica do Banco Central e contornar o impedimento. Um parecer do BCV enviado a 19 de Março ao parlamento dá por assente que essa pode ser uma linha de acção “ainda que subverta num primeiro momento a intenção inicial de todo o mecanismo subjacente à criação do Trust Fund e dos TCMF bem assim a proibição de financiamento do BCV ao Estado”. A questão que se coloca é em que medida alterações na lei orgânica do BCV particularmente no que respeita às relações entre o Estado e o Banco Central afectam a sua autonomia na execução da política monetária e cambial e na supervisão financeira.
A caminhada do BCV para maior autonomia e independência iniciada nos anos 90 primeiro com a lei orgânica de Julho de 1996, em sintonia aliás com o que se verificava em todo o mundo como por exemplo no Reino Unido durante o governo de Tony Blair, ganhou um impulso significativo com a revisão constitucional de 1999. A partir daí o Banco Central passou não só a colaborar na definição das políticas monetária e cambial como a executá-las de forma autónoma. E também a exercer as suas funções respeitando os compromissos internacionais, caso do Acordo Cambial de 1998, que vinculam o Estado de Cabo Verde. A lei orgânica de 2002 que veio cimentar essa autonomia beneficiou de um acordo tácito conseguido na época entre os dois partidos parlamentares para se evitar a sua instrumentalização designadamente para se interromper mandatos de governadores nomeados pelo governo anterior. Apesar de o Banco Central ser visto pelos constitucionalistas como “órgão constitucional” não há exigência de maioria qualificada para a aprovação da sua orgânica. Convinha porém que assim fosse para garantir estabilidade e credibilidade, como aliás foi defendida em 2002 pela então oposição.
O sucesso do “peg” do escudo ao euro e o baixo nível de inflação são frutos da opção feita em matéria de autonomia que não deve ser posta em causa sob pena de o país posteriormente arcar com as consequências. Veja-se o que se passou após o conflito aberto em Novembro de 2011 entre a então ministra das Finanças e o governador do Banco Central com a cena “da missa, do padre e do sacristão”. Pode-se perguntar se as medidas tomadas posteriormente pelo BCV através das taxas directoras que resultaram no aperto ao crédito teriam sido menos impactantes na economia se houvesse mais convergência entre as políticas fiscal e monetária. Ou então se degradaria tanto a situação do Novo Banco se houvesse mais diálogo. Importa pois que perante a necessidade de encontrar uma via para se fazer o resgaste dos TCMF, atingido a maturidade dos mesmos, que isso seja feita sem pôr em causa a extraordinária engenharia financeira que criou o Trust Fund e os ganhos institucionais conseguidos com a adopção do Acordo Cambial.
Haverá certamente mérito do governo em querer instalar um fundo que dê garantias para investimentos de privados nacionais que de outra forma provavelmente não conseguiriam financiamento. Certamente que algum risco estará associado à operação e que inevitavelmente se reflectirá nos títulos emitidos pelo Fundo Soberano. Mesmo que se queira gerir o Fundo Soberano de forma a manter uma notação A “fica difícil conjecturar a priori se a colocação desses títulos no mercado poderá ser bem-sucedida” como bem aponta o parecer do BCV referido atrás. De qualquer forma há que ponderar devidamente sobre esta engenharia apresentada como inovadora e criativa ciente de que os problemas do sector privado não se limitam ao financiamento. E insistir que é assim, não leva a bom porto como várias vezes já ficou provado no passado e que ainda se vê na elevada percentagem de crédito mal parado (12,2% dos empréstimos) que foi motivo de preocupação da última missão do FMI.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 904 de 27 de Março de 2019.

segunda-feira, março 25, 2019

Não dá para continuar a empurrar com a barriga

É notório que não se vive, não se participa nem se reivindica como se fazia poucos anos atrás em Cabo Verde. Num dia Brava manifesta-se na ilha e na capital. A morte de uma parturiente que não teria sido evacuada a tempo foi a justificação. Noutro dia grupos cívicos criticam a justiça e exigem que alguém de direito assuma a responsabilidade pelas falhas no sector e pela frustração sentida pela população que quer justiça competente e em tempo útil. Em dias certos no mês os partidos literalmente engalfinham-se no parlamento prejudicando o equacionamento dos problemas, a criação de vontade para as resolver e a própria busca de soluções.
 Algo recentemente mudou na postura das pessoas e no comportamento das organizações e das próprias instituições. Os sinais vinham de muito atrás, mas provavelmente foi a mudança de governo que terá propiciado a viragem que actualmente se constata. A agitação social e política dos últimos três anos supera em muito o que se passou na década anterior.
Claro que o fenómeno não é exclusivo de Cabo Verde. Com especificidades próprias acontece em maior parte do globo. Há quem aponte a crise financeira, a chamada Grande Recessão de 2008 como o ponto de viragem. Outros vão mais longe e apontam os ataques terroristas de 11 de Setembro como o fim do período aberto com a queda do Muro de Berlim, em 1989, em que se viu o avanço aparentemente imparável da democracia e a adopção generalizada das regras da economia de mercado acompanhada de prosperidade sem precedentes particularmente na China. A verdade é que hoje principalmente nas economias mais avançadas vive-se com o sentimento de que há desigualdade crescente de rendimentos com concentração de riqueza numa pequena minoria e que os governos se mostram impotentes para inverter o processo e também para gerir adequadamente as migrações de pessoas vindas de outras paragens à procura de uma vida melhor. Em consequência nota-se que aumenta a reacção contra a globalização e a favor do proteccionismo e que não há certezas que o futuro traga mais rendimento e mais qualidade de vida e que dúvidas crescentes em relação às instituições democráticas, aos média e a outras entidades mediadoras incluindo as científicas levam ao extremar de posições na sociedade.
Já nos países emergentes como por exemplo o Brasil há reacções similares, mas com efeitos mais complicados considerando a fragilidade maior das instituições e também a precariedade de existência de largas camadas da população mesmo aquelas que recentemente se viram elevadas ao nível da classe média. As causas aí pesam bastante pelo lado da corrupção, pela incapacidade do Estado em propiciar os serviços desejados com eficiência e eficácia e a dificuldade em avançar como um modelo de desenvolvimento que garanta crescimento sustentável e criação de empregos seguros. Em Cabo Verde acontece algo semelhante com a diferença de o sistema produtivo ser muito limitado e a atenção geral fixar-se no Estado e nos recursos que concentra ou pode dar acesso. Por isso é que quando fica claro que o panorama sócio-económico é mais complicado do que o esperado porque se perdeu tempo, se investiu mal e as prioridades foram trocadas a reacção é de maior impaciência, de descrença nas instituições e na classe política e de corrida desenfreada especialmente da parte dos interesses corporativos para assegurar o seu quinhão no bolo representado pelo Estado. Depois de se ter constatado que afinal problemas a todos os níveis foram em boa medida varridos para debaixo do tapete e ressurgem agora com vigor surpreendente e consequências funestas a dúvida é se agora não se está simplesmente a “empurrá-los com a barriga” não obstante os governantes garantirem que as “suas soluções são inovadoras e criativas”.
A UCID há dias publicamente afirmava que as câmaras de vigilância não têm transmitido a sensação de segurança às populações. Depois de milhões de dólares gastos na instalação das câmaras e do centro de comando e controlo esperava-se o trabalho complementar de fazer chegar a polícia junto das comunidades e potenciar de facto o investimento feito. Ao que parece ainda não aconteceu e só a divulgação da baixa das ocorrências registadas pela polícia não é suficiente para dar confiança que a criminalidade esteja efectiva e significativamente a diminuir. Também depois dos extraordinários investimentos feitos no sector da justiça não deixa de causar perplexidade que num julgamento de um caso com notoriedade, porque resultante de acusações graves feitos contra juízes e contra o sistema de justiça, o juiz peça escusa e o processo fique adiado sem data conhecida. A sensação é que, não obstante os meios muitas vezes avultados postos em certos sectores, os resultados estão a ficar muito aquém do esperado como cada vez mais se apercebe na área de educação e formação. Da mesma forma, ninguém fica realmente indiferente quando por exemplo se divulga que houve 24 mortes por negligência médica ou se apercebe da dimensão de bebidas produzidas fora dos parâmetros aceites e da quantidade de medicamentos e produtos alimentícios sem condições para o consumo que são retirados do mercado.
Saltando para outras áreas também não se deixa de ficar perplexo quando depois de 20 anos de vigência do Trust Fund e na hora de assumir os compromissos de resgatar os títulos (TCMF) emitidos desde a constituição do fundo é que se vai operacionalizar uma solução que passa por transferir o dinheiro do Trust Fund para um Fundo Soberano de garantia a investimento privados. Pergunta-se onde pára a visão estratégica nesta e noutras situações para que, quando se age, evitar ficar na posição de praticamente encurralado e muito limitado nas posições negociais como aconteceu no processo da privatização da TACV. Levar as pessoas a recuperar confiança e fazê-las acreditar num futuro melhor é essencial para libertar da vitimização do passado e agarrar o futuro encarando os problemas sem necessidade de os varrer para debaixo da tapete nem os de empurrar com a barriga num ilusionismo que já provou não servir o país.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 903 de 20 de Março de 2019.

