Cabo Verde celebrou no passado dia 5 de Julho o
quadragésimo quinto aniversário da sua independência em circunstâncias
únicas. As comemorações aconteceram num momento de pico da epidemia da
Covid-19 e numa semana em que os números de casos confirmados no país
aproximam-se dos mil e quinhentos, na ilha do Sal e em Santa Cruz o
contágio dá sinais de acelerar e só nas ilhas do Fogo e da Brava ainda
não se registam casos.
A pandemia
constitui um choque global deixando a nu os problemas da pobreza,
desigualdade e discriminação. Nenhum país é poupado. Não sendo excepção,
seria de esperar que Cabo Verde usasse a data de 5 de Julho, que devia
ser de unidade nacional, para assumir o quanto se tem ficado aquém de
outros países insulares similares em matéria das metas de crescimento,
do emprego, da educação e da saúde. Podia-se aproveitar para uma
demonstração de unidade e firmeza para realmente se mudar de rumo na
condução do país de modo a que deixe de ser tão vulnerável e
dependente da generosidade externa.
Infelizmente tirando a disposição das personalidades e convidados nas cerimónias, cumprindo com as regras de distanciamento social, ficou-se pelo habitual ritual dos discursos a reconhecer mais uma vez que valeu a pena a independência nacional e a demonstrações de gratidão pelos que, como foi dito no acto da proclamação da independência, “se bateram na Guiné e estavam prontos e decididos para o combate armado em Cabo Verde”. O Presidente da República ainda reconheceu que Cabo Verde podia estar melhor, mas não elaborou muito para além dessa constatação. O facto de Cabo Verde ter um rendimento per capita três vezes menor que as Maurícias ou quatro vezes menor que das Seychelles, economia menos diversificada, níveis de educação e de saúde inferiores a esses países que têm praticamente os mesmos anos como países independentes não parece ser motivo suficiente para uma reflexão séria e honesta sobre a trajectória do país nos últimos 45 anos.
Nem a ameaça da pandemia sobre as populações vulneráveis, agravando a precariedade geral das pessoas, mostra-se suficiente forte para impedir que se continue a meter a cabeça na areia e a proclamar que Cabo Verde é um caso de sucesso e que bateu todos os prognósticos que o tinham como inviável. A ajuda externa e o hábito de se recorrer à generosidade internacional sempre que há secas, inundações, erupções vulcânicas epidemias ou alterações climáticas parece que tem o efeito de perpetuar o gosto pelo ilusionismo em que tudo é possível sem custo e sem um esforço colectivo para diminuir a dependência e lançar verdadeiramente as bases de um desenvolvimento sustentável. Nem a perspectiva de ver a dívida pública subir para níveis insustentáveis no mundo pós covid-19, com Cabo Verde e Angola a competirem pelos lugares cimeiros entre os países africanos mais devedores, consegue que se caia na realidade de um país dependente e frágil.
Há quem alimenta ainda a esperança que um dos choques externos venha a ter um efeito transformativo e finalmente ponha o país e os seus governantes numa outra relação com a realidade. O coronavírus parecia talhado para esse fim considerando as consequências graves sobre a saúde, o rendimento actual e as perspectivas de futuro que está a ter ao nível planetário. Paradoxalmente em muitos países não se verifica esse impacto transformativo. Talvez porque nalguns os governantes ciosos de demonstrar que venceram a luta contra o vírus apressaram-se a desconfinar. Noutros, os governantes desvalorizaram a situação e tardaram a reagir. Noutros ainda, a ineficácia da actuação centralizada do Estado dificultou a identificação dos problemas, impediu a coordenação e actuação atempada e não potenciou os recursos humanos e materiais existentes. Em todos esses casos as consequências notam-se imediatamente na resistência das pessoas em seguir as orientações das autoridades e em aceitar as recomendações feitas. Casos confirmados tendem a aumentar particularmente nos locais onde só um elevado nível de colaboração poderia substituir a falta geral de condições para se fazer distanciamento social e manter padrões aceitáveis de higiene.
