segunda-feira, julho 13, 2020

Fuga em frente

Cabo Verde celebrou no passado dia 5 de Julho o quadragésimo quinto aniversário da sua independência em circunstâncias únicas. As comemorações aconteceram num momento de pico da epidemia da Covid-19 e numa semana em que os números de casos confirmados no país aproximam-se dos mil e quinhentos, na ilha do Sal e em Santa Cruz o contágio dá sinais de acelerar e só nas ilhas do Fogo e da Brava ainda não se registam casos.
A pandemia constitui um choque global deixando a nu os problemas da pobreza, desigualdade e discriminação. Nenhum país é poupado. Não sendo excepção, seria de esperar que Cabo Verde usasse a data de 5 de Julho, que devia ser de unidade nacional, para assumir o quanto se tem ficado aquém de outros países insulares similares em matéria das metas de crescimento, do emprego, da educação e da saúde. Podia-se aproveitar para uma demonstração de unidade e firmeza para realmente se mudar de rumo na condução do país de modo a que deixe de ser tão vulnerável e dependente da generosidade externa.
Infelizmente tirando a disposição das personalidades e convidados nas cerimónias, cumprindo com as regras de distanciamento social, ficou-se pelo habitual ritual dos discursos a reconhecer mais uma vez que valeu a pena a independência nacional e a demonstrações de gratidão pelos que, como foi dito no acto da proclamação da independência, “se bateram na Guiné e estavam prontos e decididos para o combate armado em Cabo Verde”. O Presidente da República ainda reconheceu que Cabo Verde podia estar melhor, mas não elaborou muito para além dessa constatação. O facto de Cabo Verde ter um rendimento per capita três vezes menor que as Maurícias ou quatro vezes menor que das Seychelles, economia menos diversificada, níveis de educação e de saúde inferiores a esses países que têm praticamente os mesmos anos como países independentes não parece ser motivo suficiente para uma reflexão séria e honesta sobre a trajectória do país nos últimos 45 anos.
Nem a ameaça da pandemia sobre as populações vulneráveis, agravando a precariedade geral das pessoas, mostra-se suficiente forte para impedir que se continue a meter a cabeça na areia e a proclamar que Cabo Verde é um caso de sucesso e que bateu todos os prognósticos que o tinham como inviável. A ajuda externa e o hábito de se recorrer à generosidade internacional sempre que há secas, inundações, erupções vulcânicas epidemias ou alterações climáticas parece que tem o efeito de perpetuar o gosto pelo ilusionismo em que tudo é possível sem custo e sem um esforço colectivo para diminuir a dependência e lançar verdadeiramente as bases de um desenvolvimento sustentável. Nem a perspectiva de ver a dívida pública subir para níveis insustentáveis no mundo pós covid-19, com Cabo Verde e Angola a competirem pelos lugares cimeiros entre os países africanos mais devedores, consegue que se caia na realidade de um país dependente e frágil.
Há quem alimenta ainda a esperança que um dos choques externos venha a ter um efeito transformativo e finalmente ponha o país e os seus governantes numa outra relação com a realidade. O coronavírus parecia talhado para esse fim considerando as consequências graves sobre a saúde, o rendimento actual e as perspectivas de futuro que está a ter ao nível planetário. Paradoxalmente em muitos países não se verifica esse impacto transformativo. Talvez porque nalguns os governantes ciosos de demonstrar que venceram a luta contra o vírus apressaram-se a desconfinar. Noutros, os governantes desvalorizaram a situação e tardaram a reagir. Noutros ainda, a ineficácia da actuação centralizada do Estado dificultou a identificação dos problemas, impediu a coordenação e actuação atempada e não potenciou os recursos humanos e materiais existentes. Em todos esses casos as consequências notam-se imediatamente na resistência das pessoas em seguir as orientações das autoridades e em aceitar as recomendações feitas. Casos confirmados tendem a aumentar particularmente nos locais onde só um elevado nível de colaboração poderia substituir a falta geral de condições para se fazer distanciamento social e manter padrões aceitáveis de higiene.
No caso de Cabo Verde vê-se que se perdeu o potencial efeito transformativo da pandemia do coronavírus quando se persiste na mistificação do passado sem querer saber das origens das fragilidades do país e da sua perpetuação até ao presente e ainda se força uma descolagem da realidade com o convite à discussão da agenda “Cabo Verde Ambição de 2030”. Ou seja, lança-se uma névoa sobre o passado e faz-se uma fuga para o futuro. Nessas circunstâncias é evidente que lidar com o presente fica extremamente difícil. Exemplo disso é o ir e voltar atrás nas decisões sobre a circulação aérea e marítima na ânsia de propiciar o regresso da “normalidade” anterior correndo o risco de facilitar a transmissão do vírus para as ilhas mais desprotegidas, como aliás aconteceu. No mesmo sentido é a precipitação sobre o futuro da CVA e da TACV com pronunciamentos oficiais de garantia que vai continuar mesmo quando já não parece possível seguir o modelo de negócios do hub do Sal e se quer voltar aos voos étnicos e também com decisões em manter o leasing de três aviões praticamente inactivos durante a pandemia. Surpreendente ainda é o anúncio que se vai generalizar o ensino à distância e que para isso vão alocar verbas no orçamento rectificativo de 311 mil contos para “hardware” e sistemas de comunicação incluindo a compra anunciada pelo primeiro-ministro de 10 mil televisores e tablets. E como seria de esperar, para o “software”, ou seja, a criação de conteúdos e preparação dos professores fica-se por uma pequena verba de 21 mil contos.
Espanta a rapidez com que se fez a avaliação da experiência no ensino à distância nestes meses de covid-19 a ponto de se estar a investir nesta escala para a generalizar. É de se perguntar por que nunca se tinha pensado nisso apesar de as tecnologias da televisão de há muitas décadas terem sido generalizadas pelo mundo fora. Também é de se perguntar em que pé fica a luta pela qualidade e excelência. Será que mais uma vez vão ser sacrificadas em nome de um ensino massificado, do básico ao universitário, que, como todos hoje reconhecem, não serve o país. Muito menos poderá constituir a base para a economia do conhecimento que a agenda Cabo Verde Ambição 2030 supostamente propõe. A fuga em frente que se está a protagonizar configura ser mais uma reedição do jogo que se vem repetindo ao longo dos 45 anos de independência no qual a ênfase é colocada nos meios disponibilizados por parceiros internacionais ou mobilizados através da dívida pública em detrimento dos resultados na vida das pessoas e do retorno adequado dos investimentos feitos.
Fazer deste assalto do coronavírus um momento transformativo para o país deveria ser a oportunidade que supostamente todas as crises facultam. Infelizmente tudo indica que não vai acontecer e que vão continuar a reproduzir-se as vulnerabilidades e precariedade que a pandemia veio revelar com acuidade. E assim é porque como uma vez disse George Santayana “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 971 de 8 de Julho de 2020.

segunda-feira, julho 06, 2020

Risco moral

Sempre que se desencadeiam crises sejam elas financeiras, económico-financeiras ou de outra natureza – como é actualmente a pandemia provocada pelo coronavírus – e que medidas são tomadas para mitigar os seus efeitos, vem à tona a questão do “risco moral”. Interroga-se se os que de uma forma ou outra contribuíram para a crise não estão a ser os maiores beneficiários das medidas tomadas na sua contenção.
Aparentemente beneficiam das novas facilidades como infusão directa de dinheiro no sector privado, linhas de crédito com juros bonificados e garantias estatais para além de outras facilidades de liquidez proporcionadas pelos bancos centrais, sem que tenham assumido qualquer responsabilidade pelos prejuízos causados. O grosso do custo entretanto fica com quem perdeu o negócio ou o emprego, viu as suas poupanças desaparecerem e o seu futuro ficar difícil com as incertezas criadas. Também ninguém desconhece que em última instância, quando os efeitos da crise e o impacto da sua mitigação vão somar à dívida pública, são os contribuintes a assumir o fardo deixado pela incúria governativa e pelas falhas da regulação.
A questão do risco moral foi nos últimos 25 anos introduzida com a crise financeira asiática de 1997, retomada com a crise dos “hedge funds” em 1998 e denunciada veemente na sequência da crise de 2008 que começou por ser financeira para logo se revelar como crise económica, crise da dívida soberana e crise social. A indignação geral, quando se constatou a forma como muitos banqueiros e investidores saíram da crise mais ricos com os seus bónus e dividendos enquanto a generalidade das pessoas lutava contra o desemprego e a perda de rendimentos, serviu para lançar descrédito sobre as democracias.
O resultado foi a crise de representação que se seguiu, a descredibilização das instituições, a investida contra as elites e o progressivo desencanto com a globalização. Não espanta pois que nos últimos anos por todo o mundo tenha aumentado o fascínio pelas soluções populistas e pelos seus líderes mesmo quando se revelam autocráticos e incompetentes. A mover as pessoas estaria a percepção que uma elite cada vez mais rica beneficiava de um ambiente de progressiva globalização e de mais desregulação e que, quando algo corria mal, a carga e o infortúnio recaiam sobre a maioria, aumentando ainda mais a precariedade e as incertezas.
A resposta à crise provocada pela covid-19 foi ainda mais drástica do que nas crises anteriores. A urgência em quebrar cadeias de transmissão levou à quase total paralisação da economia e ao desemprego súbito de milhões de pessoas. As medidas de política tomadas por vários países, designadamente os três trilhões de dólares nos Estados Unidos, os 750 mais 800 bilhões de euros nos países da União Europeia e um trilhão de dólares no Japão juntos com estímulos de muitos bilhões feitos pela China e outros países não vão impedir que a economia mundial entre numa grande recessão económica só comparável à grande depressão dos anos trinta do século XX. Mesmo não havendo no caso uma elite que inequivocamente estivesse na origem da crise ou a tivesse facilitado, não se deixará de colocar a questão de quem irá beneficiar mais dos enormes estímulos feitos e se as medidas tomadas vão no sentido de criar as condições para uma retoma mais rápida ganhando todos ou se desproporcionalmente vão favorecer os «suspeitos do costume».
Há quem como a economista Mariana Mazzucato num artigo recente no Project Syndicate queira reduzir o risco moral associado às medidas anticrise e insista que sejam condicionadas. Sugere que se obrigue o Estado e o sector privado a agir e a investir de forma estratégica para conseguir um crescimento que atinja o maior número de pessoas. O objectivo é, recuperando rendimentos e diminuindo desigualdades sociais, se restaure o pacto social que mantém as democracias vivas, viáveis e dinâmicas e se ponha um travão às derivas populistas e autocráticas.
Nos países em desenvolvimento o problema de diminuição do risco moral coloca-se talvez com maior urgência. As dificuldades encontradas por esses países na busca de um desenvolvimento sustentável indicia as ineficiências já existentes na utilização de recursos próprios e dos recursos conseguidos via doações, empréstimos concessionados no âmbito da ajuda externa bilateral e multilateral. Ineficiências essas que se traduzem na apropriação por alguns de parte significativa dos fundos disponibilizados levando a desigualdades sociais gritantes, a par com a persistente vulnerabilidade e precariedade das populações que deles deviam beneficiar. As consequências desse estado de coisas tornam-se particularmente evidentes sempre que acontece algum choque externo sob a forma de secas ou inundações, baixa no preço internacional do principal produto de exportação ou súbita quebra na pujança económica dos principais parceiros. A pobreza aumenta, a dívida pública dispara e a pressão para se conseguir mais ajuda externa ganha um outro ânimo. Infelizmente ineficiências várias tendem a manter-se e os ciclos são repetidos ficando a população cada vez mais vulnerável enquanto as desigualdades aumentam e se aprofunda a polarização social.
Em Cabo Verde os três anos de seca consecutivos de 2017-2019 vieram comprovar o elevado grau de vulnerabilidade das populações rurais designadamente em Santiago, Santo Antão e Fogo. De pouco terá servido o programa do Banco Mundial que desde 2005 investiu na luta contra pobreza mais de 110 milhões de dólares ou as centenas de milhões de dólares investidos nos campos de Cabo Verde na mobilização de água, na construção de barragens, em sistemas de irrigação e nas múltiplas acções de formação e apoio directo ou indirecto às pessoas. Alguns terão tido ganhos, mas não as populações visadas. A questão que se coloca é se desta vez vai ser diferente.
A pandemia pôs o turismo que representa 25% do PIB em suspensão pelo menos por alguns meses. A necessidade de confinamento deixou milhares de pessoas que antes viviam da actividade informal numa situação de precariedade única. Os que que até Setembro vão beneficiar do novo regime de layoff simplificado com o salário reduzido a 70% vão ter que lidar com a incerteza sobre a continuidade futura da actividade em que actualmente labutam. O país não tem uma posição nas cadeias de valor internacional que lhe permita reactivar exportações de bens e serviços logo que findo os constrangimentos nos transportes se verificar a retoma da procura internacional. Quer isso dizer que não é certo que no pós covid-19 o país esteja em melhor posição de diminuir o défice orçamental, baixar a dívida pública e retomar os equilíbrios macroeconómicos indispensáveis ao desenvolvimento sustentável.
O facto de vir a receber grande volume de ajuda externa – o orçamento rectificativo prevê, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros, um montante de 144 milhões de euros que, ao que tudo indica, vai ser canalizado para garantir algum rendimento à população e liquidez à economia – não significa, como não significou antes, que investimentos adequados serão dirigidos estrategicamente para garantir expansão económica rápida no futuro. A tentação é como das outras vezes de se deixar incorrer em risco moral tomando como garantido que haverá sempre ajuda externa e repetir a forma de fazer as coisas que invariavelmente tem beneficiado uma minoria, deixando largas franjas da população numa situação de precaridade. A gravidade desta pandemia e o impacto único que está a ter o mundo é um forte aviso que não há muito espaço para esse tipo de comportamento e que de há muito passou o tempo para uma mudança de rumo e de atitude. Tomar uma resolução firme nesse sentido seria a melhor forma de celebrar os 45 anos de independência nacional que se completam no próximo dia 5 de Julho.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 970 de 1 de Julho de 2020.