segunda-feira, março 18, 2019

Corda esticada

Há dias Marcelo Rebelo de Sousa, na resposta à pergunta o que falta a Portugal para sair de cepa torta, disse: faltam consensos de regime em matérias básicas, não há uma atenção dos protagonistas políticos à reforma do Estado e falta capacidade de antecipação e de fortalecimento da sociedade civil. As três dicas do presidente português podiam ter aplicação directa em Cabo Verde.
 No país reina um ambiente de crispação política e não há uma base política comum seja para entendimentos, seja para contraditórios construtivos. Quanto às reformas constata-se que, apesar de promessas repetidas da classe política, a máquina do Estado mantém-se no essencial centralizadora e burocrática e os interesses corporativos devidamente salvaguardados. E em relação à sociedade civil pouco mudou no grau de sua dependência do Estado e na capacidade de autonomamente forçar alterações profundas na forma da condução dos assuntos públicos. O caso último da privatização do negócio internacional da TACV é ilustrativo a esse respeito.
A situação da empresa era por todos conhecida. Foi notório como o arresto do avião em Amsterdão precipitou a derrota eleitoral do partido então no governo. Por outro lado, ninguém desconhecia a sangria que representava para as finanças públicas. Apesar da extrema gravidade do caso TACV (dívida de mais de 100 milhões de dólares e permanente risco orçamental) foi impossível criar entre os principais partidos qualquer base de discussão do futuro da transportadora. O mesmo aconteceu face a outras situações graves designadamente com o programa Casa para Todos bloqueado sob o peso de uma dívida de 200 milhões de dólares e com o Novo Banco em virtual estado de insolvência. Quando veio a seca de 2017 que deixou a nu a vulnerabilidade da população apesar dos muitos milhões que tinham sido investidos no mundo rural também não se conseguiu criar uma base de consenso para equacionar intervenções com vista a minorar a precariedade actual e abrir o caminho para um futuro com prosperidade. Algo similar já tinha acontecido numa outra situação extrema como foi a da erupção vulcânica do Fogo em Dezembro de 2014. Picardias político-partidárias passam a dominar o espaço público, em particular o debate parlamentar, e logo de seguida fica comprometida a eficácia da acção pública junto de quem mais necessita.
O sentimento que se vive hoje no país é que metaforicamente se esticou a corda toda. Não é só a TACV que ultrapassou o limite da sustentabilidade. Os transportes marítimos na sequência de acidentes e afundamentos seguiam o mesmo caminho. A dívida pública subiu para níveis muito superiores a 100% do PIB que deixam o Estado quase sem margem para prosseguir com investimentos públicos indispensáveis. A situação habitacional agravou-se apesar dos milhões gastos no Casa para Todos. A segurança não obstante os enormes investimentos ainda não dá confiança ao movimento livre e despreocupado de cidadãos e estrangeiros em todas as cidades e nos vários pontos do país mesmo considerando indícios recentes de se estar a inflectir a situação da criminalidade. A educação apesar dos investimentos das famílias e do Estado nos três níveis de ensino ficou aquém do esperado na preparação dos jovens para o mercado de trabalho e enquanto factor de competitividade da economia. E os custos crescentes da saúde devido ao aumento da esperança de vida, mudanças no perfil das doenças mais frequentes e investimentos necessários em instalações e equipamentos estão cada vez mais difíceis de serem suportados por uma economia há pouco tempo saído de um ciclo longo de crescimento raso.
Depois da corda esticada seguindo o tipo de políticas enquadradas no modelo de reciclagem da ajuda externa quis-se virar para outros sectores da economia. O facto porém é que o sector privado nacional que poderia trazer dinâmica económica não parece descolar seja por causa de financiamento, seja pelos exagerados custos de factores, pela insensibilidade da administração pública ou por falta de acesso a mercados estruturados. Os investimentos externos no domínio do turismo concentrados nas ilhas do Sal e da Boa Vista por falta de estratégia dos poderes públicos a vários níveis ainda não se mostram capazes de impactar a economia nacional como seria desejável. Mesmo assim são os empreendimentos no domínio do turismo e as unidades industriais criadas pelo capital externo que mais criam empregos e suportam as exportações de bens. Para a elite dirigente distraída pelas lutas partidárias não há consciência clara da realidade de se ter há muito atingido o limite na aplicação de certas políticas e da necessidade de agir para sair da armadilha. Não há o sentimento da urgência do agora como diria o ex-presidente americano Barack Obama.
Por isso é que em qualquer matéria que venha à discussão pública seja a ela a TACV, a problemática dos transportes marítimos, o futuro do Trust Fund, concessão de aeroportos, estratégias para as telecomunicações, para agricultura e pecuária, estratégia para educação e para a política energética cada um traz a sua verdade normalmente de um passado congelado no tempo e sem um pingo de responsabilidade pelas consequências de actos e omissões cometidos. Claro que o diálogo só pode ser o de surdos. No processo o país perde, os cidadãos ficam sem dados fiáveis para compreender o que está em causa e o nível do debate tende a piorar porque cada vez mais distancia-se dos factos para ficar com as “verdades” convenientes de cada um. Prioriza-se a exploração de paixões, a identificação com a cor política e as promessas demagógicas porque distantes da realidade dos recursos disponíveis. Com esta atitude continua-se a esticar a corda mesmo perante resultados decrescentes. Os países que se desenvolveram só o conseguiram ultrapassando o círculo vicioso que impede de facto o país “sair da cepa torta”.
Diz-se que neste mundo cada vez mais centrado em questões identitárias a política tende a imitar cada vez mais o futebol. A postura dos partidos e dos cidadãos assemelha-se à perspectiva clubista que só vê a realidade pelo filtro dos clubes levando a sectarismos diversos, à violência e também a qualquer impossibilidade de se chegar a consensos sobre qualquer matéria não interessando a relevância, urgência ou importância estratégica. Na verdade, exemplos espelhados pelo mundo deixam saber que a posição clubista na política tem sido pior do que no mundo do desporto. Os ataques sectários não poupam nada, nem as instituições, nem os procedimentos democráticos e nem o próprio Estado de Direito, e levam à degradação gradual da democracia. No futebol pelo menos procura-se garantir que as regras sejam cumpridas, os árbitros respeitados e a integridade dos jogadores assegurada. Consegue-se que os jogos cheguem ao fim com resultado claro, que se realizem campeonatos nacionais sem disputas intermináveis e que de quatro em quatro anos o futebol seja o espectáculo planetário das Copas do Mundo. A democracia e o Estado de Direito com a sua importância central para a o exercício da Liberdade deviam merecer o mesmo. Substituindo narrativas de ressentimento que estão na base dessas identidades sectárias por narrativas de possibilidade não se estaria nunca em posição de ver a corda esticada e por isso limitado o horizonte do possível.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 902 de 13 de Março de 2019.

