Para
os pessimistas, porém, a reacção inicial de muitos países em dar uma
resposta nacional à epidemia chegando mesmo a proibir exportações de
medicamentos, de equipamentos médicos e de materiais de protecção, foi
indício evidente que afinal nada mudou e que interesses mesquinhos e o
egoísmo continuam a prevalecer nas relações humanas.
A verdade é que, com as incertezas actuais quanto à duração da pandemia, quanto à rapidez com que se pode vir a desenvolver vacinas e estabelecer tratamento médico para os casos de infecção e também sobre as consequências sócio-económicas da crise, ninguém está em posição de prever qual será o futuro a médio prazo. Chances há que afinal os realistas poderão ter razão suficiente e que existe espaço para convergências num quadro de diálogo tanto a nível nacional como internacional, apesar de se conhecerem forças apostadas na divisão e em lançar uns contra os outros em nome da luta contra a desigualdade, a xenofobia e o racismo. O problema é saber para onde penderá a balança quando ainda a esfera pública dá sinais de bloqueio devido a guerras tribais entre os partidos, ao fomento do ódio e ao uso sistemático da vitimização e do ressentimento como formas de protesto e de luta política.
Provavelmente a evolução das democracias vai depender muito da forma como se ultrapassar a actual crise sanitária. Se depois de todos os sacrifícios passados rapidamente se regressar aos comportamentos e políticas habituais dificilmente não haverá mais polarização e propensão para dar ouvidos a populismos tanto da esquerda como da direita. Se pelo contrário se for por um outro “contrato social”, que focalize a atenção da sociedade em ganhar mais resiliência contra choques externos, em distribuir melhor a prosperidade criada e em criar mais oportunidades para todos, mais bem preparado se poderá estar para enfrentar crises futuras. É algo assente que o coronavírus não vai ser eliminado a curto ou médio prazo e que se terá de conviver com ele por algum tempo sujeitando-se todos a constrangimentos que se mostrarem necessários para conter surtos e quebrar cadeias de contágio. O nível elevado de colaboração que se terá de exigir só poderá ser mantida numa base de confiança entre o governo e os cidadãos alicerçada em políticas públicas nas quais a generalidade das pessoas veja vantagens reais e uma hipótese de futuro para as novas gerações.
Infelizmente os efeitos da pandemia sobre as pessoas em muitos países têm favorecido mais razões para desunião do que incentivos para um diálogo mais alargado na sociedade. A covid-19 torna mais saliente os males sociais, entre eles as posturas discriminatórias das instituições, o acesso diferenciado aos cuidados de saúde e as insuficiências habitacionais. É facto assente que a doença expôs por todo o lado com notável crueza a vulnerabilidade das populações e a precariedade da vida das pessoas. Nas condições específicas dos Estados Unidos da América veio à superfície com particular força o racismo sistêmico que ainda subsiste e cujos efeitos foram sentidos tragicamente no número desproporcional de mortes de afro-americanos devido à covid-19.
A morte lenta de George Floyd sob a pressão do joelho do agente da polícia vista por milhões de pessoas na televisão e nas redes sociais em todo o mundo acabou por encapsular os abusos e a discriminação que se vêm arrastando há séculos. Os protestos que se seguiram em todo o mundo realçaram o quão universal são os valores da liberdade e da igualdade e como se reage em choque quando a América falha em os seguir. Já não tão positivo foi a tentação de usar localmente esses protestos para fazer da vitimização e do ressentimento as vias para exprimir e denunciar condições discriminatórias e de reduzida oportunidade com que minorias, imigrantes e africanos se deparam em vários países, designadamente na Europa. O “estado de guerra” que daí resulta impede o diálogo e prejudica a convergência necessária dos vários grupos sociais para que individualmente e institucionalmente todos se ponham à altura dos princípios e valores civilizacionais nos quais dizem rever-se.
Cabo Verde não ficou de fora em toda esta movimentação. Também aqui está-se a contestar recorrendo à vitimização e ao ressentimento. Para dar corpo à vitimização esforça-se por trazer ao de cima o esclavagismo, quando é óbvio que a experiência cabo- verdiana é diferente das ilhas do Caribe e do Brasil e até de São Tomé e Príncipe. De facto, não há sistema de plantações com suas «casas grandes e senzalas» que aguente no regime de chuvas escassas de Cabo Verde, pontuado por secas e fomes sucessivas. Também procura-se cultivar o ressentimento e atirar as ilhas umas contra as outras servindo-se de narrativas que fazem de umas agentes de conspiração na discriminação e subalternização de outras. O facto de ao longo de cinco séculos na diversidade das nove ilhas ter emergido uma nação, uma língua e uma cultura não parece importar nada. Entretanto perde-se a oportunidade para a convergência a meio de uma crise cujos efeitos terríveis já lançaram o país numa recessão nunca antes vista.