segunda-feira, junho 29, 2020

Convergência vs. desunião

O SARS-Cov-2 por ser um vírus que potencialmente a todos pode infectar constituiu um candidato sério à categoria de ameaça existencial que poderia unir a humanidade. Assim pensaram muitos optimistas que viram na conjugação de esforços indispensável para se dar combate efectivo ao vírus o prelúdio de uma acção conjunta de todos os povos e nações que depois poderia ser dirigida para enfrentar os efeitos das alterações climáticas, lutar contra a pobreza global e criar as condições para paz e justiça no mundo.
Para os pessimistas, porém, a reacção inicial de muitos países em dar uma resposta nacional à epidemia chegando mesmo a proibir exportações de medicamentos, de equipamentos médicos e de materiais de protecção, foi indício evidente que afinal nada mudou e que interesses mesquinhos e o egoísmo continuam a prevalecer nas relações humanas.
A verdade é que, com as incertezas actuais quanto à duração da pandemia, quanto à rapidez com que se pode vir a desenvolver vacinas e estabelecer tratamento médico para os casos de infecção e também sobre as consequências sócio-económicas da crise, ninguém está em posição de prever qual será o futuro a médio prazo. Chances há que afinal os realistas poderão ter razão suficiente e que existe espaço para convergências num quadro de diálogo tanto a nível nacional como internacional, apesar de se conhecerem forças apostadas na divisão e em lançar uns contra os outros em nome da luta contra a desigualdade, a xenofobia e o racismo. O problema é saber para onde penderá a balança quando ainda a esfera pública dá sinais de bloqueio devido a guerras tribais entre os partidos, ao fomento do ódio e ao uso sistemático da vitimização e do ressentimento como formas de protesto e de luta política.
Provavelmente a evolução das democracias vai depender muito da forma como se ultrapassar a actual crise sanitária. Se depois de todos os sacrifícios passados rapidamente se regressar aos comportamentos e políticas habituais dificilmente não haverá mais polarização e propensão para dar ouvidos a populismos tanto da esquerda como da direita. Se pelo contrário se for por um outro “contrato social”, que focalize a atenção da sociedade em ganhar mais resiliência contra choques externos, em distribuir melhor a prosperidade criada e em criar mais oportunidades para todos, mais bem preparado se poderá estar para enfrentar crises futuras. É algo assente que o coronavírus não vai ser eliminado a curto ou médio prazo e que se terá de conviver com ele por algum tempo sujeitando-se todos a constrangimentos que se mostrarem necessários para conter surtos e quebrar cadeias de contágio. O nível elevado de colaboração que se terá de exigir só poderá ser mantida numa base de confiança entre o governo e os cidadãos alicerçada em políticas públicas nas quais a generalidade das pessoas veja vantagens reais e uma hipótese de futuro para as novas gerações.
Infelizmente os efeitos da pandemia sobre as pessoas em muitos países têm favorecido mais razões para desunião do que incentivos para um diálogo mais alargado na sociedade. A covid-19 torna mais saliente os males sociais, entre eles as posturas discriminatórias das instituições, o acesso diferenciado aos cuidados de saúde e as insuficiências habitacionais. É facto assente que a doença expôs por todo o lado com notável crueza a vulnerabilidade das populações e a precariedade da vida das pessoas. Nas condições específicas dos Estados Unidos da América veio à superfície com particular força o racismo sistêmico que ainda subsiste e cujos efeitos foram sentidos tragicamente no número desproporcional de mortes de afro-americanos devido à covid-19.
A morte lenta de George Floyd sob a pressão do joelho do agente da polícia vista por milhões de pessoas na televisão e nas redes sociais em todo o mundo acabou por encapsular os abusos e a discriminação que se vêm arrastando há séculos. Os protestos que se seguiram em todo o mundo realçaram o quão universal são os valores da liberdade e da igualdade e como se reage em choque quando a América falha em os seguir. Já não tão positivo foi a tentação de usar localmente esses protestos para fazer da vitimização e do ressentimento as vias para exprimir e denunciar condições discriminatórias e de reduzida oportunidade com que minorias, imigrantes e africanos se deparam em vários países, designadamente na Europa. O “estado de guerra” que daí resulta impede o diálogo e prejudica a convergência necessária dos vários grupos sociais para que individualmente e institucionalmente todos se ponham à altura dos princípios e valores civilizacionais nos quais dizem rever-se.
Cabo Verde não ficou de fora em toda esta movimentação. Também aqui está-se a contestar recorrendo à vitimização e ao ressentimento. Para dar corpo à vitimização esforça-se por trazer ao de cima o esclavagismo, quando é óbvio que a experiência cabo- verdiana é diferente das ilhas do Caribe e do Brasil e até de São Tomé e Príncipe. De facto, não há sistema de plantações com suas «casas grandes e senzalas» que aguente no regime de chuvas escassas de Cabo Verde, pontuado por secas e fomes sucessivas. Também procura-se cultivar o ressentimento e atirar as ilhas umas contra as outras servindo-se de narrativas que fazem de umas agentes de conspiração na discriminação e subalternização de outras. O facto de ao longo de cinco séculos na diversidade das nove ilhas ter emergido uma nação, uma língua e uma cultura não parece importar nada. Entretanto perde-se a oportunidade para a convergência a meio de uma crise cujos efeitos terríveis já lançaram o país numa recessão nunca antes vista.
Sem um esforço colectivo de encontrar o melhor caminho para o mundo pós covid-19 a disputa vai realmente quedar-se por quem fica com o controlo e a distribuição dos recursos. Nesse sentido a configuração social e económica com as suas desigualdades, falta de oportunidades e baixa produtividade só poderá autorreproduzir-se pois o mais provável é que irão repetir-se os modelos que num e noutro momento foram aplicados em Cabo Verde. Sem um olhar para a criação de riqueza não se vai ter a preocupação em potenciar o que já existe e funciona para diminuir o impacto da recessão e os seus efeitos no crescimento e no emprego.
Com a possibilidade de criar air bridges como propõe a TUI nos voos do Reino Unido para a ilha do Sal associados ao turismo all inclusive existente, por sua natureza mais restrito à zona dos hotéis, provavelmente haverá condições para se retomar a dinâmica económica com os operadores que são responsáveis por cerca de 80% do fluxo turístico, conquanto tudo seja bem planeado e gerido com segurança sanitária e o mínimo de risco de contágio para população. Ainda se poderá aproveitar das exigências especiais do momento para regular convenientemente a prestação de serviços aos hotéis e potenciar o impacto na economia local. No mesmo sentido de criar condições para o aumento da riqueza nacional dever-se-á dar maior importância à organização de uma logística de transporte de carga entre as ilhas de forma a melhorar a eficiência do mercado interno e por essa via se estimular a produção nacional de bens alimentares na agricultura, pecuária e pesca.
Ênfase na criação de riqueza só pode vir de uma atitude que rejeita a tentação fácil de vitimização para exigir reparação por males reais e imaginários e recusa alimentar ressentimento para extrair valor dos outros. Convergência num quadro plural e não de desunião deve ser a opção a ser feita. A covid-19 veio relembrar a nossa humanidade comum e os desafios que tem que ser enfrentados não num jogo de soma nula, mas sim com a convicção de que todos podem ganhar.
Humberto Cardoso 
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 969 de 24 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 22, 2020