segunda-feira, março 11, 2019

TACV e a política dos transportes aéreos

No passado dia 28 de Fevereiro finalmente se concretizou a venda de 51% dos TACV a um parceiro externo, a Loftleider Cabo Verde, subsidiária da Loftleider Icelandic pertencente ao Grupo Icelandair. Terminava assim um processo que se iniciara em Agosto de 2017 com assinatura de um contrato de gestão com a Loftleider Icelandic que deveria ter a duração de um ano e criar as condições para a privatização da empresa.
.Era desde o início assumido que a Loftleider poderia ser o parceiro estratégico que o país precisava para construir um hub no Atlântico Médio capaz de aproveitar o fluxo de passageiros entre a Europa e América do Sul e entre a África e a América do Norte. Como parte do grupo Icelandair que tem uma história de sucesso na criação de um hub no Atlântico Norte, a disponibilidade e o interesse da Loftleider em assumir a gestão da TACV foi de grande importância. Emprestava credibilidade à ideia de um hub na Ilha do Sal que poderia capitalizar com ganhos os activos da empresa e do país designadamente os recursos humanos, certificados ETOPS e localização geográfica que de outro modo poderiam ser desbaratados liquidando a empresa como propunha o Banco Mundial e outras instituições internacionais. A assinatura do contrato de compra e venda no valor de 1,3 milhões de euros acompanhada de uma capitalização no valor de 6 milhões de dólares pelo parceiro estratégico pode ser visto como um sinal que depois de mais de um ano de teste do potencial acredita mesmo no sucesso um hub aéreo na Ilha do Sal. E essa é a boa notícia.
É uma boa notícia porque todo o investimento feito pelo país na TACV, nos aeroportos, na regulação aeronáutica e fundamentalmente nos recursos humanos poderá ser aproveitado para gerar riqueza numa escala nunca vista porque já não mais limitado ao tráfego de e para Cabo Verde e perfeitamente apto para competir na prestação de serviços intercontinentais de passageiros. É uma boa notícia também pelo efeito de arrastamento que terá sobre empresas fornecedoras de bens e serviços à aviação particularmente se se conseguir conjugar o hub com stopover. É ainda uma boa notícia porque aumenta a conectividade de Cabo Verde contribuindo extraordinariamente para acabar com o relativo isolamento em relação a regiões dinâmicas do globo com vantagens directas para o turismo, aproximação de mercados e atracção de potenciais investidores. Naturalmente que como tudo no mundo de negócios há riscos como a própria Loftleider reconhece quando cria uma subsidiária para os representar no negócio e evitar o contágio da empresa-mãe na eventualidade das coisas não correrem bem.Entrementes nos próximos cinco anos os riscos vão ser partilhados pois só depois desse prazo é que a Loftleider Cabo Verde poderá vender as suas acções reservando o Estado de Cabo Verde o direito de preferência de as comprar. Mas certamente que será do interesse das partes e muito particularmente de todos no país que o empreendimento tenha sucesso. O ruído causado pela disputa partidária poderá sugerir que haja desejos em contrário, mas a verdade é que sucesso significa mais empregos, mais rendimentos e mais certeza no futuro. Toda a gente tem interesse que assim seja. Envereda-se pela má política quando uns e outros confundem deliberadamente diferença de opiniões e de políticas com falta de engajamento com os interesses do país.
Privatizações são objecto de discordância em todo o sítio onde são intentadas. Quando iniciadas, há sempre quem discorde do momento ou da oportunidade. Quando vistas em retrospectiva, mesmo os seus promotores acham que podiam ser melhor conduzidas. O facto é que no momento de decisão ninguém tem a informação completa. Trabalha-se com os dados disponíveis e num contexto específico que exige muitas vezes acção decisiva, tempestiva e encadeada para se conseguir os objectivos de política pretendidos. Razões para privatizar são múltiplas designadamente para diminuir o risco orçamental, arrecadar despesas extraordinárias, promover o sector privado, atrair investimento externo que traz capital, know-how e mercados, desenvolver parcerias estratégicas para a modernização do país e inserção da economia nacional na economia global. Privatizações em grande escala acontecem quando há um esforço de diminuição do Estado na economia como aconteceu na Inglaterra de Margaret Thatcher ou em processos de transição de economias estatizadas para economia de mercado conduzidos na Europa de Leste e na Rússia depois da queda do comunismo. Em Cabo Verde também foram privatizadas várias empresas na década de noventa no quadro de construção de uma economia de mercado e de reformas estruturais que aumentaram o potencial do país permitindo-lhe crescer a uma média superior a 7% entre 1995 e 2008. Apesar de globalmente positivas as privatizações continuaram a ser o tema fracturante preferido para se fazer política de divisão, com “patriotas” de um lado e “antipatriotas” do outro.
As tentativas de privatização da TACV iniciadas em 2000 no governo do MpD e com seguimento posterior nos governos do PAICV a partir de 2002 goraram-se em parte por causa de resistências de vários quadrantes na sociedade e no Estado. Dados vindos a público na sequência de audiências feitas em sede de comissão parlamentar de inquérito deixaram perceber as interferências governativas, as deficiências de gestão e as fragilidades dos modelos de negócios adoptados que cumulativamente conduziram a empresa à situação de falência com dívidas à volta de 100 milhões de dólares. Entre liquidar a empresa ou mantê-la nos mesmos moldes, uma opção que se tinha tornado impossível devido à dívida acumulada e ao grande risco orçamental que entretanto passou a representar, o governo decidiu explorar um novo modelo de negócios baseado na construção de hub na Ilha do Sal. Aparentemente, de lado ficaram as pretensões de desenvolver as outras unidades de negócio identificadas. A CV Handling já tinha sido entregue à ASA em 2015, os transportes aéreos domésticos e regionais foram descontinuados a partir de Maio de 2017 e a unidade de manutenção ressentia-se da perda de aviões próprios da companhia. Em todo este processo o governo teve objecção do Banco Mundial materializada na suspensão desde 2016 da ajuda orçamental mas persistiu apesar dos constrangimentos ao tesouro público. A aposta já parece dar frutos mas a questão que se coloca agora é que resposta dar aos sectores que foram negativamente afectados.
O resgate da TACV poderá ter sido iniciado mas onde param as políticas de transporte que procuram, por um lado, melhorar a ligação entre as ilhas com segurança, frequência e preço ajustado para incentivar a circulação nas diferentes ilhas do país, a exemplo do que se passa nos outros arquipélagos da Macaronésia. Claramente que a via não pode ser a de empresas a praticarem preços máximos sem sinais evidente de uma política comercial atractiva. A ligação regional na aparente impossibilidade da Binter realizá-la como estava prevista inicialmente foi tomada pelos concorrentes na região. Os voos para Lisboa objecto de reclamação de passageiros principalmente em S. Vicente mas também na Cidade da Praia e noutras ilhas sofrem com a posição quase monopolística das transportadoras. As vias para solucionar isso tudo terão que ser encontradas no âmbito de uma política compreensiva de transportes que não se deixe ficar pela lógica pura e dura do mercado. Pequenos países e países arquipélagos têm imperfeições e falhas de mercado que não se resolvem com o laissez-faire. Há que encontrar o meio termo entre o excesso e a omissão do Estado para que nas ilhas e no país as reformas surtam o efeito desejado.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 901 de 05 de Março de 2019.

