Sempre que se desencadeiam crises sejam elas
financeiras, económico-financeiras ou de outra natureza – como é
actualmente a pandemia provocada pelo coronavírus – e que medidas são
tomadas para mitigar os seus efeitos, vem à tona a questão do “risco
moral”. Interroga-se se os que de uma forma ou outra contribuíram para a
crise não estão a ser os maiores beneficiários das medidas tomadas na
sua contenção.
Aparentemente beneficiam
das novas facilidades como infusão directa de dinheiro no sector
privado, linhas de crédito com juros bonificados e garantias estatais
para além de outras facilidades de liquidez proporcionadas pelos bancos
centrais, sem que tenham assumido qualquer responsabilidade pelos
prejuízos causados. O grosso do custo entretanto fica com quem perdeu o
negócio ou o emprego, viu as suas poupanças desaparecerem e o seu futuro
ficar difícil com as incertezas criadas. Também ninguém desconhece que
em última instância, quando os efeitos da crise e o impacto da sua
mitigação vão somar à dívida pública, são os contribuintes a assumir o
fardo deixado pela incúria governativa e pelas falhas da regulação.
A questão do risco moral foi nos últimos 25 anos introduzida com a crise financeira asiática de 1997, retomada com a crise dos “hedge funds” em 1998 e denunciada veemente na sequência da crise de 2008 que começou por ser financeira para logo se revelar como crise económica, crise da dívida soberana e crise social. A indignação geral, quando se constatou a forma como muitos banqueiros e investidores saíram da crise mais ricos com os seus bónus e dividendos enquanto a generalidade das pessoas lutava contra o desemprego e a perda de rendimentos, serviu para lançar descrédito sobre as democracias.
O resultado foi a crise de representação que se seguiu, a descredibilização das instituições, a investida contra as elites e o progressivo desencanto com a globalização. Não espanta pois que nos últimos anos por todo o mundo tenha aumentado o fascínio pelas soluções populistas e pelos seus líderes mesmo quando se revelam autocráticos e incompetentes. A mover as pessoas estaria a percepção que uma elite cada vez mais rica beneficiava de um ambiente de progressiva globalização e de mais desregulação e que, quando algo corria mal, a carga e o infortúnio recaiam sobre a maioria, aumentando ainda mais a precariedade e as incertezas.
A resposta à crise provocada pela covid-19 foi ainda mais drástica do que nas crises anteriores. A urgência em quebrar cadeias de transmissão levou à quase total paralisação da economia e ao desemprego súbito de milhões de pessoas. As medidas de política tomadas por vários países, designadamente os três trilhões de dólares nos Estados Unidos, os 750 mais 800 bilhões de euros nos países da União Europeia e um trilhão de dólares no Japão juntos com estímulos de muitos bilhões feitos pela China e outros países não vão impedir que a economia mundial entre numa grande recessão económica só comparável à grande depressão dos anos trinta do século XX. Mesmo não havendo no caso uma elite que inequivocamente estivesse na origem da crise ou a tivesse facilitado, não se deixará de colocar a questão de quem irá beneficiar mais dos enormes estímulos feitos e se as medidas tomadas vão no sentido de criar as condições para uma retoma mais rápida ganhando todos ou se desproporcionalmente vão favorecer os «suspeitos do costume».
Há quem como a economista Mariana Mazzucato num artigo recente no Project Syndicate queira reduzir o risco moral associado às medidas anticrise e insista que sejam condicionadas. Sugere que se obrigue o Estado e o sector privado a agir e a investir de forma estratégica para conseguir um crescimento que atinja o maior número de pessoas. O objectivo é, recuperando rendimentos e diminuindo desigualdades sociais, se restaure o pacto social que mantém as democracias vivas, viáveis e dinâmicas e se ponha um travão às derivas populistas e autocráticas.
Nos países em desenvolvimento o problema de diminuição do risco moral coloca-se talvez com maior urgência. As dificuldades encontradas por esses países na busca de um desenvolvimento sustentável indicia as ineficiências já existentes na utilização de recursos próprios e dos recursos conseguidos via doações, empréstimos concessionados no âmbito da ajuda externa bilateral e multilateral. Ineficiências essas que se traduzem na apropriação por alguns de parte significativa dos fundos disponibilizados levando a desigualdades sociais gritantes, a par com a persistente vulnerabilidade e precariedade das populações que deles deviam beneficiar. As consequências desse estado de coisas tornam-se particularmente evidentes sempre que acontece algum choque externo sob a forma de secas ou inundações, baixa no preço internacional do principal produto de exportação ou súbita quebra na pujança económica dos principais parceiros. A pobreza aumenta, a dívida pública dispara e a pressão para se conseguir mais ajuda externa ganha um outro ânimo. Infelizmente ineficiências várias tendem a manter-se e os ciclos são repetidos ficando a população cada vez mais vulnerável enquanto as desigualdades aumentam e se aprofunda a polarização social.