Culpar os outros

Mais de duas semanas depois do fim do estado de emergência na ilha de Santiago a situação da Covid-19 em Cabo Verde não é a mais rósea. Os números de contágio quase de duplicaram passando de 406 casos no dia 29 de Maio para 781 no dia 16 de Junho.
No mesmo período confirmaram-se novos casos em S. Vicente e Boa Vista e os primeiros na Ribeira Grande de Santo Antão, Ribeira Brava em São Nicolau e em Santa Catarina de Santiago. Autênticos surtos verificaram-se em Santa Cruz e na ilha do Sal que elevaram em poucos dias o número de casos positivos nessas duas ilhas a 74 e 71 respectivamente, segundo dados do dia 16 de Junho. As razões para isso são múltiplas, mas certamente que não se resumem apenas à falta de colaboração ou de sentido de responsabilidade de franjas da população.
Aparentemente o processo de desconfinamento não correu de melhor forma e terá contribuído para isso a facilitação da circulação de pessoas pelas ilhas, o desejo de maior interacção social depois do período restritivo e algum descaso da população porque não se verificaram as piores previsões. Neste particular é de notar que a maior parte dos casos têm sido assintomáticos ou com sintomas leves e que mesmo em termos de óbitos não se atingiram os números alarmantes de outros países. Os casos de mortes, até agora sete, são apresentados como tendo entre as causas comorbidades detidas pelos pacientes e não qualquer sobrecarga ou deficiência nos cuidados prestados. Um outro factor a ter em conta é a ânsia das autoridades talvez preocupadas com a economia e a perda de rendimento das pessoas em fazer crer que a restauração da normalidade não tarda muito. Com a ideia de que se terá ganho a luta contra a Covid-19 é mais difícil para as pessoas cumprirem na íntegra as recomendações de distanciamento social e as transgressões tendem a multiplicar-se particularmente entre os jovens como se pode constatar dos dados estatísticos dos casos confirmados apresentados por faixa etária.
Processos de desconfinamento noutros países pelas mesmas ou outras razões foram acompanhados de surtos e picos de contágio. Em certos casos de maior gravidade como na China e na Coreia do Sul houve quem tenha falado numa segunda vaga da Covid-19. Poucos dias atrás a OMS veio reafirmar que ainda se trata da primeira vaga e que para enfrentar o recrudescimento de casos positivos a resposta das autoridades nunca deve ser complacente nem cair em triunfalismos. O coronavírus está bem presente, ninguém o eliminou e tem que se aprender a conviver com essa realidade até que apareçam vacinas ou se identificam tratamentos para as múltiplas complicações por ele provocadas.
Nesse sentido, além do rigor em manter restrições diversas com vista a impedir proximidade excessiva das pessoas, as autoridades devem melhorar continuamente a capacidade de testar, seguir e rastrear indispensável para se conter a transmissão do vírus. A colaboração das pessoas é essencial para o sucesso no combate ao vírus e no processo de retoma da economia. Para o conseguir como diz ao jornal Financial Times o presidente da câmara de Seul, a capital da Coreia do Sul, há que, a par de medidas de prevenção e de mitigação necessárias, mostrar humildade, ser capaz de recentrar posições e até de voltar atrás nas medidas tomadas e admitir erros.
A tentação oficial em Cabo Verde de apontar a falta de colaboração das pessoas como a causa principal das falhas no combate ao coronavírus não beneficia ninguém. Aconteceu no caso do surto do vírus na Boa Vista e está acontecer actualmente com os surtos nas ilhas de Santiago e do Sal. De facto, a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso nesse e noutros domínios da vida do país é sempre do governo. Governar não significa dividir responsabilidades e assumir que cada um faz a sua parte. De quem governa exige-se liderança com vista à criação de vontades e mobilização de energia e de recursos para consecução dos objectivos traçados. Um ingrediente essencial nisso tudo é a confiança que, para ser preservada, particularmente quando se enfrenta um inimigo existencial e desconhecido como o coronavírus SARS-cov-2, se exige humildade, capacidade de reconhecer erros e abertura para rever decisões erradas.
A verdade é que se levou demasiado tempo a ir atrás do vírus e não se fizeram testes suficientes e numa perspectiva epidemiológica que pudessem dar uma visão mais clara do que se passava em cada uma das ilhas antes de se pôr fim às restrições na circulação das pessoas. Também da mesma forma como não se ouviram durante demasiado tempo as vozes que diziam para testar, testar, não se prestou a devida atenção aos que diziam que num país de nove ilhas não era racional ter-se um único laboratório para testes de Covid-19 à espera de amostras vindas por barco ou avião fretado das outras ilhas. Noutros países mobilizaram-se universidades, profissionais de saúde na reforma e investigadores nos institutos e faculdades para participar do esforço que todos reconhecem ser fundamental de testar, seguir e rastrear. Em Cabo Verde, há umas duas semanas que se acrescentou equipamento ao laboratório do INDP em S. Vicente para poder fazer testes, só agora é que se está a falar em equipar a UNICV com um RT-PCR e quanto a prover o país de recursos humanos preferiu-se usar ajuda externa do Luxemburgo para trazer uma equipa cubana.
As declarações de estado de alerta, contingência, calamidade e por fim de emergência em Março, Abril e Maio tinham como objectivo primeiro ganhar tempo para o país se preparar para enfrentar a pandemia, impedir o colapso do sistema de saúde e adequar-se ao “novo normal” que se iria instalar de convivência com o vírus, das novas relações entre as pessoas e da nova realidade de um mundo pós-covid. Era de todo o interesse que políticas nesse sentido fossem consistentes e eficazes para granjear a colaboração de todos e para potenciar o esforço que seria exigido para adaptar o país às novas circunstâncias e evitar a ilusão de que se pode voltar à normalidade anterior. O facto de perante novas falhas se estar outra vez a apontar o dedo às pessoas em vez de avaliar onde a liderança do processo ficou aquém do que era esperado e outra vez estar-se a “ir atrás do vírus” como acontece na ilha do Sal, é caso para se interrogar se alguma vez se vai deixar de fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes.
Mais de duas semanas depois do fim do estado de emergência na ilha de Santiago a situação da Covid-19 em Cabo Verde não é a mais rósea. Os números de contágio quase de duplicaram passando de 406 casos no dia 29 de Maio para 781 no dia 16 de Junho. No mesmo período confirmaram-se novos casos em S. Vicente e Boa Vista e os primeiros na Ribeira Grande de Santo Antão, Ribeira Brava em São Nicolau e em Santa Catarina de Santiago. Autênticos surtos verificaram-se em Santa Cruz e na ilha do Sal que elevaram em poucos dias o número de casos positivos nessas duas ilhas a 74 e 71 respectivamente, segundo dados do dia 16 de Junho. As razões para isso são múltiplas, mas certamente que não se resumem apenas à falta de colaboração ou de sentido de responsabilidade de franjas da população.
Aparentemente o processo de desconfinamento não correu de melhor forma e terá contribuído para isso a facilitação da circulação de pessoas pelas ilhas, o desejo de maior interacção social depois do período restritivo e algum descaso da população porque não se verificaram as piores previsões. Neste particular é de notar que a maior parte dos casos têm sido assintomáticos ou com sintomas leves e que mesmo em termos de óbitos não se atingiram os números alarmantes de outros países. Os casos de mortes, até agora sete, são apresentados como tendo entre as causas comorbidades detidas pelos pacientes e não qualquer sobrecarga ou deficiência nos cuidados prestados. Um outro factor a ter em conta é a ânsia das autoridades talvez preocupadas com a economia e a perda de rendimento das pessoas em fazer crer que a restauração da normalidade não tarda muito. Com a ideia de que se terá ganho a luta contra a Covid-19 é mais difícil para as pessoas cumprirem na íntegra as recomendações de distanciamento social e as transgressões tendem a multiplicar-se particularmente entre os jovens como se pode constatar dos dados estatísticos dos casos confirmados apresentados por faixa etária.
Processos de desconfinamento noutros países pelas mesmas ou outras razões foram acompanhados de surtos e picos de contágio. Em certos casos de maior gravidade como na China e na Coreia do Sul houve quem tenha falado numa segunda vaga da Covid-19. Poucos dias atrás a OMS veio reafirmar que ainda se trata da primeira vaga e que para enfrentar o recrudescimento de casos positivos a resposta das autoridades nunca deve ser complacente nem cair em triunfalismos. O coronavírus está bem presente, ninguém o eliminou e tem que se aprender a conviver com essa realidade até que apareçam vacinas ou se identificam tratamentos para as múltiplas complicações por ele provocadas.
Nesse sentido, além do rigor em manter restrições diversas com vista a impedir proximidade excessiva das pessoas, as autoridades devem melhorar continuamente a capacidade de testar, seguir e rastrear indispensável para se conter a transmissão do vírus. A colaboração das pessoas é essencial para o sucesso no combate ao vírus e no processo de retoma da economia. Para o conseguir como diz ao jornal Financial Times o presidente da câmara de Seul, a capital da Coreia do Sul, há que, a par de medidas de prevenção e de mitigação necessárias, mostrar humildade, ser capaz de recentrar posições e até de voltar atrás nas medidas tomadas e admitir erros.
A tentação oficial em Cabo Verde de apontar a falta de colaboração das pessoas como a causa principal das falhas no combate ao coronavírus não beneficia ninguém. Aconteceu no caso do surto do vírus na Boa Vista e está acontecer actualmente com os surtos nas ilhas de Santiago e do Sal. De facto, a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso nesse e noutros domínios da vida do país é sempre do governo. Governar não significa dividir responsabilidades e assumir que cada um faz a sua parte. De quem governa exige-se liderança com vista à criação de vontades e mobilização de energia e de recursos para consecução dos objectivos traçados. Um ingrediente essencial nisso tudo é a confiança que, para ser preservada, particularmente quando se enfrenta um inimigo existencial e desconhecido como o coronavírus SARS-cov-2, se exige humildade, capacidade de reconhecer erros e abertura para rever decisões erradas.
A verdade é que se levou demasiado tempo a ir atrás do vírus e não se fizeram testes suficientes e numa perspectiva epidemiológica que pudessem dar uma visão mais clara do que se passava em cada uma das ilhas antes de se pôr fim às restrições na circulação das pessoas. Também da mesma forma como não se ouviram durante demasiado tempo as vozes que diziam para testar, testar, não se prestou a devida atenção aos que diziam que num país de nove ilhas não era racional ter-se um único laboratório para testes de Covid-19 à espera de amostras vindas por barco ou avião fretado das outras ilhas. Noutros países mobilizaram-se universidades, profissionais de saúde na reforma e investigadores nos institutos e faculdades para participar do esforço que todos reconhecem ser fundamental de testar, seguir e rastrear. Em Cabo Verde, há umas duas semanas que se acrescentou equipamento ao laboratório do INDP em S. Vicente para poder fazer testes, só agora é que se está a falar em equipar a UNICV com um RT-PCR e quanto a prover o país de recursos humanos preferiu-se usar ajuda externa do Luxemburgo para trazer uma equipa cubana.
As declarações de estado de alerta, contingência, calamidade e por fim de emergência em Março, Abril e Maio tinham como objectivo primeiro ganhar tempo para o país se preparar para enfrentar a pandemia, impedir o colapso do sistema de saúde e adequar-se ao “novo normal” que se iria instalar de convivência com o vírus, das novas relações entre as pessoas e da nova realidade de um mundo pós-covid. Era de todo o interesse que políticas nesse sentido fossem consistentes e eficazes para granjear a colaboração de todos e para potenciar o esforço que seria exigido para adaptar o país às novas circunstâncias e evitar a ilusão de que se pode voltar à normalidade anterior. O facto de perante novas falhas se estar outra vez a apontar o dedo às pessoas em vez de avaliar onde a liderança do processo ficou aquém do que era esperado e outra vez estar-se a “ir atrás do vírus” como acontece na ilha do Sal, é caso para se interrogar se alguma vez se vai deixar de fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 968 de 17 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 15, 2020