segunda-feira, março 04, 2019

Caboverdianidade sem complexos

Na semana passada, 21 de Fevereiro, celebrou-se mais um Dia da Língua Materna. Como de há muito acontece nessa data foi mais uma oportunidade para as opiniões se dividirem à volta do crioulo. Há quem insista na urgente oficialização do crioulo e há outros que perguntam qual é a pressa. O Presidente da República aconselha “a definição de regras claras para a sua escrita” e que isso seja feito “num espaço de tempo razoável”.
 O Governo através do Ministério da Cultura em comunicado diz que quer “prosseguir com a sua oficialização através da Constituição da República e por fim avançar com a padronização”. Acrescenta ainda que a “padronização é moroso e pode levar duas ou três gerações para que ela passe a ser assumida naturalmente pela sociedade”. A Constituição da República no nº2 do artigo 9º parece apontar num outro sentido ao determinar que “o Estado deve promover as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. Supõe-se que já havendo reconhecimento do crioulo no texto constitucional trata-se é de dar o passo seguinte de também ser língua escrita o que só é possível depois da padronização. Destes aparentes desencontros em como proceder não é de estranhar que hajam dúvidas quanto às prioridades, que surjam agendas dos mais apressados para acelerar o processo e que se ouçam vozes a aconselhar prudência para que a questão não seja factor de divisão quando, como bem lembra o PR na sua mensagem, o crioulo é “um dos principais traços de união entre os caboverdianos”.
A enfase no discurso repetido todos os anos a propósito do Dia da Língua Materna tem sido posta na oficialização do crioulo como acto indispensável para a dignificação da língua. E aí é que começam as divergências, porque vê-se na relação do cabo-verdiano com a sua língua que ela não precisa ser oficializada para ter dignidade. Aliás, a relação que há séculos todos os cabo-verdianos independentemente da sua origem, posição socioeconómica e nível de educação têm com a sua língua materna, visível na forma como é expressa em todos os momentos da sua vida e em particular na sua música, não deixa entender que o seu uso é acompanhado de qualquer sentimento de inferioridade. Mesmo oficialmente ninguém se sente diminuído porque recorre ao crioulo para se comunicar no parlamento, ou enquanto membro do governo ou na qualidade de presidente da república, nem tão pouco quando trata com a administração pública e depõe nos tribunais. A diferença com a língua portuguesa é que a sua escrita ainda não está padronizada para que designadamente os documentos da administração pública e a comunicação oficial do Estado possam ser escritos nas duas línguas. Trazer a questão da dignidade quando não há uma relação de opressão e de subjugação – Cabo Verde é independente há mais de 43 anos – só contribui para pôr as duas línguas em rota de colisão. No processo criam-se anticorpos na aprendizagem do português com evidentes prejuízos para o esforço, essencial para o exercício pleno da cidadania, de tornar os caboverdianos fluentes nas duas línguas.
Reduzir problemas complexos à questão de dignidade é sempre útil para aqueles cujo objectivo central é reforçar a identidade das vítimas versus os opressores ou simplesmente a do “nós”contra os “outros”. Na época actual em que proliferam políticas identitárias e em que questões fracturantes trazem vantagens diversas a quem se apresenta como resistência face à opressão de toda espécie, seja real ou virtual, a tentação é grande para se enveredar por esse caminho. Quantas carreiras políticas e também noutras áreas não foram assim fabricadas supostamente para terminar a opressão, para dar força à resistência ou para restituir a dignidade. A verdade é que na generalidade dos casos o problema não é de facto resolvido mas as divisões na sociedade persistem e tendem a tornar-se extremas. As divisões e os desencontros por causa do crioulo não são de hoje e tudo leva a crer que vão se repetir e poderão aprofundar-se considerando os ventos de feição que hoje sopram em todo o mundo. Os seus efeitos em particular na aprendizagem da língua portuguesa e na qualidade do ensino em geral não deixarão de se fazer sentir. A exemplo de outras sociedades que se deixaram apanhar nesse tipo de armadilhas, o mais provável é que aumente a debandada dos com maiores posses para colocar os filhos em escolas privadas.
Cabo Verde não devia estar a confrontar-se com certo tipo de divisões culturais com que outras nações se deparam. A consciência da caboverdianidade vem de longe e é muito anterior à independência. É evidenciada na língua, na música, na literatura e em várias outras manifestações de cultura, mas opções várias de política terão levado a que não se aprofundasse o conhecimento do processo da emergência dessa consciência nacional. O estudo do passado ficou demasiado sujeito a conveniências várias. Curioso que dias atrás por ocasião do 70º aniversário do desastre da Assistência o historiador António Correia e Silva tenha chamado a atenção para o aparente esquecimento das fomes periódicas com milhares de mortes que assolaram o arquipélago durante séculos até a última fome de 1947. Parece que o país esteve demasiado tempo a entreter-se na consolidação de uma herança escravocrata enquanto as fomes que a sua literatura narra nas obras de Manuel Lopes, Baltasar Lopes, Luís Romano, Teixeira de Sousa e de muitos outros escritores e poetas ficavam num segundo plano. Talvez porque nas fomes as causas eram fundamentalmente as secas enquanto falar da escravatura permitia mais facilmente desenvolver uma cultura de vitimização mais conducente com a “escolha do destino africano” feito no acto de proclamação da independência de Cabo Verde.
Depois dessa “escolha”, o esforço de reafricanização dos espíritos que se seguiu só podia levar a divisões como a referida à volta do crioulo assim como ao aparecimento de outras linhas de fractura à medida que a história dos cinco séculos de existência era submetida a análises de conveniência e a procura de conformidade com a ideologia desses tempos e a racionalidades de poder. Para se distanciar o crioulo do português e fazer dele uma língua de resistência tinha-se que se deixar a escrita etimológica usado nos trabalhos de Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Ovídio Martins, Luís Romano e outros para adoptar o ALUPEC, como se a base lexical do crioulo não fosse quase toda ela de origem portuguesa. A crise identitária que se abriu com ofensivas em várias outras áreas para além da linguística deixaram feridas na sociedade que se podem descortinar nas disputas entre ilhas, em certos discursos políticos e na atribuição de valor ao património cultural prejudicando a coesão do país. Infelizmente, o processo erosivo continua porque as instituições do Estado em geral com destaque para o sistema educativo dão seguimento ao trabalho de outrora. O Estado democrático dá sinais de se ter mantido refém do passado e por isso as divisões na sociedade e a crise identitária aprofundam-se, enfraquecendo a vontade da nação, dificultando uma visão do todo nacional e deixando espaço para que lógicas identitárias das mais nocivas possam desenvolver. Há que reverter a situação e fazer da afirmação da caboverdianidade sem complexos a chave para um futuro de desenvolvimento.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 900 de 27 de Fevereiro de 2019.