No caso de Cabo Verde vê-se que se perdeu o potencial efeito transformativo da pandemia do coronavírus quando se persiste na mistificação do passado sem querer saber das origens das fragilidades do país e da sua perpetuação até ao presente e ainda se força uma descolagem da realidade com o convite à discussão da agenda “Cabo Verde Ambição de 2030”. Ou seja, lança-se uma névoa sobre o passado e faz-se uma fuga para o futuro. Nessas circunstâncias é evidente que lidar com o presente fica extremamente difícil. Exemplo disso é o ir e voltar atrás nas decisões sobre a circulação aérea e marítima na ânsia de propiciar o regresso da “normalidade” anterior correndo o risco de facilitar a transmissão do vírus para as ilhas mais desprotegidas, como aliás aconteceu. No mesmo sentido é a precipitação sobre o futuro da CVA e da TACV com pronunciamentos oficiais de garantia que vai continuar mesmo quando já não parece possível seguir o modelo de negócios do hub do Sal e se quer voltar aos voos étnicos e também com decisões em manter o leasing de três aviões praticamente inactivos durante a pandemia. Surpreendente ainda é o anúncio que se vai generalizar o ensino à distância e que para isso vão alocar verbas no orçamento rectificativo de 311 mil contos para “hardware” e sistemas de comunicação incluindo a compra anunciada pelo primeiro-ministro de 10 mil televisores e tablets. E como seria de esperar, para o “software”, ou seja, a criação de conteúdos e preparação dos professores fica-se por uma pequena verba de 21 mil contos.
Espanta a rapidez com que se fez a avaliação da experiência no ensino à distância nestes meses de covid-19 a ponto de se estar a investir nesta escala para a generalizar. É de se perguntar por que nunca se tinha pensado nisso apesar de as tecnologias da televisão de há muitas décadas terem sido generalizadas pelo mundo fora. Também é de se perguntar em que pé fica a luta pela qualidade e excelência. Será que mais uma vez vão ser sacrificadas em nome de um ensino massificado, do básico ao universitário, que, como todos hoje reconhecem, não serve o país. Muito menos poderá constituir a base para a economia do conhecimento que a agenda Cabo Verde Ambição 2030 supostamente propõe. A fuga em frente que se está a protagonizar configura ser mais uma reedição do jogo que se vem repetindo ao longo dos 45 anos de independência no qual a ênfase é colocada nos meios disponibilizados por parceiros internacionais ou mobilizados através da dívida pública em detrimento dos resultados na vida das pessoas e do retorno adequado dos investimentos feitos.
Fazer deste assalto do coronavírus um momento transformativo para o país deveria ser a oportunidade que supostamente todas as crises facultam. Infelizmente tudo indica que não vai acontecer e que vão continuar a reproduzir-se as vulnerabilidades e precariedade que a pandemia veio revelar com acuidade. E assim é porque como uma vez disse George Santayana “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.
Infelizmente tirando a disposição das personalidades e convidados nas cerimónias, cumprindo com as regras de distanciamento social, ficou-se pelo habitual ritual dos discursos a reconhecer mais uma vez que valeu a pena a independência nacional e a demonstrações de gratidão pelos que, como foi dito no acto da proclamação da independência, “se bateram na Guiné e estavam prontos e decididos para o combate armado em Cabo Verde”. O Presidente da República ainda reconheceu que Cabo Verde podia estar melhor, mas não elaborou muito para além dessa constatação. O facto de Cabo Verde ter um rendimento per capita três vezes menor que as Maurícias ou quatro vezes menor que das Seychelles, economia menos diversificada, níveis de educação e de saúde inferiores a esses países que têm praticamente os mesmos anos como países independentes não parece ser motivo suficiente para uma reflexão séria e honesta sobre a trajectória do país nos últimos 45 anos.
Nem a ameaça da pandemia sobre as populações vulneráveis, agravando a precariedade geral das pessoas, mostra-se suficiente forte para impedir que se continue a meter a cabeça na areia e a proclamar que Cabo Verde é um caso de sucesso e que bateu todos os prognósticos que o tinham como inviável. A ajuda externa e o hábito de se recorrer à generosidade internacional sempre que há secas, inundações, erupções vulcânicas epidemias ou alterações climáticas parece que tem o efeito de perpetuar o gosto pelo ilusionismo em que tudo é possível sem custo e sem um esforço colectivo para diminuir a dependência e lançar verdadeiramente as bases de um desenvolvimento sustentável. Nem a perspectiva de ver a dívida pública subir para níveis insustentáveis no mundo pós covid-19, com Cabo Verde e Angola a competirem pelos lugares cimeiros entre os países africanos mais devedores, consegue que se caia na realidade de um país dependente e frágil.