Sem um esforço colectivo de encontrar o melhor caminho para o mundo pós covid-19 a disputa vai realmente quedar-se por quem fica com o controlo e a distribuição dos recursos. Nesse sentido a configuração social e económica com as suas desigualdades, falta de oportunidades e baixa produtividade só poderá autorreproduzir-se pois o mais provável é que irão repetir-se os modelos que num e noutro momento foram aplicados em Cabo Verde. Sem um olhar para a criação de riqueza não se vai ter a preocupação em potenciar o que já existe e funciona para diminuir o impacto da recessão e os seus efeitos no crescimento e no emprego.
Com a possibilidade de criar air bridges como propõe a TUI nos voos do Reino Unido para a ilha do Sal associados ao turismo all inclusive existente, por sua natureza mais restrito à zona dos hotéis, provavelmente haverá condições para se retomar a dinâmica económica com os operadores que são responsáveis por cerca de 80% do fluxo turístico, conquanto tudo seja bem planeado e gerido com segurança sanitária e o mínimo de risco de contágio para população. Ainda se poderá aproveitar das exigências especiais do momento para regular convenientemente a prestação de serviços aos hotéis e potenciar o impacto na economia local. No mesmo sentido de criar condições para o aumento da riqueza nacional dever-se-á dar maior importância à organização de uma logística de transporte de carga entre as ilhas de forma a melhorar a eficiência do mercado interno e por essa via se estimular a produção nacional de bens alimentares na agricultura, pecuária e pesca.
Ênfase na criação de riqueza só pode vir de uma atitude que rejeita a tentação fácil de vitimização para exigir reparação por males reais e imaginários e recusa alimentar ressentimento para extrair valor dos outros. Convergência num quadro plural e não de desunião deve ser a opção a ser feita. A covid-19 veio relembrar a nossa humanidade comum e os desafios que tem que ser enfrentados não num jogo de soma nula, mas sim com a convicção de que todos podem ganhar.
A verdade é que, com as incertezas actuais quanto à duração da pandemia, quanto à rapidez com que se pode vir a desenvolver vacinas e estabelecer tratamento médico para os casos de infecção e também sobre as consequências sócio-económicas da crise, ninguém está em posição de prever qual será o futuro a médio prazo. Chances há que afinal os realistas poderão ter razão suficiente e que existe espaço para convergências num quadro de diálogo tanto a nível nacional como internacional, apesar de se conhecerem forças apostadas na divisão e em lançar uns contra os outros em nome da luta contra a desigualdade, a xenofobia e o racismo. O problema é saber para onde penderá a balança quando ainda a esfera pública dá sinais de bloqueio devido a guerras tribais entre os partidos, ao fomento do ódio e ao uso sistemático da vitimização e do ressentimento como formas de protesto e de luta política.
Provavelmente a evolução das democracias vai depender muito da forma como se ultrapassar a actual crise sanitária. Se depois de todos os sacrifícios passados rapidamente se regressar aos comportamentos e políticas habituais dificilmente não haverá mais polarização e propensão para dar ouvidos a populismos tanto da esquerda como da direita. Se pelo contrário se for por um outro “contrato social”, que focalize a atenção da sociedade em ganhar mais resiliência contra choques externos, em distribuir melhor a prosperidade criada e em criar mais oportunidades para todos, mais bem preparado se poderá estar para enfrentar crises futuras. É algo assente que o coronavírus não vai ser eliminado a curto ou médio prazo e que se terá de conviver com ele por algum tempo sujeitando-se todos a constrangimentos que se mostrarem necessários para conter surtos e quebrar cadeias de contágio. O nível elevado de colaboração que se terá de exigir só poderá ser mantida numa base de confiança entre o governo e os cidadãos alicerçada em políticas públicas nas quais a generalidade das pessoas veja vantagens reais e uma hipótese de futuro para as novas gerações.