segunda-feira, fevereiro 25, 2019

À procura de soluções que funcionem

Os transportes marítimos em Cabo Verde tiveram um novo desenvolvimento na semana passada. O governo assinou o contrato de concessão do serviço público com a empresa portuguesa Transinsular vencedora do concurso público lançado há um ano atrás.
 A concessão vai ser gerida pela nova empresa Cabo Verde Inter-Ilhas na qual a Transinsular vai ter 51% do capital social e nove armadores nacionais os restantes 49%. No quadro do acordo assinado, da actual frota o que estiver apto será integrado na nova empresa e os restantes navios serão vendidos ou abatidos. Quanto aos trabalhadores acontecerá algo análogo, sendo indemnizados com possível contribuição do Estado aqueles que não se ajustarem à nova oferta de trabalho. Com a mudança deixa-se de ter um sector marítimo tradicionalmente dinamizado por vários operadores privados para se ter essencialmente um grande operador cobrindo todo o arquipélago. No processo, alterações no que tem sido a economia do sistema, a sua localização, os seus agentes e fornecedores e as suas exigências em mão-de-obra vão eventualmente acabar por se verificar. Espera-se que já se tenha previsto o impacto delas e planeadas as vias para as amortecer.
Há décadas que os sucessivos governos andam à busca de soluções de transportes marítimos que permitissem ao país minimizar a sua condição arquipelágica e unificar o seu mercado interno. Soluções estatizantes, mistas ou só com operadores privados não resultaram em fornecer o serviço desejado ao nível de segurança, previsibilidade e frequência. A única rota, a de S. Vicente/Santo Antão, que sempre se conseguiu manter por si própria é a excepção que revela o que falta às outras. Não há carga nem número de passageiros suficientes para viabilizar a circulação entre todas as ilhas na frequência desejada. Vários factores contribuem para que seja assim, designadamente o facto de o país ter uma pequena população, o mar entre ilhas ter caracter oceânico e não encorajar viagens, a estrutura produtiva ser diminuta e os bens transaccionáveis perecíveis e em pequena quantidade. Para colmatar as insuficiências não faltaram intervenções do Estado seja de forma directa com embarcações, seja de forma indirecta com subsídios dados a privados para cobrir rotas com as de Fogo/Brava, Santiago/Maio e Santiago/Boa Vista. Segundo dados de um estudo do Banco Mundial, os subsídios chegaram a atingir valores de cerca de cem mil contos em 2010, não incluindo o subsídio concedido à Fast Ferry.
A verdade é que toda esta intervenção do Estado e a iniciativa e perseverança dos operadores privados têm-se mostrado incapaz de manter um serviço sustentável de transportes marítimos. A chamada à realidade aconteceu de forma dolorosa na sequência de desastres que envolveram encalhes sucessivos de navios, desaparecimentos inexplicáveis e afundamentos que culminaram na morte de passageiros e tripulantes resultantes da perda do navio Vicente. Era evidente que o sector dificilmente conseguia suportar-se respeitando o exigido pelos regulamentos em termos físicos, de recursos humanos e de segurança. Não ajudava em nada que os armadores além de se depararem com uma economia sem grande dinâmica de crescimento ainda tinham de lidar com ineficiências nos portos e taxas portuárias excessivas. Apesar das intenções manifestadas em unificar o mercado, as medidas políticas governamentais dirigidas ao sector não tinham a coerência nem se articulavam de forma a garantir a sua sustentabilidade e muito menos o investimento na sua renovação e modernização.
Foram então opções governamentais a vários níveis que na prática impediram que uma actividade económica bastante enraizada na história e uma clara vocação do país não pudesse ser potenciada e transformada numa fonte de riqueza nacional. A essa falha junta-se o subaproveitamento dos recursos da pesca para relembrar o quanto se perdeu na aposta num modelo de desenvolvimento que reforçou a dependência e o virar para dentro. Também o quanto se perdeu em não incentivar a iniciativa privada e em não abrir o país para investimento traduzido em capitais, know-how e mercados que lhe permitisse ultrapassar os constrangimentos de falta de escala, de escassez de recursos naturais e de distância dos grandes mercados. O resultado é mesmo quando chegou finalmente o turismo, movimentando anualmente centenas de milhares de pessoas, a estrutura económica do país nos vários sectores não tinha como aproveitar devidamente o que essa procura massiva de produtos e serviços podia proporcionar. Não havia estrutura produtiva adequada, nem canais de distribuição, standards de qualidade, nem transportes adequados para a servir com fiabilidade e de forma competitiva.
Agora o governo apresenta uma solução compreensiva para a questão dos transportes marítimos na espectativa que o resto irá fazer a sua parte na engrenagem que faz mover a economia. A solução encontrada tem custos e não despicientes para quem estava no sector. A questão é saber se de facto com os transportes resolvidos irá verificar-se um aumento significativo da produção de bens dirigidos ao global do mercado interno e ao mercado do turismo que justifique esses custos actuais e também os futuros se se tiver de continuar os subsídios por falta de suficiente carga e passageiros. O que aconteceu no sector dos transportes marítimos está-se a verificar noutros ou futuramente vai se fazer sentir em mais outros. É o que dá insistir em políticas que permitem a alguns a extracção de valor a seu favor, que facilitam a reprodução de um ambiente destrutivo de valor e não incentivam na economia a criação de valor. Todos ficam mais pobres. E soluções tardias, por si sós, podem não trazer a salvação esperada.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 899 de 20 de Fevereiro de 2019.

