quarta-feira, novembro 12, 2014

Precariedade de existência



JORNAL 676 DE 12 DE NOVEMBRO DE 2014


As poucas chuvas deste ano vieram relembrar o nível de vulnerabilidade em que se encontra parte significativa da população cabo-verdiana, particularmente no mundo rural. De todas as ilhas ouvem-se os lamentos das pessoas que vêem o seu investimento na sementeira desaparecer, as culturas perdidas e o gado em perigo de morrer por falta de pasto. Apesar dos milhões gastos estradas, barragens, reservatório e outras infra-estruturas a fragilidade de existência de milhares de pessoas não se alterou significativamente. Ainda qualquer solavanco, seja no regime ou na quantidade de chuvas caídas, é suficiente para colocar muita gente
em situação de carestia extrema com impacto na capacidade de se alimentarem, de cuidar dos filhos e de os manter na escola.

A promessa dos enormes investimentos públicos feitos no mundo rural está por se realizar. A actividade agrícola que o Governo chama pomposamente de agro-negócios depara-se com vários problemas: as culturas não são de alto valor acrescentado, a cadeia de oferta até chegar aos consumidores não está qualificada com a padronização dos produtos e a certificação de qualidade e o mercado continua incipiente devido ao estrangulamento dos transportes marítimos infrequentes e excessivamente caros. Os indivíduos e famílias envolvidos dificilmente conseguem um retorno adequado aos seus investimentos e esforço directo, não obstante os subsídios estatais na aquisição de equipamentos de rega, na compra da água, no apoio técnico e no combate às pragas. A precariedade de todo o processo é sentida sempre que se mexe de uma forma ou outra no custo de qualquer destes factores. É só ouvir o coro de protestos que se gera quando é alterado em poucos escudos o preço da água. Não estranha pois que um desvio no padrão das chuvas seja calamitoso. Ninguém consegue fazer poupanças em antecipação de eventuais momentos maus.

Em artigo recente publicado neste jornal o professor da Universidade de Harvard Dani Rodrik chamou a atenção para o facto que no actual estado de globalização não é fácil aos países subdesenvolvidos resolverem o seu problema de emprego com a rapidez vista anteriormente por via da industrialização voltada para a exportação. Os Tigres da Asia e mais recentemente as Maurícias cresceram e prosperaram dessa forma nos anos 60, 70 e 80. Mas com a ascensão da China e as transformações na manufactura mundial tirar gente dos campos e torná-las quatro vez ou mais produtivas a trabalhar em fábricas para exportação passou a ser mais difícil. O professor Rodrik não acredita que a alternativa de dirigir o emprego para serviços e produtos não transaccionáveis seja capaz de induzir crescimento significativo. Justifica-se dizendo que a pequena dimensão do mercado interno auto limita os ganhos em produtividade e força uma baixa de preços e da rentabilidade dos investimentos feitos. Certamente muitos do “agro-negócios” no país estão a passar por isso.

A fazer fé nesta análise há pelo menos duas conclusões a retirar: uma primeira, que provavelmente Cabo Verde, em décadas passadas, perdeu a oportunidade de resolver uma parte significativa do seu desemprego estrutural via industrialização virada para a exportação. Segunda conclusão, que muito do esforço dirigido para as chamadas actividades geradoras de rendimento no âmbito da luta contra pobreza e no fomento de micro e pequenas empresas podem revelar-se de sustentabilidade duvidosa e com efeitos limitados. É facto que projectos financiados no quadro desses programas sucedem-se ano após ano, mas a precariedade de existência de muitos dos beneficiados não se altera significativamente. O crescimento do PIB nos últimos três anos abaixo de 1% mostra que num quadro de diminuição do investimento público e do investimento directo estrangeiro essas actividades não se afirmam como motor de crescimento e pouco contribuem para o aumento da produtividade e da competitividade do país.

Constatar a contínua e persistente vulnerabilidade de largos sectores da população, ano após ano de investimentos que já fizeram o país atingir o limiar do endividamento público, devia levar a uma reflexão profunda sobre as opções feitas. No mesmo sentido devia-se questionar as prioridades assumidas, a qualidade dos investimentos e a sua conformidade ou não com visão de governação, que prometeu crescimento em dois dígitos e desemprego num dígito. Em matéria de benefícios, são claros e visíveis os ganhos políticos. O mesmo não se poderá dizer no que respeita às pessoas e à economia nacional. Não é tão claro que os benefícios já identificados justificam os custos incorridos.