Em Cabo Verde os três anos de seca consecutivos de 2017-2019 vieram comprovar o elevado grau de vulnerabilidade das populações rurais designadamente em Santiago, Santo Antão e Fogo. De pouco terá servido o programa do Banco Mundial que desde 2005 investiu na luta contra pobreza mais de 110 milhões de dólares ou as centenas de milhões de dólares investidos nos campos de Cabo Verde na mobilização de água, na construção de barragens, em sistemas de irrigação e nas múltiplas acções de formação e apoio directo ou indirecto às pessoas. Alguns terão tido ganhos, mas não as populações visadas. A questão que se coloca é se desta vez vai ser diferente.
A pandemia pôs o turismo que representa 25% do PIB em suspensão pelo menos por alguns meses. A necessidade de confinamento deixou milhares de pessoas que antes viviam da actividade informal numa situação de precariedade única. Os que que até Setembro vão beneficiar do novo regime de layoff simplificado com o salário reduzido a 70% vão ter que lidar com a incerteza sobre a continuidade futura da actividade em que actualmente labutam. O país não tem uma posição nas cadeias de valor internacional que lhe permita reactivar exportações de bens e serviços logo que findo os constrangimentos nos transportes se verificar a retoma da procura internacional. Quer isso dizer que não é certo que no pós covid-19 o país esteja em melhor posição de diminuir o défice orçamental, baixar a dívida pública e retomar os equilíbrios macroeconómicos indispensáveis ao desenvolvimento sustentável.
O facto de vir a receber grande volume de ajuda externa – o orçamento rectificativo prevê, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros, um montante de 144 milhões de euros que, ao que tudo indica, vai ser canalizado para garantir algum rendimento à população e liquidez à economia – não significa, como não significou antes, que investimentos adequados serão dirigidos estrategicamente para garantir expansão económica rápida no futuro. A tentação é como das outras vezes de se deixar incorrer em risco moral tomando como garantido que haverá sempre ajuda externa e repetir a forma de fazer as coisas que invariavelmente tem beneficiado uma minoria, deixando largas franjas da população numa situação de precaridade. A gravidade desta pandemia e o impacto único que está a ter o mundo é um forte aviso que não há muito espaço para esse tipo de comportamento e que de há muito passou o tempo para uma mudança de rumo e de atitude. Tomar uma resolução firme nesse sentido seria a melhor forma de celebrar os 45 anos de independência nacional que se completam no próximo dia 5 de Julho.
A questão do risco moral foi nos últimos 25 anos introduzida com a crise financeira asiática de 1997, retomada com a crise dos “hedge funds” em 1998 e denunciada veemente na sequência da crise de 2008 que começou por ser financeira para logo se revelar como crise económica, crise da dívida soberana e crise social. A indignação geral, quando se constatou a forma como muitos banqueiros e investidores saíram da crise mais ricos com os seus bónus e dividendos enquanto a generalidade das pessoas lutava contra o desemprego e a perda de rendimentos, serviu para lançar descrédito sobre as democracias.
O resultado foi a crise de representação que se seguiu, a descredibilização das instituições, a investida contra as elites e o progressivo desencanto com a globalização. Não espanta pois que nos últimos anos por todo o mundo tenha aumentado o fascínio pelas soluções populistas e pelos seus líderes mesmo quando se revelam autocráticos e incompetentes. A mover as pessoas estaria a percepção que uma elite cada vez mais rica beneficiava de um ambiente de progressiva globalização e de mais desregulação e que, quando algo corria mal, a carga e o infortúnio recaiam sobre a maioria, aumentando ainda mais a precariedade e as incertezas.
A resposta à crise provocada pela covid-19 foi ainda mais drástica do que nas crises anteriores. A urgência em quebrar cadeias de transmissão levou à quase total paralisação da economia e ao desemprego súbito de milhões de pessoas. As medidas de política tomadas por vários países, designadamente os três trilhões de dólares nos Estados Unidos, os 750 mais 800 bilhões de euros nos países da União Europeia e um trilhão de dólares no Japão juntos com estímulos de muitos bilhões feitos pela China e outros países não vão impedir que a economia mundial entre numa grande recessão económica só comparável à grande depressão dos anos trinta do século XX. Mesmo não havendo no caso uma elite que inequivocamente estivesse na origem da crise ou a tivesse facilitado, não se deixará de colocar a questão de quem irá beneficiar mais dos enormes estímulos feitos e se as medidas tomadas vão no sentido de criar as condições para uma retoma mais rápida ganhando todos ou se desproporcionalmente vão favorecer os «suspeitos do costume».