segunda-feira, fevereiro 18, 2019

Realizar o potencial da pesca

Na semana passada, dia 5 de Fevereiro, celebrou-se por todo o país o Dia do Pescador. Mais uma vez nas múltiplas cerimónias e encontros realizados foram invocados os recursos marinhos apreciáveis que supostamente o país tem na sua vasta zona económica exclusiva.
Também não se deixou de interrogar o quão extraordinário seria se fosse possível explorá-los. A realidade que os dados estatísticos teimam em demonstrar é que não se consegue ultrapassar as 15 mil toneladas de um potencial de 40 mil. As consequências da subexploração são diversas sendo uma delas a pobreza persistente entre os pescadores e as suas famílias, particularmente nas ilhas onde não podem complementar a pesca com outra actividade. Apesar do estado em que globalmente se encontra o sector, não é de minimizar a sua importância. Ocupa 5.000 pescadores e 3.000 peixeiras e são os produtos da pesca que perfazem mais de 80% das exportações do país, empregando cerca de 2.000 pessoas. O problema que se vem arrastando praticamente desde sempre é como dinamizar o sector para criar riqueza e ser fonte de rendimento crescente para as populações.
Um estudo do Banco Mundial (BM) datado de 2005 já deixava perceber que a gestão do sector das pescas sempre pecou pelo peso excessivo do Estado. O modelo estatizado, adoptado logo após a independência servindo-se da ajuda externa, procurou focar-se na construção de infraestruturas, na aquisição de embarcações e na criação de instituições de apoio, mas os resultados ficaram aquém dos perspectivados. Segundo o BM mais de 200 milhões de dólares da ajuda externa foram investidos de 1978 a 2004 e o que se verificou é que não se conseguiu crescimento no sector. Pelo contrário, caiu a captura relativamente ao que se verificava nos princípios dos anos 80. Paralelamente os rendimentos da população ligada à pesca estagnaram e em muitos casos diminuíram. A governação também falhou em não acautelar uma fiscalização adequada da zona económica exclusiva que pelo menos pudesse conter a delapidação dos recursos marinhos por entidades não autorizadas. A opção foi ter forças militares em terra e não equipar uma guarda costeira que efectivamente policiasse os mares.
O que se passou com as pescas, uma fonte potencial de criação riqueza em Cabo Verde, é a repetição do que se passa em outros sectores. O país tem poucos recursos naturais e periodicamente sofre calamidades naturais que diminuem ainda mais os existentes. Paradoxalmente por razões várias, mas em particular de liderança, não se chegou nunca a erigir como seu desígnio nacional a construção de uma base produtiva capaz de criar riqueza, de manter o país a crescer de forma sustentável e de propiciar emprego e rendimento para a sua população. Diz-se que é isso que se pretende, mas os meios escolhidos, os objectivos traçados e as prioridades seleccionadas demostram que, de facto, não é assim. A forma como o país foi conduzido ao longo dos anos alimentando-se da ajuda externa levou-o a acomodar-se na posição de dependência. Nesse sentido as instituições orientaram-se para maximizar o fluxo da ajuda externa. A cultura administrativa ligada à redistribuição dessa ajuda paulatinamente se sobrepôs e abafou outras possíveis culturas, sejam elas de produção ou de prestação de serviço. A nível individual das pessoas os incentivos existentes convidam à concorrência feroz pelos recursos disponibilizados, servindo-se de diversas vias entre as quais a partidária.
Em tal ambiente é muito difícil desenvolver a atitude indispensável para construir o presente e conquistar o futuro que se revela no espírito de cooperação, na necessária confiança e na vontade a nível individual e colectivo em cumprir leis e seguir regras. Não estranha pois que os referidos 200 milhões de ajuda externa investidos à razão de 7,5 milhões de dólares anuais durante 26 anos não deram os resultados pretendidos, nem tão pouco que outros muitos milhões que entraram no país pela via de doações e de empréstimos concessionais tenham ficado muito aquém dos objectivos propalados. É verdade que o país cresceu, que hoje é muito diferente do que foi há décadas passadas e que o rendimento global das pessoas aumentou. Porém, comparado com outros países em condições similares, os ganhos são menores, as vulnerabilidades são mais persistentes e o potencial para continuar a crescer, findo o grande período das ajudas, não é o mesmo. Acrescenta-se a isso o facto de, à sombra das ajudas globalmente dirigidas ao país, crescer uma elite abastada, uma espécie de classe média ligada ao Estado que as administrava e redistribuía, enquanto a população, por exemplo, ligada à pesca ficava em geral mais pobre. Repetia-se o que invariavelmente se vê em países que vivem de renda, seja ela recursos como petróleo e os minérios ricos, ou ajuda externa. A prosperidade de alguns tem um preço pago colectivamente na alta taxa de desemprego e na persistente vulnerabilidade de largas camadas da população.
A diferença entre os resultados de desenvolvimento obtidos por Cabo Verde comparativamente aos de países como Maurícias e Seicheles reside essencialmente no facto que em tempo próprio esses países souberam atrair investimento directo estrangeiro (IDE), investiram com seriedade numa educação de qualidade e adoptaram uma atitude favorável à construção de uma base produtiva geradora de riqueza. Em Cabo Verde, pelo contrário, a relação com o IDE tem sido mais passivo do que proactivo. Massificou-se a educação, mas não se apostou com seriedade na qualidade. E a atitude não mudou significativamente apesar dos evidentes ganhos do IDE, designadamente nas indústrias ligados ao pescado, que se traduziram no ano de 2018 em mais de 80% das exportações de bens e em cerca de 5.000 postos de trabalho directos e indirectos, e no sector do turismo que tem sido o motor do crescimento da economia nacional e gerador de milhares de empregos. Postos de trabalho esses designadamente nas conserveiras que poderão ficar em perigo se medidas atempadas na relação com a União Europeia não forem tomadas.
 país e as suas instituições acomodaram-se por demasiado tempo ao maná que vem do exterior. Mesmo perante a evidência do preço pago, isso custa mudar. Com as resistências instaladas, ano após ano vê-se que fica difícil melhorar a competitividade e a produtividade. Depois de décadas de investimentos na educação, o país ainda não acordou completamente para as consequências da deficiente qualidade do ensino. A hostilidade latente contra o investimento externo torna difícil amortecer atempadamente o seu impacto nas comunidades (Sal e Boa Vista) e melhor aproveitar as oportunidades criadas. A insistência na vitimização que justifica e até torna respeitável às pessoas viver na dependência dos outros constitui um travão ao desenvolvimento da atitude certa para o desenvolvimento. A atitude que promove a confiança, o civismo e o cosmopolitismo essenciais para enfrentar e lidar com o mundo de forma proveitosa. A atitude que por trazer crescimento sustentável fará os pescadores e seus familiares mais felizes em futuras celebrações do Dia do Pescador.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 898 de 13 de Fevereiro de 2019.