Política habitacional omissa

A problemática da habitação vai mais uma vez ao parlamento esta quarta-feira. Pela forma como o palco foi montado nas últimas semanas com denúncias na comunicação, visitas de deputados da nação e cenas de demolição de barracas sob protecção ostensiva da polícia e de militares, pode-se imaginar que o resultado do debate parlamentar não será muito diferente do já verificado em sessões anteriores.
As exigências a serem apresentadas para discussão, segundo declaração de deputados à imprensa, resumem-se à “distribuição de lotes para as pessoas de pouco renda, distribuição de lotes aos privados para a venda ou então o próprio Estado construir ou disponibilizar casas para venda”.
O direito à habitação, no entendimento geral, significaria que as pessoas teriam direito a casa própria e também que o Estado e as autarquias deveriam assumir a responsabilidade de proporcionar os meios para a sua efectivação. O facto de até agora essa política ser uma das principais razões pela situação de défice habitacional no país, pela existência de bairros degradados nos principais centros urbanos e pelo aparecimento das barracas nas ilhas da Boa Vista e Sal, parece não incomodar. Insiste-se na ideia peregrina de que todo o cabo-verdiano deve ter direito a um lote de terreno e à possibilidade de por si próprio nele construir a sua residência sem olhar às consequências que vão se acumulando ano após ano.
Uma das dissonâncias cognitivas produzidas por esse “direito inalienável” é a separação que na prática se faz entre habitação e economia como se fossem dois mundos à parte. Por um lado, não se vê que a edificação de casas constitui uma parte substancial do sector da construção civil e que como outros sectores deve poder orientar-se pela procura de ganhos de produtividade e de qualidade e ainda pela maior eficiência na utilização dos recursos humanos e físicos disponíveis. Resumindo, a informalidade na construção não deve ser norma. Por outro lado, não há aparentemente compreensão imediata que para se ter casa é preciso ter rendimento, seja para amortizar o financiamento de casa própria, seja para pagamento da renda. Ou seja, não é viável ter-se uma política de habitação separada de uma política de estruturação e modernização do sector da construção civil e de políticas de criação de emprego sustentáveis para a generalidade da população.
O chamado projecto Casa para Todos é o exemplo acabado do que acontece quando, por razões espúrias, não se dá atenção ao óbvio. Criou-se o projecto de habitação social, mas também com ofertas para as classes média e média baixa na base de um crédito de natureza comercial, mas com juros bonificados pelo Estado português. Como contrapartida ao subsídio, as obras seriam feitas por consórcios maioritariamente portugueses e utilizando material de construção de origem portuguesa até 60% do total. Pelo que se vê, o projecto não resultou da aplicação da poupança interna, não serviu para estimular e estruturar o empresariado nacional e não foi concebido como gerador de empregos. Aconteceu o contrário, o país agravou significativamente a sua dívida externa, o empresariado do sector de construção saiu fragilizado e por todo o país ficaram milhares de apartamentos por vender e por arrendar porque, ou por razões de custo, de localização ou da adequação dos imóveis, não havia mercado para os absorver.
Ainda se criou um banco, o Novo Banco, para completar a ilusão de que o projecto era racional e era viável. Como podia-se prever, logo à nascença dessa instituição, em 2010, o desfecho não foi o melhor. Quando finalmente se disponibilizaram os apartamentos já não havia o Novo Banco para financiar créditos aos eventuais compradores. Considerando o timing de lançamento do projecto Casa para Todos e da criação do Novo Banco nas vésperas de eleições legislativas, é natural pensar que existissem outras motivações por detrás. A verdade, porém, é que o défice habitacional continuou e as barracas aumentaram enquanto alguns milhares de apartamentos do projecto até agora permanecem sem destino certo.
Estranhamente, ainda hoje não há certeza de que o país reflectiu devidamente sobre a dimensão do erro cometido. Mesmo depois da dívida pública ter atingido os três dígitos, de ter aumentado o número de barracas e de se ser obrigado cinco anos depois a conviver com o espectáculo de prédios vazios e apartamentos sem compradores, ainda no confronto político se trocam acusações sobre quem é o culpado por ter feito e quem é culpado por não ter vendido. As questões de fundo sobre a política de habitação continuam sem resposta e persistem equívocos em como proceder para gerar riqueza, criar empregos e garantir rendimento sustentável às famílias. Também nota-se a tentação de se regressar sempre às opções e soluções que, por experiência repetida, conduzem a elefantes brancos e a ineficiências diversas e ao tipo de vulnerabilidades e de precariedade que, quando acontecem secas e outros choques externos, facilmente se revelam. É como se o país não tivesse capacidade de aprender, de alterar o rumo e de inovar a partir dos próprios erros, mesmo em situações extremas.
Um exemplo disso é a questão do emprego. Com a dinâmica do crescimento dos últimos anos, em particular do turismo e de actividades conexas, o desemprego aproximou-se da barreira que o podia fazer cair para um dígito. Provavelmente os empregos podiam ser maiores e mais qualificados se houvesse um esforço mais dirigido para se conseguir um maior impacto do turismo e melhorar os recursos humanos. Isso, porém, seria incompatível com discursos e políticas que dizem querer combater o desemprego, mas opõem-se ao chamado êxodo rural, e querem fixar as populações nas ilhas quando se sabe que para criar riqueza tem que se aumentar a produtividade e direcionar a mão-de-obra para os sectores mais produtivos da indústria e dos serviços. Também deve-se proporcionar mão-de-obra qualificada nos pontos de maior investimento e nesse sentido criar condições para migrações internas e programar formação profissional de forma a se ter mão-de-obra competitiva a nível global em sectores emergentes, particularmente nos domínios da tecnologia de informação e de comunicação.
Uma política habitacional adequada é essencial para se conjugar recursos financeiros físicos e humanos e obter o maior retorno possível em termos de criação de riqueza e de emprego. Infelizmente a debandada que se verifica actualmente em direcção às ilhas de origem na sequência da paralisia da economia ligada ao turismo e à aviação deixa antever que não se conseguiu criar nos jovens estabilidade e sentido de pertença essenciais para o sucesso de uma política de habitação nas ilhas turísticas. Se, de facto, está-se de passagem, não espanta que proliferem barracas e falhem as tentativas de produzir um crescimento urbano ordeiro e inclusivo. Da mesma forma, mantendo-se aliciante a ideia de trabalhar para o Estado, não há como evitar o crescimento descontrolado dos bairros particularmente na capital do país.
O grande desafio que se coloca é como harmonizar políticas de crescimento e de criação de emprego com a política de habitação de forma a garantir maiores ganhos para o país, diminuir a vulnerabilidade e precariedade das populações e manter viva a diversidade cultural enriquecedora das diferentes ilhas. Até agora tem imperado o desnorte nestas matérias com todas as consequências que se conhecem. Talvez seja desta que finalmente se trace um novo rumo que traga prosperidade e uma vida melhor para todos. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 967 de 10 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 08, 2020

Desafios do pós-confinamento

Depois de dois meses em estado de emergência a ilha de Santiago finalmente sai do confinamento domiciliário imposto à população e vê diminuídas muitas das restrições à actividade económica. Boa Vista duas semanas antes tinha sido aliviada das exigências do estado de emergência enquanto S.Vicente e as ilhas sem casos confirmados de covid-19 viram-se libertas das medidas de excepção a 2 de Maio.
Sente-se o suspiro de alívio do país, mas de facto não há muito espaço para baixar a guarda. O aparecimento dos primeiros casos na ilha do Sal e a importação de outro em S.Vicente vindo do Sal vieram relembrar que o fim do estado de emergência não significa que o país esteja livre do coronavírus.
Nem tão pouco implica que o desconfinamento e a diminuição de constrangimentos na circulação de pessoas constitui o regresso à normalidade social antes vivida. De facto, a pandemia persiste em todo o mundo e a possibilidade de surtos de coronavírus vai existir até que se crie uma vacina ou que a população de outra forma ganhe imunidade. Em qualquer dos casos não é algo que vai acontecer amanhã – as previsões apontam para mais de ano e meio – e por isso é fundamental que se adopte a atitude certa e se aprenda a conviver com o coronavírus, evitando contágio a nível individual, identificando surtos e movendo-se de forma rápida e efectiva para desmantelar eventuais cadeias de transmissão.
Com o fim do estado de emergência terminou uma etapa que a exemplo do que aconteceu noutros países procurou-se ganhar tempo para proteger os mais vulneráveis e para não sobrecarregar os serviços de saúde com um fluxo insustentável de pessoas infectadas. O quadro de excepção permitiu impor o confinamento das pessoas, indispensável para quebrar cadeias de contágio e conter a propagação do vírus, mas não para o eliminar. Nesse sentido parecem deslocadas e contraproducentes quaisquer manifestações de triunfalismo vindas de onde vierem. Tendem a fazer baixar a guarda da população, quando precisamente se quer que as pessoas mantenham um nível de alerta necessário em relação ao vírus e mostrarem-se dispostas a acatar as regras de distanciamento social para impedir a transmissão.
Tratando-se apenas de uma primeira batalha numa guerra que possivelmente vai ter mais episódios, deveria ser fundamental não se fazer aproveitamentos que pudessem prejudicar a colaboração essencial que de todos se espera para realmente se dominar a covid-19. Infelizmente não foi o que se viu na última sessão plenária da Assembleia Nacional em que o “regresso da política” aconteceu da pior forma. O surgimento de novos casos diariamente em Santiago e a eventualidade de nas outras ilhas virem a surgir surtos do vírus devia levar a uma atitude mais sóbria capaz não só de focalizar a atenção de todos nos efeitos da pandemia como também de manter a confiança nas autoridades sanitárias. Está-se num ano de eleições e é de evitar posições partidárias extremadas que podem interferir com a gestão da pandemia, como se vê acontecer nos Estados Unidos e no Brasil.
É assumido que à crise sanitária da covid-19 vai seguir uma crise económica e social. Crescimento negativo e desemprego resultante da paralisação da economia em todos os países afectados pelo coronavírus colocam desafios especiais de como gerir a quebra nos rendimentos da generalidade das pessoas, as incertezas trazidas pelo desaparecimento de certos tipos de negócios e pela suspensão por tempo desconhecido de outros, o aumento da pobreza e da precariedade de existência de muitos e as interrupções na vida académica e profissional de jovens a entrar na idade adulta. São questões complexas que só no quadro da Democracia e do pluralismo terão uma chance de encontrar soluções que respeitando a liberdade e o primado da lei tragam respostas para a necessidade de criar riqueza, garantir inclusão e limitar as desigualdades. Para isso, porém, é preciso ter partidos cientes das suas diferenças de políticas, mas capazes de construir entendimentos para se mitigar os efeitos da pandemia na economia e preparar o quadro de uma retoma. Ganhos de curto prazo ou a expensas do outro não têm aqui lugar porque a verdade é que o mundo pós/covid-19 vai ser muito diferente daquele que existia antes da pandemia e vai exigir políticas e investimentos que realmente capturem o futuro.
Olhando para outros países, vê-se por exemplo a União Europeia com o seu Fundo de Recuperação de 750 mil milhões de euros e a aposta na criação de riqueza vai investir nas tecnologias verdes, nas infraestruturas e na habitação, na reorganização e melhoria da resiliência das cadeias de abastecimento, no sistema de saúde para fazer face a crises futuras e especialmente no capital humano para os jovens se prepararem para um mundo em constante mudança. O objectivo como disse a Presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen é uma recuperação colectiva da Europa e a construção de um futuro comum em que ninguém fica para trás. Em Portugal, já está em discussão um plano que também vai completar infra-estruturas físicas e digitais, acelerar a transição digital na administração pública, escolas e universidades, potenciar investimento no sistema de saúde, apoiar redes logísticas na agricultura e na indústria e apostar nas energias renováveis e na exploração de recursos minerais. Como diz o mentor do plano, o engenheiro António Costa e Silva, há que acabar com a ladainha que o país não tem recursos. O que se tem de fazer é desenhar políticas públicas para criar valor, gerar riqueza e emprego.
Em Cabo Verde também um exercício de planificação do futuro terá que ser feito para que o país possa perspectivar retoma da economia, recuperar-se do desemprego actual e abrir o caminho para o futuro. A crise da covid-19 deverá servir para abrir os olhos de todos para os resultados das políticas aplicadas nos 45 anos de independência e que deixaram o país na situação de precariedade e de vulnerabilidade que hoje é impossível de ignorar. Insistir em fazer as mesmas coisas e em repetir as políticas do passado certamente não irão dar resultados diferentes dos que actualmente se constatam e que são manifestamente inadequados. Também a incapacidade de chegar a acordos entre os partidos em matérias de políticas de médio e longo prazo será um grande empecilho para se fazer diferente desta vez. Por último, não querer falar à Nação honestamente sobre os problemas do país e persistir nas visões fantasistas só vai continuar a alimentar o populismo, a semear a divisão e a nunca se poder colher e direcionar a energia necessária para levar o país para um outro rumo que finalmente lhe permita vencer a pobreza ancestral que sempre caracterizou estas ilhas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 966 de 03 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 01, 2020