A promessa do Governo em continuar a fazer o mesmo e a implementar as políticas de sempre no mundo rural não augura nada de bom para os que se vêem hoje em sérias dificuldades.  Nem perante resultados aquém dos definidos e programados  nota-se nos governantes uma preocupação em arredar caminho do já trilhado. Até parece que só resta às pessoas continuar a rezar para a chuva não falte.



quarta-feira, novembro 05, 2014

Custos de ineficiência



JORNAL 675 DE 05 DE NOVEMBRO DE 2014


O Primeiro-ministro José Maria Neves, em declarações à imprensa na semana passada alertou as pessoas para não andarem por lugares perigosos para se fazerem sempre acompanhadas de outras pessoas e evitar dar oportunidades e chances aos criminosos. O ministro de Justiça reconfirmou os avisos do PM aconselhando as pessoas para aprimorarem a sua vigilância própria e não serem surpreendidas por criminosos. Imagine-se o desconforto dos cidadãos perante tais declarações. Vindo do primeiro-ministro e do ministro da justiça tem o efeito aproximado de uma de confissão de impotência perante a criminalidade que vem assolando particularmente a capital do país.
Lei e ordem é o bem fundamental que todos os cidadãos esperam que o Estado garanta a todo o momento. É fundamental para assegurar o direito à vida; o exercício da liberdade depende dele e a expectativa de prosperidade individual e colectiva só pode verificar-se num quadro por ele criado. Recursos públicos são disponibilizados ao Estado para que cumpra esse dever básico de garantir a segurança de todos. O governo, com essa responsabilidade, depois de ter gasto milhões de contos todos os anos com a polícia e de ter até lançado as forças armadas na manutenção da tranquilidade e ordem públicas, não pode ficar pela simples constatação dos resultados medíocres em matéria de segurança e de combate à criminalidade e por apelos para que não se deixe que uma cultura de medo se instale entre nós.   
Os cabo-verdianos esperam ver liderança em matéria de segurança que traga resultados palpáveis e duradouros. A centralidade da liderança do Estado nesta matéria não deve ser escamoteada com declarações desculpatórias de que o Estado está a fazer a sua parte. Também para o Estado não é dignificante que, perante os avanços da criminalidade, se sinta na obrigação de dizer aos cidadãos para condicionarem a sua vida e a sua liberdade de movimentos. Para não andarem sozinhos por certos lugares em certas horas do dia ou da noite. Lugares esses não identificados mas que se conjectura serem os mesmos que segundo testemunhos dados na comunicação social não se vêem polícias e que também a polícia reconhece que não entra. Recentemente abortaram uma operação num bairro da capital estribando-se em falhas na iluminação pública.
A evidente ineficiência e ineficácia das políticas e das medidas de política no sector da segurança deixa qualquer pessoa apreensiva. Se esse grau de ineficiência e ineficácia se aplica a outros sectores da administração do Estado pode-se imaginar os problemas que poderão estar a acumular-se, alguns convenientemente debaixo do proverbial tapete, mas que tarde ou cedo poderão confrontar a todos. A esse respeito não são reconfortantes os sinais que vêem de sectores como transportes aéreos, transportes marítimos, energia e gestão portuária. Nem tão pouco de sectores como a educação, a saúde e mesmo a administração tributária que não obstante promessas múltiplas de membros do governo e do PM não se devolvem o IUR e o IVA devidos desde de 2008.
Muita de posição não invejável de Cabo Verde no relatório Doing Business do Banco Mundial (caiu quatro posições para 122º em 2015) deve-se à ineficiência e ineficácia da máquina estatal. Os custos que resultam desse estado de coisas são enormes. A economia ressente-se e não cresce. O Estado, confrontado com receitas decrescentes numa economia estagnada, procura com novos impostos tirar uma parcela maior da riqueza nacional, subtraída às famílias e às empresas. Um círculo vicioso destrutivo pode ser criado e pode bem ser capaz de arrastar a todos. Como em matéria de segurança, de nada vale o governo proclamar que o Estado já fez a sua parte se os resultados para os trabalhadores, para o sector privados e para toda a comunidade nacional se mostram desastrosos.  
Um pequeno Estado como Cabo Verde devia apostar em ter uma administração pública com elevado grau de profissionalismo, altamente comprometida com o interesse geral e portador de uma invejável cultura de serviço público. Essa é grande aposta que Singapura fez e em boa medida também a Maurícias. Sectores como Segurança e Educação brilham e o ambiente de negócios situa-se entre os melhores do mundo. Fundamental para que se chegue a esse patamar é não permitir que a administração pública seja veículo de uma orientação governativa virada para a propaganda e relações públicas. Sacrifica-se a isenção e a imparcialidade exigida aos agentes públicos, a verdade não é tida nem achada e a meritocracia torna-se uma miragem. Daí não podem vir bons resultados em nenhum sector.