segunda-feira, fevereiro 11, 2019

Trocar o “fácil” pelo estratégico

Várias acções do Governo nos últimos tempos, designadamente a publicação da carta de política de Mobilidade Eléctrica no BO, os benefícios inscritos no Orçamento de 2019 para facilitar financiamentos no sector das renováveis, a introdução de lâmpadas LED na iluminação pública e a utilização do Fuel 380 na produção de energia na Praia têm demonstrado uma atenção crescente sobre a questão energética no país.
Não é simples coincidência que também em todo o mundo se fala com preocupação das alterações climáticas, da descarbonização da economia, de se apostar nas energias renováveis e da necessidade de mais eficiência energética. Está-se a ir com o que o resto do globo, em particular depois dos Acordos de Paris, de 2015, onde houve um comprometimento quase unânime de se tomar medidas de contenção das alterações climáticas. A questão que se coloca é como o país está a encarar a sua posição nesta matéria: se é para fazer como no passado e simplesmente aproveitar-se dos projectos e dos recursos disponibilizados sem preocupação real com os resultados e com a sustentabilidade dos mesmos. Ou se vê o momento como oportunidade para uma viragem séria numa questão fundamental como é a energia, a sua disponibilidade e qualidade, o seu custo para as famílias e para as empresas e o impacto que a reestruturação do sector poderá ter directa e indirectamente na criação de novos empregos.
De facto, não é novidade ver o governo abraçar projectos dirigidos para o aproveitamento de energias renováveis, para poupança de energia ou para formação de pessoas no sector. O problema é se os objectivos proclamados são atingidos e se o potencial que o investimento supostamente cria é desenvolvido e consegue produzir frutos permanentes. É sabido de há muito que, neste como em outros sectores, Cabo Verde é em boa medida um cemitério de projectos. Percorrendo as ilhas encontra-se por todo o lado maquinarias, oficinas, laboratórios, instalações vazias e equipamentos diversos adquiridos no âmbito de projectos, mas que findo os mesmos ficaram subaproveitados ou simplesmente passaram a acumular poeira. O desperdício não fica por aí. Também se verifica nas formações feitas com a agravante de se tratar de pessoas que já tinham legitimamente criado expectativas.
Compreende-se que tenha sido assim ao longo dos tempos. A lógica de reciclagem de ajuda externa leva a estas situações. Quem a gere fixa-se nos meios e tende a dar como cumpridos os objectivos se os meios forem propiciados. É evidente que daí resultam frustrações sucessivas das pessoas beneficiárias e baixo retorno dos investimentos realizados. O problema são os países que se deixam apanhar nessa lógica e em geral dão a aparência de conviver muito bem com esse modelo. Também há quem beneficie e muito com isso. Invariavelmente cria-se uma elite abastada à volta do Estado enquanto um desemprego “estrutural” teimosamente perdura, mantendo vulneráveis segmentos da população, curiosamente a população alvo dos projectos.
Uma outra consequência indesejável de se deixar projectos de doadores ou de parceiros passar por políticas públicas são os custos elevados que todos acabam por arcar directamente nos preços de bens e serviços fornecidos ou indirectamente através de impostos que depois os vão subsidiar. A energia e a água, por exemplo, são demasiado caras em Cabo Verde. O custo destes factores além de constituírem um peso nos rendimentos das pessoas são um ainda maior obstáculo ao desenvolvimento de negócios e contribuem para manter baixa a competitividade dos bens e serviços cabo-verdianos. Opções em grande parte motivadas por questões ideológicas impediram que uma gestão racional do sector fosse feita e investimentos essenciais tivessem acontecido nos momentos certos. O improviso, a incerteza e a imposição de soluções desadequadas contribuíram para que o país hoje tenha dos custos mais elevados de energia e água. Entrementes, esses dois bens essenciais por pressão de doadores passaram a ser fornecidos por empresas separadas mas não é líquido que globalmente se vá beneficiar com isso. Conseguem-se financiamentos para as renováveis, mas ainda não se sentem os efeitos no custo da energia. Por outro lado, as mesmas renováveis abrem a possibilidade de descentralização da produção de energia e mesmo de água, mas aparentemente ignora-se isso. Não se concilia o facto com a opção pelas “centrais únicas” que realmente têm ganhos de escala na produção, mas apresentam custos quase proibitivos no transporte e na distribuição num território com a orografia e a dispersão da população existente nas ilhas.
Agora envereda-se pelos carros eléctricos. Até já se definiram benefícios fiscais para quem os compra e já há postos de recarga disponíveis. Mas para além do óbvio que é o acesso imediato aos muitos fundos de apoio internacional que vão surgindo em nome das alterações climáticas não é claro o que realmente se pretende e porque é prioritário. Compreende-se que países com indústria automóvel e capacidade de inovação na produção de baterias, aerogeradores, painéis solares e inteligência artificial se tenham apressado a definir etapas para melhor se posicionarem no desenvolvimento de tecnologias do futuro e dominarem os mercados nacionais e globais. Não é porém o caso de Cabo Verde onde nem a poluição é pretexto para se apressar uma transição para veículos limpos ou onde a perspectiva de vender “créditos de carbono” pode revelar-se interessante. Até acção em contrário os carros deverão ser movidos pela electricidade produzida por combustíveis fósseis. Para que não se continue a agir simplesmente por impulsos de doadores impõe-se que o país tenha a sua política própria e saiba negociar com os parceiros e conciliar interesses nacionais com eventuais interesses que manifestem.
É evidente que Cabo Verde tem as melhores condições para exploração de energias renováveis como a solar e a eólica. Seria de maior importância que o país definisse políticas claras de expansão do aproveitamento dessas fontes de energia pelas famílias, empresas e instituições no quadro de um esforço global de abaixamento dos custos de energia e água. A pequenez do país, a fragmentação em ilhas e a dispersão da população deviam ser incentivos poderosos para se encontrar formas inovadoras de fazer chegar a todos energia barata. Também a busca incessante para encontrar empregos de qualidade e sustentáveis para os jovens e para a população em geral devia ser o maior incentivo para se fazer promover a expansão das renováveis. Neste domínio, paradigmático é o exemplo da Califórnia e também de outros países que pela via legislativa e regulamentar criaram mercados para as renováveis que depois se traduziram em empregos designadamente na instalação e manutenção de equipamentos, em assessoria em matéria de eficiência energética e em poupanças significativas para todos. No caso de Cabo Verde elas poderiam incluir os consumidores com contas menos pesadas, a Electra com menos pressa em fazer novos investimentos e o país com menos importação de combustíveis fósseis. Desenvolver políticas estratégicas é essencial para, a prazo, se baixar os custos, conseguir retorno adequado dos investimentos, criar empregos e almejar melhor qualidade de vida.


Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 897 de 6 de Fevereiro de 2019.

segunda-feira, fevereiro 04, 2019

O Espectro do populismo

Ninguém já duvida que o panorama político mundial está a alterar-se. Mudanças acontecem por todo lado, mas nas democracias notam-se melhor porque são mais visíveis e têm maior impacto.
 O mundo olha fascinado e ao mesmo tempo apreensivo para o que se passa nos Estados Unidos, no Reino Unido e na França. Também em outros países como Itália, Hungria e o Brasil, cada um à sua maneira, a dinâmica de certas forças postas em movimento aumenta as incertezas do mundo actual. O mesmo se verifica na Espanha onde há muito muito dividiram o espaço político que anteriormente era dominado por duas forças políticas e em Portugal, onde recentemente no caso do Bairro da Jamaica deram sinais de estar a emergir. Cabo Verde não fica fora desse “filme” que está a desenrolar-se aos olhos de todos. As últimas manifestações de jovens em vários municípios da ilha de Santiago e anteriormente dos Sokols em S. Vicente sugere que algo está a mover-se. E se o que se passa noutras partes sinaliza o que pode vir a acontecer aqui é bom que os actores políticos e a sociedade se acautelem em relação às consequências de certas derivas.
De facto, não se pode pensar que Cabo Verde esteja “blindado” contra esses fenómenos. Há quase 30 anos, em 1989, não ficou imune aos efeitos da derrocada dos países comunistas na Europa de Leste e dos partidos de inspiração leninista no resto do mundo. Depois da visita a 26 de Janeiro de 1990 do papa polaco João Paulo II que tanto contribuiu para essa derrocada também o país se pôs em movimento. Menos de um ano depois terminou o regime do partido único e os caboverdianos viram-se em Liberdade e na Democracia. Se agora está-se perante ao que alguns estudiosos chamam de recessão da democracia não é de estranhar que os seus efeitos perniciosos tarde ou cedo se façam sentir. É, por exemplo, de esperar que também aqui se manifeste a tendência notada lá fora da perda de influência dos grandes partidos, do reforço de forças extremistas e do descrédito das instituições. Ou então que aumente a polarização social e política em detrimento do pluralismo, que o diálogo seja substituído por manifestações de indignação e de ressentimentos e que a tolerância ceda lugar a sentimentos de exclusão por razões políticas e outras. Aliás, tudo isso de uma forma ou outra já está presente. Falta é aparecer novos actores, novas forças políticas e novas formas de agir e participar na esfera pública. Mas sente-se que isso também já está na forja e que é uma questão de tempo e de oportunidade para darem sinal da sua graça. As três eleições, uma atrás da outra que se vão realizar em 2020 e 2021 poderão vir a ser esse momento.
Vários factores contribuíram para a actual recessão democrática nas democracias europeias e norte-americana. Destacam-se entre eles a crise económica financeira de 2007/2008, os efeitos da globalização no mercado de trabalho, o aumento da desigualdade social e a percepção de que os governos nacionais se mostram quase impotentes aos ditames de instituições supra nacionais e ao poder económico e financeiro das multinacionais. Sobre essa base de descontentamento acenderam-se paixões de base nacionalista e xenófoba recorrendo ao fenómeno das migrações, ao relativo insucesso das políticas do multiculturalismo e às ameaças do terrorismo. Daí foi um passo para que o medo, a indignação e o ressentimento instigados passassem a ser os propulsores utilizados por demagogos e populistas para se instalarem na esfera pública e em vários casos a ganhar eleições, a ocupar o espaço dos grandes partidos e a constituírem-se em verdadeiras alternativas de governação. Muitos eleitores por não se sentirem representados nos partidos tradicionais e por falta de confiança nos seus governos optaram por apoiar extremistas e demagogos seduzidos pelas promessas de soluções fáceis e rápidas para problemas complexos do país e da sociedade.
No caso de países como Cabo Verde o desencanto com a democracia pode também vir do facto de os cidadãos e eleitores não se reverem nos partidos do arco da governação. Tendem a manter um estado de permanente crispação política impedindo o debate e dificultando muitas vezes que iniciativas positivas sejam tentadas ou continuadas. No mesmo sentido vai a adopção generalizada pelos poderes eleitos de um modus operandi em que se está em campanha permanente e em que se submete-se as pessoas a múltiplas visitas e auscultações que depois não são seguidas de resultados imediatos. Acresce-se a isso o recurso sistemático no discurso político a figuras de vitimização, de descriminação e abandono para justificar a situação das pessoas. Com isso reproduzem-se relações de dependência na relação entre o político e o eleitor/cidadão que deixa as pessoas susceptível a demagogos e populistas, precisamente porque é uma relação que só faz crescer frustração e ressentimento.
Também não ajuda que políticas apresentadas como estratégicas para o país como a educação e formação, regionalização e inserção na economia mundial com o turismo, investimento directo estrangeiro e exportações depois não recebam tratamento prioritário em recursos, atenção de governantes e disponibilidade da administração pública e seus agentes. Quem disso se queixa são principalmente os jovens que ressentem-se da qualidade do ensino, essencial para a produtividade e competitividade do país, sacrificada pela opção em massificar até o ensino universitário. São os mesmos que não vêm a economia a criar postos de trabalho em número e qualidade porque os governantes não conseguem focar-se na atracção de investimento externo que, como mostram os dados recentes do INE, permitem ao país exportar, fazer do turismo o motor da economia e empregar milhares de pessoas. Ainda são os mesmos que ficam perplexos quando vêm o Cardeal Dom Arlindo Furtado expor com simplicidade as fragilidades óbvias da política de regionalização que tanta atenção tem requerido do governo nos últimos anos.
A verdade é que a situação actual do país em que já não é mais possível manter-se o modelo da reciclagem de ajudas externas, em que a dívida pública também já não permite que se contraia grandes créditos para investimentos públicos e em que a economia ainda não cresce o suficiente para as pessoas verem o futuro com algum optimismo pode vir a revelar-se perigosa. Há que encontrar uma saída e há que preparar o país e a suas gentes para o enorme desafio que é o desenvolvimento sob pena de, num futuro próximo, as populações virem a ser seduzidas por algum demagogo ou populista. E a tragédia da Venezuela está aí para relembrar o que invariavelmente resulta dos exercícios de populismo, quando os povos se deixam tentar por caminhos pretensamente fáceis.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 896 de 30 de Janeiro de 2019.