O regresso da política

Passados os momentos piores da pandemia da covid-19, assiste-se em muitos países ao recrudescer da actividade política com as polarizações de sempre e em certos casos com as costumeiras ameaças de bloqueio.
O ambiente de consenso próprio de situações de emergência já começou a ceder lugar a desacordos em várias matérias designadamente como e quando proceder ao desconfinamento e à abertura da economia. A agitação social e política que se vê, por exemplo, na Espanha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos espelha essa dinâmica. Depois das subidas de popularidade que quase inevitavelmente quem está no governo a gerir a crise acaba por obter, nota-se a preocupação da oposição em ganhar outra vez protagonismo e em cumprir plenamente a sua função de fiscalização do governo e de promotor de ideias, perspectivas e políticas diferentes das defendidas pelo executivo. E é bom que assim seja, porque mesmo em estado de excepção não há suspensão da democracia. Para além disso o desafio de construir o futuro no pós-covid-19 tornou-se mais complexa e precisa da participação de todos, mas de uma forma livre e plural.
Estados de emergência, particularmente aqueles provocados por ameaças existenciais do tipo que o coronavírus representa, convidam a um certo unanimismo e servem de pretexto para derivas autoritárias. Com o foco em salvar vidas, tende-se a inibir perspectivas diferentes das preconizadas por quem está a dirigir os esforços de toda a colectividade. Igualmente com a disponibilização de todos os meios possíveis, em nome de maior eficácia na mitigação dos efeitos da pandemia, surge a tentação de fazer da concentração pontual de poder algo mais durável e talvez permanente. É de esperar que a tendência seja essa na medida em que estados de excepção, pela sua própria natureza, invariavelmente levam à deslocação de poder para o executivo na proporção inversa em que se vê diminuir o poder do parlamento e se verifica a compressão dos direitos dos cidadãos. Por definição, são estados temporários mas ninguém garante que não apareça quem queira tornar permanente uma nova configuração das competências dos órgãos de soberania com prejuízo para o parlamento, poder judicial e para os próprios indivíduos.
Isso está visivelmente a acontecer na Hungria de Viktor Orban com a subalternização do parlamento, com as tentativas de submissão dos tribunais e os ataques às minorias. Nos Estados Unidos e no Brasil está-se a ver como nenhuma instituição vai ficar ilesa de todos os ataques populistas e demagógicos que lhes são dirigidos diariamente. Mesmo nas democracias onde não são perceptíveis ataques ao Estado de Direito a coberto da “guerra” ao coronavírus é notório que no futuro próximo o poder executivo vai ficar mais forte e que, devido à recessão económica junto com altos níveis de desemprego, os indivíduos e a sociedade civil vão passar a depender mais do Estado. Conter os efeitos dessa tendência é um dos grandes objectivos da política no mundo pós-pandemia da covid-19. Os sinais de regresso da política são por isso bem-vindos. Não devem, porém, ser um regresso à política do antigamente que deixou bem claro as suas falhas, limitações e inadequações na revelada precariedade e vulnerabilidade de largas camadas da população constatada nas últimas semanas.
Em Cabo Verde, a Assembleia Nacional reúne-se na quarta-feira, dia 27 de Maio, com uma ordem de trabalhos densa e mais em linha com o que se verifica no período pré-covid-19. Até vai ter debate com o Primeiro-ministro o que não acontecia desde 19 de Fevereiro. O governo e a maioria parlamentar sempre que questionados sobre a ausência do PM justificaram a indisponibilidade do primeiro-ministro com as exigências da luta contra a covid-19. Em democracia porém as causas públicas ficam sempre prejudicadas quando são subtraídas de uma forma ou de outra à fiscalização legítima do parlamento. A eficácia do governo depende da confiança que granjear e conservar junto da população para que esta siga as suas orientações e cumpra as suas instruções. Contribui para essa confiança a disponibilidade do governo em responder pelas suas acções e explicar-se perante a Nação em sede do contraditório como acontece no parlamento. Em plena segunda guerra mundial o parlamento inglês, a grande referência dos regimes parlamentares, não deixou de se reunir, nem Churchill se esquivou a ir ao parlamento para justificar a condução da guerra. O problema é se com a desconfiança reforçada entre as bancadas por causa da subalternização do parlamento se venha ainda a constatar menos disponibilidade dos partidos para renovar a forma de fazer política e poder assim enfrentar os desafios enormes do mundo pós-pandemia.
A crise da covid-19 deixou a nu a precariedade da existência de muitos e as profundas vulnerabilidades ainda existentes em particular nas populações rurais e nas cinturas urbanas do país. Os efeitos socio-económicos imediatos da crise e a perspectiva do prolongamento da ameaça do coronavírus por um, dois ou mais anos, dependendo de vacinas e medicamentos antivirais que forem disponibilizados, obrigam a uma radical mudança de atitude dos partidos políticos. Não se pode realmente continuar a fazer mais do mesmo. A política não pode resumir-se a quem dá ou promete mais. Não deve ficar por quem instiga mais, quem se indigna mais e quem denuncia mais. Algum sentido colectivo de responsabilidade sobre a situação real do país neste ano dos 45 anos de independência devia servir de guia para entendimentos entre as forças políticas quanto ao que deve ser feito para não se repetir o passado. É fundamental que não se continue a reproduzir as condições que resultaram na pobreza a desigualdade tornadas notórias nestas últimas semanas. Tempos difíceis estão aí à porta e é bom que não se permita que a desesperança se instale.
É verdade que o ambiente político não é o melhor para entendimentos entre os partidos. Para além da desconfiança mútua renovada nos últimos tempos, há ainda a perspectiva de conquista do poder seguida de forte bipolarizacão que o próximo ciclo eleitoral, a começar pelas autárquicas em Setembro/Outubro vai colocar. A crescente dependência da população contribuirá para fazer do papel do Estado na economia e na sociedade um elemento-chave do posicionamento das forças políticas. Mais ajuda externa irá fazer da gestão dos recursos disponibilizados um elemento de contencioso forte entre os partidos com as habituais suspeições pelo meio. A conjugação de mais ajuda e mais pobreza poderá constituir um incentivo mais no sentido de se reproduzir modelos anteriores, com resultados já conhecidos, do que em lançar o país noutros caminhos de maior sustentabilidade dos ganhos conseguidos.
Ou seja, tudo vai concorrer para que mais uma vez um choque externo de grande envergadura não sirva de pretexto para se mudar o rumo do país. Seria porém de grande importância que não fosse assim. O regresso das tradicionais palmas nas reuniões plenárias do parlamento, depois do apelo ao unanimismo de conveniência que as calaram, deveria significar a assunção de um discurso aberto, franco e construtivo de todos os sujeitos parlamentares com vista a entendimentos de fundo para se enfrentar os grandes desafios actuais e futuros. O país agradeceria.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 965 de 27 de Maio de 2020.