Infelizmente os efeitos da pandemia sobre as pessoas em muitos países têm favorecido mais razões para desunião do que incentivos para um diálogo mais alargado na sociedade. A covid-19 torna mais saliente os males sociais, entre eles as posturas discriminatórias das instituições, o acesso diferenciado aos cuidados de saúde e as insuficiências habitacionais. É facto assente que a doença expôs por todo o lado com notável crueza a vulnerabilidade das populações e a precariedade da vida das pessoas. Nas condições específicas dos Estados Unidos da América veio à superfície com particular força o racismo sistêmico que ainda subsiste e cujos efeitos foram sentidos tragicamente no número desproporcional de mortes de afro-americanos devido à covid-19.
A morte lenta de George Floyd sob a pressão do joelho do agente da polícia vista por milhões de pessoas na televisão e nas redes sociais em todo o mundo acabou por encapsular os abusos e a discriminação que se vêm arrastando há séculos. Os protestos que se seguiram em todo o mundo realçaram o quão universal são os valores da liberdade e da igualdade e como se reage em choque quando a América falha em os seguir. Já não tão positivo foi a tentação de usar localmente esses protestos para fazer da vitimização e do ressentimento as vias para exprimir e denunciar condições discriminatórias e de reduzida oportunidade com que minorias, imigrantes e africanos se deparam em vários países, designadamente na Europa. O “estado de guerra” que daí resulta impede o diálogo e prejudica a convergência necessária dos vários grupos sociais para que individualmente e institucionalmente todos se ponham à altura dos princípios e valores civilizacionais nos quais dizem rever-se.
Cabo Verde não ficou de fora em toda esta movimentação. Também aqui está-se a contestar recorrendo à vitimização e ao ressentimento. Para dar corpo à vitimização esforça-se por trazer ao de cima o esclavagismo, quando é óbvio que a experiência cabo- verdiana é diferente das ilhas do Caribe e do Brasil e até de São Tomé e Príncipe. De facto, não há sistema de plantações com suas «casas grandes e senzalas» que aguente no regime de chuvas escassas de Cabo Verde, pontuado por secas e fomes sucessivas. Também procura-se cultivar o ressentimento e atirar as ilhas umas contra as outras servindo-se de narrativas que fazem de umas agentes de conspiração na discriminação e subalternização de outras. O facto de ao longo de cinco séculos na diversidade das nove ilhas ter emergido uma nação, uma língua e uma cultura não parece importar nada. Entretanto perde-se a oportunidade para a convergência a meio de uma crise cujos efeitos terríveis já lançaram o país numa recessão nunca antes vista.
Sem um esforço colectivo de encontrar o melhor caminho para o mundo pós covid-19 a disputa vai realmente quedar-se por quem fica com o controlo e a distribuição dos recursos. Nesse sentido a configuração social e económica com as suas desigualdades, falta de oportunidades e baixa produtividade só poderá autorreproduzir-se pois o mais provável é que irão repetir-se os modelos que num e noutro momento foram aplicados em Cabo Verde. Sem um olhar para a criação de riqueza não se vai ter a preocupação em potenciar o que já existe e funciona para diminuir o impacto da recessão e os seus efeitos no crescimento e no emprego.
Com a possibilidade de criar air bridges como propõe a TUI nos voos do Reino Unido para a ilha do Sal associados ao turismo all inclusive existente, por sua natureza mais restrito à zona dos hotéis, provavelmente haverá condições para se retomar a dinâmica económica com os operadores que são responsáveis por cerca de 80% do fluxo turístico, conquanto tudo seja bem planeado e gerido com segurança sanitária e o mínimo de risco de contágio para população. Ainda se poderá aproveitar das exigências especiais do momento para regular convenientemente a prestação de serviços aos hotéis e potenciar o impacto na economia local. No mesmo sentido de criar condições para o aumento da riqueza nacional dever-se-á dar maior importância à organização de uma logística de transporte de carga entre as ilhas de forma a melhorar a eficiência do mercado interno e por essa via se estimular a produção nacional de bens alimentares na agricultura, pecuária e pesca.
Ênfase na criação de riqueza só pode vir de uma atitude que rejeita a tentação fácil de vitimização para exigir reparação por males reais e imaginários e recusa alimentar ressentimento para extrair valor dos outros. Convergência num quadro plural e não de desunião deve ser a opção a ser feita. A covid-19 veio relembrar a nossa humanidade comum e os desafios que tem que ser enfrentados não num jogo de soma nula, mas sim com a convicção de que todos podem ganhar.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 969 de 24 de Junho de 2020.