Há quem alimenta ainda a esperança que um dos choques externos venha a ter um efeito transformativo e finalmente ponha o país e os seus governantes numa outra relação com a realidade. O coronavírus parecia talhado para esse fim considerando as consequências graves sobre a saúde, o rendimento actual e as perspectivas de futuro que está a ter ao nível planetário. Paradoxalmente em muitos países não se verifica esse impacto transformativo. Talvez porque nalguns os governantes ciosos de demonstrar que venceram a luta contra o vírus apressaram-se a desconfinar. Noutros, os governantes desvalorizaram a situação e tardaram a reagir. Noutros ainda, a ineficácia da actuação centralizada do Estado dificultou a identificação dos problemas, impediu a coordenação e actuação atempada e não potenciou os recursos humanos e materiais existentes. Em todos esses casos as consequências notam-se imediatamente na resistência das pessoas em seguir as orientações das autoridades e em aceitar as recomendações feitas. Casos confirmados tendem a aumentar particularmente nos locais onde só um elevado nível de colaboração poderia substituir a falta geral de condições para se fazer distanciamento social e manter padrões aceitáveis de higiene.
No caso de Cabo Verde vê-se que se perdeu o potencial efeito transformativo da pandemia do coronavírus quando se persiste na mistificação do passado sem querer saber das origens das fragilidades do país e da sua perpetuação até ao presente e ainda se força uma descolagem da realidade com o convite à discussão da agenda “Cabo Verde Ambição de 2030”. Ou seja, lança-se uma névoa sobre o passado e faz-se uma fuga para o futuro. Nessas circunstâncias é evidente que lidar com o presente fica extremamente difícil. Exemplo disso é o ir e voltar atrás nas decisões sobre a circulação aérea e marítima na ânsia de propiciar o regresso da “normalidade” anterior correndo o risco de facilitar a transmissão do vírus para as ilhas mais desprotegidas, como aliás aconteceu. No mesmo sentido é a precipitação sobre o futuro da CVA e da TACV com pronunciamentos oficiais de garantia que vai continuar mesmo quando já não parece possível seguir o modelo de negócios do hub do Sal e se quer voltar aos voos étnicos e também com decisões em manter o leasing de três aviões praticamente inactivos durante a pandemia. Surpreendente ainda é o anúncio que se vai generalizar o ensino à distância e que para isso vão alocar verbas no orçamento rectificativo de 311 mil contos para “hardware” e sistemas de comunicação incluindo a compra anunciada pelo primeiro-ministro de 10 mil televisores e tablets. E como seria de esperar, para o “software”, ou seja, a criação de conteúdos e preparação dos professores fica-se por uma pequena verba de 21 mil contos.
Espanta a rapidez com que se fez a avaliação da experiência no ensino à distância nestes meses de covid-19 a ponto de se estar a investir nesta escala para a generalizar. É de se perguntar por que nunca se tinha pensado nisso apesar de as tecnologias da televisão de há muitas décadas terem sido generalizadas pelo mundo fora. Também é de se perguntar em que pé fica a luta pela qualidade e excelência. Será que mais uma vez vão ser sacrificadas em nome de um ensino massificado, do básico ao universitário, que, como todos hoje reconhecem, não serve o país. Muito menos poderá constituir a base para a economia do conhecimento que a agenda Cabo Verde Ambição 2030 supostamente propõe. A fuga em frente que se está a protagonizar configura ser mais uma reedição do jogo que se vem repetindo ao longo dos 45 anos de independência no qual a ênfase é colocada nos meios disponibilizados por parceiros internacionais ou mobilizados através da dívida pública em detrimento dos resultados na vida das pessoas e do retorno adequado dos investimentos feitos.
Fazer deste assalto do coronavírus um momento transformativo para o país deveria ser a oportunidade que supostamente todas as crises facultam. Infelizmente tudo indica que não vai acontecer e que vão continuar a reproduzir-se as vulnerabilidades e precariedade que a pandemia veio revelar com acuidade. E assim é porque como uma vez disse George Santayana “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 971 de 8 de Julho de 2020.