segunda-feira, maio 25, 2020

Soltem os melhores anjos

Quando já nuvens negras pairavam sobre os Estados Unidos e se tornava real a possibilidade de uma guerra entre o Norte e o Sul Abraham Lincoln no seu discurso inaugural como presidente fez um apelo aos “melhores anjos da natureza” dos seus compatriotas no sentido de se ultrapassar as fracturas que ameaçavam a União.
Lincoln referia-se às qualidades cívicas e patrióticas formatadas por uma vivência e uma memória comum que vinha de várias décadas sob a égide da primeira Constituição que proclamou a igualdade de todos e estabeleceu como inalienáveis o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade. Não impediu o conflito e a guerra civil acabou por acontecer, deixando um rasto de mais de 500 mil mortos, mas a unidade do país foi salva, a escravatura foi extinta e a luta pela igualdade de todos com os seus altos e baixos tem, desde então, acumulado sucessos. Houve, pois, progresso e a expressão de Lincoln serve hoje de inspiração, em particular, na luta contra os nossos piores instintos.
Há quase uma década Steven Pinker num livro com o título “Os melhores anjos da nossa natureza” procurou demonstrar que a violência dos homens contra os seus pares nos últimos trezentos anos, não obstante as guerras mundiais, as guerras coloniais e a guerra fria tem diminuído consistentemente. Na sua tese, os melhores anjos têm prevalecido apesar de tudo. Na encruzilhada em que o mundo se encontra neste momento a enfrentar a pandemia e a crise económica, social e política, que ela estará a engendrar e que ninguém sabe qual vai ser o desfecho, é de augurar que os melhores anjos voltem a triunfar sobre os piores instintos das pessoas e das nações. A dimensão do desastre que ameaça a todos com milhões de desempregados em todo o mundo e a contracção violenta da economia na generalidade dos países deixa claro que o mundo pós-covid-19 vai ser diferente. Se não for um mundo dominado por nacionalismos e rivalidades entre as grandes potências , marcado por profundas fracturas sociais e globalmente mais pobre, terá que ser o mundo menos desigual, com mais e melhores oportunidades e com mais sentido de responsabilidade individual e colectiva. Também impõe-se que seja mais sensível à necessidade de uma defesa conjunta face a ameaças como pandemias e alterações climáticas e mais aberto a uma relação de maior harmonia dos homens com o planeta e com os outros seres vivos. Para isso os melhores anjos da nossa natureza terão que sair vencedores.
À partida não se vê qualquer garantia nesse sentido. Perante a pandemia, a postura da generalidade dos países tem sido de uma resposta para dentro, fechando fronteiras e chegando ao ponto de proibir exportações de material médico e de apoio à luta contra o coronavírus. Acusações mútuas são feitas em relação à origem da epidemia e tensões xenófobas desenvolvem-se rapidamente na presença de casos importados. Relutância dos mais poderosos tanto a nível global como de entidades como a União Europeia dificultam acções de resgate dos países mais frágeis perante o que alguns já chamaram do maior desastre económico desde a grande depressão dos anos trinta do século passado. Mesmo a cooperação no quadro das organizações multilaterais como a OMS tem sido marcada por disputas que não ajudam na mobilização dos meios e interferem com a eficácia de uma luta que para ser vitoriosa precisa da cooperação de todos.
É verdade que já há iniciativas do FMI e do Banco Mundial para apoio financeiro dirigido aos países mais pobres e aos emergentes e que há também um forte movimento no sentido da perdão da dívida externa dos países africanos. Consensos em como agir, porém, não são fáceis quando se sabe, por exemplo, que o Congresso americano tem que dar luz verde ao FMI e à China terá concordar com os termos da perdão da dívida. Mesmo na União Europeia discute-se arduamente como proceder para ajudar os países mais afectados pela pandemia por forma a que os países do Norte não se sintam sobrecarregados pelos problemas do Sul. Cooperações mais pacíficas acontecem no domínio da investigação do coronavírus e de possíveis vias para o tratamento da covid-19. Outras ainda, mas já não despidas de disputas, intrigas e jogadas pouco claras envolvendo empresas farmacêuticas, focalizam na procura de uma vacina que efectivamente pudesse pôr fim à pandemia. Em todas essas interacções é visível a luta entre, por um lado, as melhores intenções de contribuir para se encontrar uma solução para a pandemia e mitigar os seus efeitos económico e sociais e, por outro, os interesses mais rasteiros com destaque para o lucro e o orgulho nacional.
Em Cabo Verde, assim como na generalidade dos países em desenvolvimento e com grande dependência da generosidade externa, a nova realidade que irá emergir no pós-covid vai colocar desafios de outra natureza, mas não menos difíceis. Já se sabe que no âmbito da crise o Estado voltou a ganhar protagonismo com os seus programas de apoio às populações e às empresas. Na perspectiva do crescimento desse protagonismo com o aumento da ajuda internacional e a diminuição esperada do contributo do sector privado devido à quebra no turismo e na procura externa de bens e serviços, a tendência vai ser de aumento da dependência do Estado. Ficará a dever bastante da capacidade e da vontade dos governantes e das autoridades evitar que o actual momento de vulnerabilidade das populações se torne instrumental no resgate da mentalidade assistencialista que todos dizem repudiar.
Os muitos anos de reciclagem da ajuda externa deixou hábitos enraizados que se manifestam tanto na corrida para abocanhar recursos como na facilitação do acesso aos mesmos para exercer poder, assegurar lealdades e obter ganhos eleitorais. Corre-se o risco de reforçar tais hábitos se, numa situação em que realmente as pessoas precisam de ajuda, houver desvio do objectivo de promover mais autonomia e responsabilidade individual para obtenção de ganhos partidários de curto prazo. E pode contribuir para isso tanto as entidades que têm os meios para dar como também os concorrentes que alimentam reivindicações muitas vezes irrazoáveis só para granjear favor e deixar as autoridades em situação difícil. Vai depender em muito dos “melhores anjos” que souberem mobilizar para que não se sucumba mais uma vez à tentação do assistencialismo, condenando as populações à precariedade e à vulnerabilidade que numa situação de crise como a actualmente vivida se revela de forma tão gritante.

Cerca de um trilhão de dólares em ajuda externa foi concedida à Africa subsaariana nas últimas cinco décadas. A situação actual desses países deixa entender que todos esses recursos não serviram de muito para evitar a situação de pobreza das populações que agora directa ou indirectamente por causa da pandemia da covid-19 vai-se aprofundar ainda mais. Com o nobre propósito de ajudar os países africanos e outros a resistir ao coronavírus certamente que mais ajuda vai ser canalizada e algum perdão da dívida externa vai-se verificar. Seria de esperar que desta vez os fundos canalizados para esses países não aumentassem a dependência das populações e, pelo contrário, o seu impacto se revelasse à altura do justamente celebrado Plano Marshall do pós-guerra na Europa. Que se soltem “os melhores anjos da nossa natureza” para que se consiga tal desiderato.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 964 de 20 de Maio de 2020.

segunda-feira, maio 18, 2020

Encruzilhada

Na semana passada foi apresentado ao público um inquérito às empresas nacionais realizado pela Afrosondagem sobre os efeitos da covid-19 na actividade empresarial e sobre sua satisfação em relação às medidas adotadas pelo Governo para minimizar a crise económica. Foi uma boa iniciativa. Devia-se dar continuidade com um inquérito similar que recaísse sobre o universo das gentes nas ilhas numa outra perspectiva. Seria para compreender o impacto que os estados de emergência têm tido sobre as populações no aspecto económico, familiar e até emocional.
Poderia incluir também uma avaliação do sucesso da comunicação oficial na percepção e atitude da população em relação à pandemia do SARS-19-2 assim como a contribuição dos média em trazer informação objectiva e o papel representado pelas redes sociais como megafone e como espaço de conforto e de solidariedade de grupo. Uma sondagem nesse sentido seria de grande importância neste preciso momento em que está a chegar ao fim o terceiro estado de emergência e que ponderações diversas – tendo como pano de fundo a situação da covid- 19 na Praia e na ilha de Santiago – estarão ser feitas sobre a continuidade ou não do estado de excepção.
Casos confirmados na capital do país continuam a verificar-se todos os dias e não há sinais de que o ritmo de contágio esteja a abrandar. Aparentemente não seria o melhor momento para se deixar o estado de emergência em Santiago. Por outro lado, é visível o cansaço da generalidade das pessoas e as dificuldades vividas por muitos no sector privado e na actividade informal. O país, com perda brutal de receitas e sem perspectivas a curto prazo de reactivar o turismo, terá que contar com ajuda externa, perdão da dívida e investimento público para garantir à população um mínimo de rendimento e procurar posicionar-se para o que será o mundo pós-covid. Entretanto, precisa reabrir a economia mas, nas condições actuais em que há ainda muitas incógnitas em relação à evolução da pandemia, corre-se o risco de se ver a covid-19 agravar-se na ilha de Santiago e até de, com o fim das restrições na circulação marítima de passageiros e o início da esperada inversão do fluxo migratório em direcção às ilhas de origem, vir a aparecer nas que até agora não tiveram casos positivos.
Para evitar isso especial cuidado se deverá ter na definição de estratégias e em escolher vias e meios a ser adotados no processo de reabertura da economia. Indispensável também será manter a sociedade mobilizada para aguentar as restrições que só paulatinamente poderão ser levantadas. Porém não há garantias disso. Pelo contrário, notam-se sinais de que em certas franjas da sociedade a covid-19 poderá não estar a ser levada suficientemente a sério. A razão talvez seja porque a pandemia até agora não assumiu contornos dramáticos como sucede noutros países que passam semanas e meses de agonia com milhares de óbitos e um número elevado de doentes nas unidades de cuidados intensivos. Com uma população relativamente jovem, a tendência em Cabo Verde é de nos casos positivos as pessoas serem ou assintomáticas ou terem sintomas ligeiros. A constatação desse facto provavelmente tem levado a um certo descaso em relação à doença com consequências que se podem notar no elevado contágio de pessoas entre 20 e 40 anos e na surpreendente contaminação de crianças e adolescentes na faixa 0-20 que já está em cerca de 15% (40 em 270 no 12 de Maio) dos casos confirmados.
Vê-se a anomalia quando se compara com a percentagem de crianças infectadas no global de casos confirmados na China, Itália e nos Estados Unidos que estariam à volta de 2% segundo a CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças) americana citado pelo jornal Washington Post de 21 de Abril. Pode-se depreender disso que provavelmente a comunicação oficial sobre a covid-19 não estará a passar. De facto, quando pais jovens não protegem suficientemente as suas crianças porque parece que não reconhecem gravidade à doença, há mais do que motivo para preocupação. Se a comunicação não está a ser efectiva isso quererá dizer, primeiro, que a dinâmica de contágio não vai diminuir e só vai se acelerar com o fim das restrições. Segundo, que o número de infectados entre os idosos e os mais vulneráveis irá aumentar com as consequências que se conhecem. E finalmente, que a sociedade efectivamente falha em criar um obstáculo ao avanço da pandemia obrigando-se a manter períodos longos de confinamento se quiser enfrentar surtos sucessivos provocados pelo coronavírus.
O grande desafio que praticamente todos os países enfrentam na luta contra a covid-19 é como dar por fim o lockdown e reactivar a economia. Na Suécia, Singapura, Taiwan e Coreia do Sul não será tão difícil, porque, de facto, nunca chegaram a paralisar a economia para conter o coronavírus. Crucial para esses países foi a forte colaboração das pessoas que sem necessidade de declaração do estado de emergência souberam cumprir as regras básicas para conter o vírus. Por isso que em retrospectiva pode-se dizer que para eles foi fácil decidir pelo distanciamento social e pelo confinamento das pessoas às suas residências ao mesmo tempo que se levava à prática a opção de congelar a actividade económica com excepção da produção de bens fundamentais e de prestação de serviços essenciais. Noutros países tal tipo de civismo a par da enorme confiança nas autoridades não é assim tão perceptível. Compensa-se a falha com uma maior intervenção do Estado e um planeamento mais cuidadoso e meticuloso do processo da reactivação da economia.
Em Cabo Verde a crise do civismo, que vem de há muito e que não dá sinais de ter melhorado como seria desejável, sinaliza logo à partida que riscos apreciáveis existirão no processo de reabertura da economia. Como já tinha acontecido noutras emergências nacionais também não foi desta vez que a atenção de todos realmente se focalizou nas mudanças que terão de ser feitas para que se consiga diminuir a dependência do país e as vulnerabilidades da população. Continua a reinar a pequena política como se vê na questão da habitação, persistem as rivalidades institucionais que retiram eficácia a qualquer iniciativa governamental e insiste-se no discurso demagógico culpabilizante e vitimizador que afasta e bloqueia o debate necessário para se encontrar os melhores caminhos. Porém, mais cedo ou mais tarde, o reactivar da economia terá que ser feita. Seria de todo o interesse que a faixa etária hoje mais atingida pela covid-19 tomasse como desafio dar o combate sem tréguas ao vírus protegendo as crianças e os mais velhos e se tornasse no pivot do esforço nacional para libertar o país da dependência e vulnerabilidade que se vem alastrando por demasiado tempo. Não mais se vendo como vítima, a hora de afirmação desta geração finalmente terá chegado, professando um civismo e uma ética que a pandemia veio relembrar como fundamentais nesta encruzilhada em que a humanidade se encontra neste momento.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 963 de 13 de Maio de 2020.