Há quem como a economista Mariana Mazzucato num artigo recente no Project Syndicate queira reduzir o risco moral associado às medidas anticrise e insista que sejam condicionadas. Sugere que se obrigue o Estado e o sector privado a agir e a investir de forma estratégica para conseguir um crescimento que atinja o maior número de pessoas. O objectivo é, recuperando rendimentos e diminuindo desigualdades sociais, se restaure o pacto social que mantém as democracias vivas, viáveis e dinâmicas e se ponha um travão às derivas populistas e autocráticas.
Nos países em desenvolvimento o problema de diminuição do risco moral coloca-se talvez com maior urgência. As dificuldades encontradas por esses países na busca de um desenvolvimento sustentável indicia as ineficiências já existentes na utilização de recursos próprios e dos recursos conseguidos via doações, empréstimos concessionados no âmbito da ajuda externa bilateral e multilateral. Ineficiências essas que se traduzem na apropriação por alguns de parte significativa dos fundos disponibilizados levando a desigualdades sociais gritantes, a par com a persistente vulnerabilidade e precariedade das populações que deles deviam beneficiar. As consequências desse estado de coisas tornam-se particularmente evidentes sempre que acontece algum choque externo sob a forma de secas ou inundações, baixa no preço internacional do principal produto de exportação ou súbita quebra na pujança económica dos principais parceiros. A pobreza aumenta, a dívida pública dispara e a pressão para se conseguir mais ajuda externa ganha um outro ânimo. Infelizmente ineficiências várias tendem a manter-se e os ciclos são repetidos ficando a população cada vez mais vulnerável enquanto as desigualdades aumentam e se aprofunda a polarização social.
Em Cabo Verde os três anos de seca consecutivos de 2017-2019 vieram comprovar o elevado grau de vulnerabilidade das populações rurais designadamente em Santiago, Santo Antão e Fogo. De pouco terá servido o programa do Banco Mundial que desde 2005 investiu na luta contra pobreza mais de 110 milhões de dólares ou as centenas de milhões de dólares investidos nos campos de Cabo Verde na mobilização de água, na construção de barragens, em sistemas de irrigação e nas múltiplas acções de formação e apoio directo ou indirecto às pessoas. Alguns terão tido ganhos, mas não as populações visadas. A questão que se coloca é se desta vez vai ser diferente.
A pandemia pôs o turismo que representa 25% do PIB em suspensão pelo menos por alguns meses. A necessidade de confinamento deixou milhares de pessoas que antes viviam da actividade informal numa situação de precariedade única. Os que que até Setembro vão beneficiar do novo regime de layoff simplificado com o salário reduzido a 70% vão ter que lidar com a incerteza sobre a continuidade futura da actividade em que actualmente labutam. O país não tem uma posição nas cadeias de valor internacional que lhe permita reactivar exportações de bens e serviços logo que findo os constrangimentos nos transportes se verificar a retoma da procura internacional. Quer isso dizer que não é certo que no pós covid-19 o país esteja em melhor posição de diminuir o défice orçamental, baixar a dívida pública e retomar os equilíbrios macroeconómicos indispensáveis ao desenvolvimento sustentável.
O facto de vir a receber grande volume de ajuda externa – o orçamento rectificativo prevê, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros, um montante de 144 milhões de euros que, ao que tudo indica, vai ser canalizado para garantir algum rendimento à população e liquidez à economia – não significa, como não significou antes, que investimentos adequados serão dirigidos estrategicamente para garantir expansão económica rápida no futuro. A tentação é como das outras vezes de se deixar incorrer em risco moral tomando como garantido que haverá sempre ajuda externa e repetir a forma de fazer as coisas que invariavelmente tem beneficiado uma minoria, deixando largas franjas da população numa situação de precaridade. A gravidade desta pandemia e o impacto único que está a ter o mundo é um forte aviso que não há muito espaço para esse tipo de comportamento e que de há muito passou o tempo para uma mudança de rumo e de atitude. Tomar uma resolução firme nesse sentido seria a melhor forma de celebrar os 45 anos de independência nacional que se completam no próximo dia 5 de Julho.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 970 de 1 de Julho de 2020.