segunda-feira, maio 11, 2020

O “novo normal”

Cabo Verde sujeita-se pela terceira vez a um estado de emergência no processo de luta contra a covid-19. Desta feita o estado de excepção não abrange todo o arquipélago e limita-se às ilhas da Boa Vista e de Santiago onde a epidemia está activa.
Nas restantes ilhas ensaia-se o caminho de regresso à normalidade. Apesar de não se ter ainda uma ideia clara e segura de que o país já terá passado o pior, especialmente quando casos positivos de contágio de coronavírus aumentam todos os dias na cidade da Praia, a decisão de diminuir as restrições nas outras ilhas foi recebida com evidente satisfação.
Vários outros países em particular na Europa posicionam-se no mesmo sentido e vão nesta e nas próximas semanas procurar reactivar a economia que ficou praticamente congelada durante os estados de emergência. A diferença com Cabo Verde é que passaram por semanas traumáticas com milhares de mortes e isso vai-se fazer sentir na atitude das pessoas e na forma como vão se comportar ao longo do processo. Certamente que não haverá euforia, mas sim contenção perante o que todos percebem que pode vir a se repetir no caso de uma segunda vaga e possivelmente de outras do vírus até o surgimento de uma vacina e a criação de imunidade de grupo.
A tarefa que se vai colocar a todos de reactivar a economia será de facto colossal. Como a ameaça do coronavírus vai-se manter por algum tempo, entre dois a três anos segundo a especialista Laurie Garrett numa entrevista ao New York Times, restrições diversas vão dificultar a retoma e manter o desemprego a níveis elevados enquanto novas formas de organização da produção de bens e serviços não forem estabelecidas. Os constrangimentos nas viagens vão impactar fortemente no turismo e na circulação global de homens de negócios, cientistas, desportistas e ainda na participação em eventos internacionais. A tendência já presente de algum nacionalismo económico poderá vir a acentuar-se com efeitos negativos no comércio internacional, com a reformulação das cadeias de valores, mudanças nos circuitos de abastecimento e outras manifestações de desglobalização.
Os países menos desenvolvidos serão os mais prejudicados, aprofundando-se ainda mais a dependência num ambiente político internacional mais complicado, porque marcado por rivalidades entre potências num mundo que deixou de ser unipolar, mas ainda sem a estabilidade de um mundo multipolar. À perda de receitas devido a quebras nos preços de matérias-primas e outras commodities ainda se irá juntar a diminuição brusca de remessas e o peso da dívida pública significativamente aumentada pela crise da covid-19. Para se ultrapassar uma crise desta magnitude provavelmente terá que reinar um espírito do tipo do Plano Marshall do pós Segunda Guerra Mundial que traga à luz novas relações de solidariedade mas acompanhadas de responsabilidade. Não há espaço para repetição de erros do passado que deixaram as populações em pior estado do que se encontravam antes das ajudas principalmente agora que a pandemia veio relembrar de forma brutal o quanto toda a humanidade está interconectada.
No caso de Cabo Verde, há que pelo menos ver a dimensão do que se perdeu, discernir as vias para recuperar a capacidade de crescer nos níveis anteriores e de se reinventar para se ajustar com vantagens no mundo pós-covid-19. À partida, nota-se que sem o turismo o desemprego que já se aproximava de um dígito disparou com particular impacto nas ilhas do Sal e da Boa Vista. Actividades conexas paralisaram-se e os cofres do Estado sofreram um rombo com a perda em impostos e taxas. Por aí vê-se que a procura externa, na forma do turismo, de exportações de bens e serviços e de aviação é o que nestes anos tem sido o grande motor da economia. É evidente que não se vai reconstruir de repente, mesmo depois da passagem desta primeira vaga da covid-19 e em voltando levará algum tempo para ter a dimensão do antes considerando os novos constrangimentos no que respeita a viagens, estadias e ajuntamentos. Por outro lado, sabe-se que não há procura interna que possa substituir os seus efeitos mesmo com todos os estímulos possíveis.
O grande desafio, quando se planeia voltar à normalidade que não será a de ontem, é como conseguir ganhos de eficiência no funcionamento do Estado, das empresas e dos mercados para que os custos de factores como água, energia e comunicações e o preço dos alimentos e outros bens se mantenham a níveis aceitáveis. Não se tem que fazer como de outras vezes que foram criadas linhas de crédito, dados benefícios fiscais e oferecidas garantias e depois não se obtiveram os resultados prometidos em dinâmica económica, emprego e exportações Como se veio a justificar depois, falhou a transmissão monetária, não havia capacidade para apresentar projectos, os potenciais investidores estavam em falta com a banca ou simplesmente não havia mercado que garantisse retorno dos investimentos. Agora não há muita margem para erros ou desperdício de recursos.
Provavelmente sem precedentes é a situação das populações nas ilhas turísticas que se debatem com o desemprego bem como as populações rurais que se viram limitadas na comercialização dos seus produtos pela covid-19 ou dos trabalhadores nas fábricas e na construção civil impedidos de trabalhar por razões de confinamento e distanciamento social. E a piorar a situação acrescenta-se a mais que provável baixa nas remessas dos emigrantes que enviadas da Europa e dos Estados Unidos constituem um complemento significativo do rendimento de muitas famílias. Garantir um rendimento mínimo a todos neste momento difícil da vida nacional e internacional e com o espectro da doença contagiosa e mortal à espreita é talvez o maior desafio que se coloca a qualquer governo, particularmente em Cabo Verde.
Assegurar o presente, porém, não chega. Esperar para se recomeçar no ponto em que se ficou no antes da covid-19 é ilusório. Retomar estratégias de ontem como se nada de fundamental mudou, pode revelar-se desastroso. Caso para ser visto é, por exemplo, o da aviação internacional que depois das enormes perdas e das restrições que irão ser impostas nas viagens vai levar anos para se recuperar. Pergunta-se em que pé ficarão a proposta do hub da Ilha do Sal e as privatizações no sector. Mesmo nos transportes internos é evidente que muitos dos pressupostos poderão ter-se alterado e há que ter presente todos os cenários considerando que as ligações aéreas e marítimas são vitais para o país.
Também há que ver os constrangimentos actuais com outros olhos. Se motivado pela condição de ilhas, tivesse sido feito aposta estratégica no funcionamento do Estado de forma descentralizada recorrendo às tecnologias de informação e comunicação, face à pandemia, não haveria grande quebra na produtividade e o teletrabalho dirigido para o mercado interno e externo já estaria mais avançado. Se estrategicamente se tivesse focalizado em formar profissionais de saúde, enfermeiras e outros prestadores de cuidados, profissões com alta procura em todo o mundo, muitos jovens hoje estariam bem posicionados para o mercado nacional e internacional.
Tirando de lado o que se poderia ter feito, há que agir no imediato para aumentar a capacidade de produção interna de alimentos (agricultura, pecuária e pesca) e ao mesmo tempo assegurar circuitos de distribuição e mercados que garantem rentabilidade. Há que continuar a aposta no turismo e avançar com investimentos estratégicos nas ilhas do Sal e da Boa Vista na habitação e no sistema sanitário que já deviam ter sido feitos. Finalmente, a pandemia veio relembrar a importância essencial de se poder socorrer as ilhas a qualquer momento e nesse sentido a importância de se ter uma guarda costeira profissional com meios marítimos e aéreos adequados para a busca e salvamento e garantia de segurança nas nossas costas e mares. A discussão do próximo orçamento rectificativo podia ser um bom começo na reflexão sobre como construir o “novo normal” que irá vigorar no pós covid-19.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 962 de 6 de Maio de 2020.

segunda-feira, maio 04, 2020

Jogada de risco

A menos de um mês do dia em que foi declarado o estado de emergência, no dia 29 de Março, Cabo Verde iniciou a 26 de Abril o processo de regresso à normalidade com o fim da situação de excepção nas ilhas sem casos confirmados de covid-19. Em S.Vicente, na Boa Vista e Santiago o estado de emergência irá continuar até 2 de Maio, dando-se por quase certo que será prolongado por mais dias ou semanas devido à dinâmica crescente do coronavírus nas ilhas de Santiago e Boa Vista.
A rapidez com que Cabo Verde se posiciona para diminuir as restrições que impõem o confinamento e obrigam ao distanciamento social quando comparado com outros países que já passaram pela pandemia causa alguma apreensão. A erupção do vírus na Boa Vista há duas semanas seguida dos casos de transmissão comunitária em Santiago na semana seguinte deixa a impressão de que agora é que a pandemia está a fazer a sua passagem pelo país. Se for o caso, não será o melhor momento para relaxar nos constrangimentos mas, pelo contrário, para se preparar para o embate identificando os focos de infecção e impedindo a criação de cadeias de contágio.
É verdade que não se confirmaram quaisquer casos em seis ilhas e que o caso único de S.Vicente surpreendentemente não conduziu, pelo menos até agora, a qualquer contágio identificável. Não se pode porém dizer que realmente se conhece a situação sanitária nessas ilhas. O número de testes realizados e a metodologia seguida na realização dos mesmos, “o correr atrás do vírus” dificilmente permitiria que se tivesse uma imagem certa da covid-19 no país e muito menos em cada ilha em particular. Não se sabendo precisamente o ponto da situação, com a diminuição das restrições corre-se o risco de ficar nas pessoas a ideia de que o pior já passou. E é próprio da natureza humana que não se descortinando perigo imediato no horizonte as pessoas adoptem com facilidade posturas mais relaxadas especialmente após quase quatro semanas de um confinamento sem precedentes na história do país.
Por isso mesmo é que a programação da diminuição de restrições deve ser feita e comunicada cuidadosamente para evitar que os ganhos conseguidos em habituar as pessoas ao “novo normal” não se perca na ilusão de regresso à normalidade anterior. Mesmo na Nova Zelândia em que, segundo a primeira-ministra Jacinda Ardern, a covid-19 praticamente foi eliminada, houve a preocupação de dizer às pessoas que foi ganha uma batalha, mas não a guerra e que o vírus pode voltar e singrar na população se novos hábitos não forem instituídos. Lá como cá a alternativa à existência de um alto sentido cívico e de dever para com o colectivo seria ficar a fechar e a abrir o país conforme as necessidades de combate ao coronavírus. Os custos porém acabariam por ser demasiado elevados.
Em todos os países que enfrentam a actual pandemia a questão de salvar as pessoas ao mesmo tempo que se procura preservar uma base económica para uma retoma de crescimento no futuro põe-se com grande acuidade. Cabo Verde não foge à regra com a diferença que a ponderação exigida na consecução desse objectivo é tarefa mais desafiante considerando as fragilidades do país e a sua dependência de um turismo que vai levar o seu tempo para se reconstruir e atingir o nível anterior. No país, à vulnerabilidade do mundo rural tornada maior pelos três anos de seca vieram juntar-se perdas de rendimentos de muitos outros devido aos constrangimentos que a covid-19 trouxe para a prática da economia informal e ao desemprego gerado pela paralisia da actividade turística e de outras actividades por ela dinamizadas. Sair do buraco não vai ser fácil particularmente quando a nível internacional está-se a falar do maior desastre económico desde a depressão dos anos 1930.
É um facto que crises oferecem muitas vezes oportunidades para mudanças importantes e até de dimensão histórica nos comportamentos, cultura institucional e selecção de prioridades. Cabo Verde parece ser um caso de excepção a essa regra. O país já passou por várias emergências nacionais algumas delas recentemente, caso da erupção do vulcão do Fogo, naufrágio do navio Vicente e o massacre de Monte Tchota. Não há muita evidência de que o país nestes anos todos se preparou para responder às exigências de um país arquipelágico em matéria de segurança, protecção contra calamidades e capacidade de apoio directo e imediato às populaçôes numa emergência. Vezes repetidas foram permitidos que interesses corporativos, protagonismos pessoais e outras razões espúrias se sobrepusessem a tudo o resto.
E mais uma vez a história parece repetir-se. Apesar do aparato montado, do dinheiro gasto e do protagonismo pessoal dos governantes e de outras autoridades alguns erros potencialmente catastróficos acontecem. Foi o que se passou na Boa Vista que num dia descobriu-se que tinha mais 45 casos confirmados e que dias depois foi dada como suposta origem da infecção que lançou Santiago para o topo dos casos confirmados da covid-19 em Cabo Verde. Acrescenta-se ainda que embora sem casos graves da doença que implicam maior exposição de profissionais de saúde já há exemplos de médicos e outros profissionais infectados, deixando transparecer nessas e noutras situações falhas graves nos protocolos que deviam ser rigorosamente seguidos no atendimento de doentes em tempos da covid-19.
A um outro nível nota-se um padrão no funcionamento e na relação entre os órgãos de soberania que foge à normalidade baseada no respeito pelo princípio da separação de poderes. O parlamento é praticamente suspenso durante o estado de emergência, deixa de haver conselhos de ministros seguidos de comunicados apresentados pelo porta-voz do governo e o PR preside a reuniões do primeiro-ministro com alguns ministros. Verbas avultadas são transferidas do Fundo de Emergência Nacional para o Ministério da Administração Interna sem aparentemente seguir o manual de procedimentos exigido pela lei que o criou em Novembro de 2018. Com alguma perplexidade nota-se que, no quadro publicado no BO de 25 de Abril, 91 mil contos, correspondente a cerca da metade da verba transferida, vai para a rúbrica “outros bens” enquanto 31 mil contos são alocados para “deslocações e estada” e 20 mil contos para “combustíveis e lubrificantes” ficando outros tantos 20 mil contos para despesas residuais enquanto que um total de 470 contos é destinado para medicamentos e material clínico. Não se fica com a impressão de que algo de fundamental mudou na gestão que se faz das situações de emergências no país. O que porém não dá sinal de desaparecer é a corrida para o protagonismo pessoal.
É pois com uma gestão que parece pecar por falta de estratégia que se está a aventurar em fazer um regresso à normalidade no preciso momento em que dados sugerem que na ilha com mais de metade da população do país pode-se estar no início da escalada do número de casos da covid-19. Entretanto a capacidade do sistema de saúde, apesar dos 113 casos confirmados, ainda não foi realmente testada porque na generalidade os casos são assintomáticos ou com sintomas leves não se registando até agora casos críticos. O aparecimento progressivo nos últimos dias de infectados nas idades de risco poderá mudar o padrão actualmente existente expondo o sistema de saúde a uma demanda até agora não experimentada. Ou seja, avança-se para a normalidade sem ter uma imagem clara da situação sanitária nas ilhas e sem que o sistema de saúde tivesse sido testado. É uma jogada com muitos riscos que talvez encontre alguma justificação na necessidade de pôr a economia a funcionar, mas que também pode deixar o país despreparado tanto em termos de meios inexistentes nalgumas ilhas como de capacidade de resiliência da população face à conhecida letalidade do coronavírus. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 961 de 29 de Abril de 2020.

segunda-feira, abril 27, 2020

Transmissão comunitária, a nova etapa

O estado de emergência foi prolongado por mais 15 dias a partir do dia 18 de Abril, mas agora com alguma flexibilidade dependendo das ilhas, no que respeita às exigências do confinamento e à duração do mesmo. O surto de casos da Covid-19 constatados no dia 14 na ilha da Boa Vista em que, de um dia para o outro, o número de confirmados passou de 11 para 56 certamente que terão contribuído para a decisão do Presidente da República em declarar o estado de emergência.
Porém, os quinze dias estabelecidos para o prolongamento do período de excepção poderão, porém, vir a demonstrar-se insuficientes. Algo mudou. O sucesso aparente com que as autoridades vinham gerindo o avanço da pandemia em Cabo Verde foi posto em causa. À erupção de casos na Boa Vista seguiu-se um novo surto na Cidade da Praia, em parte com raízes nessa ilha turística. A dinâmica de casos na capital nos três últimos dias sugere um agravamento da Covid-19 que, a continuar, irá pôr à prova como nunca antes o sistema de saúde do país no que respeita à qualidade e à resiliência dos seus recursos e também à capacidade psicológica, humana e material das pessoas. E isso, face à adversidade inesperada, temível e sem fim em vista.
O que aconteceu no Hotel Riu Karamboa faz lembrar a odisseia do navio cruzeiro Diamond Princess até ser autorizado a entrar no porto de Yokohama no Japão. Em plena viagem foram identificados dez casos de infecção pelo coronavírus. Quando finalmente desembarcaram os passageiros 700 pessoas estavam infectadas. A quarentena tinha falhado completamente e o vírus pôde circular quase que à vontade porque não foram rigorosamente postas em prática as indispensáveis medidas de higiene, de distanciamento social e confinamento que a situação exigia. Algo semelhante ter-se-à verificado no hotel da Boa Vista. Por causa de um turista infectado e posterior descoberta de um trabalhador contaminado 196 pessoas foram postas em quarentena. No fim do suposto confinamento de 25 dias, 45 foram descobertos com o coronavírus e posteriormente reconduzidos para isolamento, ficando os restantes em nova quarentena.
O problema é o hiato entre o momento em que os saídos do hotel foram para casa e o momento em que são chamados de volta pelas autoridades sanitárias. Ninguém sabe quantos mais foram infectados no intervalo em que estiveram com a família e amigos, possivelmente em festas e outras celebrações pela liberdade reconquistada. A partir daí o mais natural é recear-se pelo que poderá acontecer com a população em geral da ilha, a começar pelo bairro que a maioria habita. A ida e permanência por um total de 15 dias do Ministro da Administração Interna armado de novos poderes expressamente delegados pelo primeiro-ministro traduz a severidade da situação e a urgência em conter a transmissão do vírus. O aparecimento de casos na Praia ligados a pessoas infectadas na Boa Vista deixa saber que a contenção não está a ser perfeita e que efectivamente falhou, assim como tinha falhado a quarentena do Hotel Karamboa.
No assacar de responsabilidades os trabalhadores foram particularmente visados por alegadamente não terem seguidos as recomendações das autoridades. O facto, porém, é que levados para uma quarentena de quinze dias, algo correu mal e apareceram casos positivos e, na sequência, foram forçados a um novo confinamento que acabaram por cumprir em parte. Saíram para a comunidade com a autorização oficial sem que tivessem os resultados dos testes da Covid-19 que poucos dias antes tinham feito. Como aconteceu com o barco cruzeiro Diamond Princess parece evidente que a gestão da quarentena não foi a melhor. Pode-se culpabilizar as pessoas pelo comportamento e por não seguir as indicações dadas, mas não se pode descurar que a comunicação poderá não ter sido a melhor. A exemplo do que se passou noutros países, talvez não se tenha dado a devida atenção a muitas das crenças e preconceitos em relação à Covid-19 que muitos desenvolveram nestes meses da pandemia. Há quem pense, por exemplo, que a doença é dos brancos, dos velhos e dos climas frios.
Nos Estados Unidos tais crenças terão contribuído para algum descaso de elementos da comunidade afro-americana em relação às mensagens das autoridades sanitárias. Esse facto associado a outros factores estará, segundo alguns estudiosos, por detrás do número desproporcional de fatalidades entre os afro-mericanos nalgumas cidades, de cerca de 70% quando a comunidade compraz só cerca de 30% da população. Não é pois de espantar que jovens ou gente relativamente jovem não dê a devida atenção às recomendações. Pode-se ver nos dados do site covid19.cv que em Cabo Verde até agora os infectados pelo coronavírus são maioritariamente dos grupos etários dos vinte, trinta e quarenta anos. Há alguns teenagers e dois com mais de sessenta. Muitos são assimptomáticos, outros a doença não se tem tornado crítica e não há registo de mortes da Covid-19 para além do inglês.
A comunicação nestas condições encontra barreiras que têm de ser ultrapassadas para se conseguir o resultado que se quer de proteger os grupos vulneráveis e impedir que o sistema de saúde do país seja sobrecarregado com os casos mais graves da doença. Isso faz particular sentido no momento actual em que as autoridades já falam em transmissão comunitária. O coronavírus deixou de ser vírus importado ou de casos positivos encontrados em alguns trabalhadores de hotéis, na generalidade jovens e saudáveis, para ser agente de doença nos pais e avós e nas pessoas com doenças crónicas e outras debilidades com consequências gravosas. É preciso que se tenha bem presente a nova etapa que se está a entrar na luta contra a pandemia e o efeito que pode ter nas pessoas, na sociedade e no país.
Combater eventual pânico que poderá surgir exigirá que se reforçe a confiança das autoridades na luta contra a pandemia. Erros cometidos devem ser reconhecidos e assumidos. Mais competência científica, estratégica e executiva deve ser mobilizada. Espera-se mais proactividade na identificação de casos e no desmantelamento de cadeias de contágio. A comunicação deve ser melhorada para conseguir colaboração da população em particular dos mais novos e evitar depender exageradamente de medidas coercivas para atingir os objectivos de distanciamento social e confinamento dos mais vulneráveis. Finalmente, porque não se aproveitaram as medidas de excepção para conter a pandemia é que a transmissão comunitária está a acontecer, pelo menos em duas ilhas, de forma abrupta e potencialmente perigosa. Complacência, falta de autoridade e falta de sensibilidade no tratamento das situações prejudicaram as populações e o país em situações críticas no passado. Não se queira que isso venha acontecer quando o que está em jogo é a própria vida. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 960 de 22 de Abril de 2020.