quarta-feira, outubro 29, 2014

As regras do jogo são para respeitar



JORNAL 674 DE 29 DE OUTUBRO DE 2014


António Monteiro, líder da UCID, no debate sobre a situação da justiça disse que já “chega de acusar o governo por nada ou pouco fazer para resolver os problemas da justiça”. De seguida desafiou o Parlamento a “agir e a estudar soluções”. Compreende-se a frustração dos cabo-verdianos e, em particular, dos seus representantes nos partidos na oposição perante a falta de resultados mais palpáveis no sector de justiça. Esperava-se muito das reformas consensualizadas no processo de revisão constitucional de 2010. Mas facto é que o Tribunal Constitucional e os tribunais de segunda instância ainda não foram instalados, está para ser organizada a inspecção judicial e a morosidade da justiça persiste. A quem atribuir responsabilidade pelo fracasso?
O líder da UCID provavelmente cansou-se de chamar à pedra o governo e pensou ter encontrado uma saída no apelo ao Parlamento para que encontre uma solução. O problema é saber se isso é factível no nosso sistema político de cariz marcadamente parlamentar. Nas democracias, através de eleições, maiorias constituem-se e governam. Meios, na forma de impostos, de património existente e de recursos humanos, são postos à disposição do governo para implementarem a sua visão e atingirem os objectivos preconizados. O orçamento do Estado espelha as opções do Governo, define as suas prioridades e programa as acções de modo a se obter os resultados pretendidos. Nem os deputados da maioria e muitos menos os das minorias parlamentares conseguem alterar significativamente a posição do governo. A disciplina de voto assegura a concordância dos primeiros e os outros não somam votos suficientes para bloquear. Por isso se as acções programadas e orçamentadas não derem frutos, é o governo quem deve assumir a responsabilidade por isso. Aliás, se houver sucesso ninguém duvida quem o vai exibir com grande estrondo. Pois é! As coisas funcionam nos dois sentidos.
A sugestão do presidente da UCID provavelmente teria alguma razão de ser num regime presidencialista. Como aí a continuidade do governo está sempre assegurada, porque eleito directamente, qualquer proposta do orçamento é discutida e negociada com os deputados até se chegar a um acordo final. Mas não é o caso de Cabo Verde e não há vantagem nenhuma em discutir soluções para os problemas actuais do país recorrendo a institutos, normas e procedimentos que são de sistemas políticos completamente diferentes.
Ultimamente vem-se tornando “moda” extrapolar virtudes do que existe e funciona em outros sistemas sem a devida ponderação no que respeita à sua adequação ao nosso sistema político e ao impacto que teria a sua adopção. Porque há críticas quanto à relação entre eleitores e eleitos no sistema de listas plurinominais apresentadas pelos partidos, extrapolam-se as virtudes dos sistemas uninominais. Questões como coesão partidária, estabilidade governativa e possibilidade de representação de pequenos partidos no Parlamento não são tidas em conta. Já se fala em primárias e se esquece que a América que celebrizou esse modelo de escolha de candidatos também funciona na base de “lobbies” que financiam campanhas individuais. Os eleitos têm relações ténues com os respectivos partidos e isso não deixa de afectar a coerência da acção partidária seja no governo, seja na oposição.
Semanas atrás várias personalidades políticas foram confrontadas com a possibilidade de eleições únicas em Cabo Verde. Mais uma vez nem a apresentação dos casos dos Estados Unidos e do Brasil como exemplo chamou atenção para a sua natureza de regimes presidencialistas. No sistema presidencialista se houver impedimentos no cumprimento do mandato, ou há o vice-presidente para substituir o presidente até o fim do mandato, ou fazem-se eleições intercalares (byelections), ou nomeiam-se senadores para terminar o mandato. No sistema parlamentar, o governo pode cair, o parlamento pode ser dissolvido, o presidente da república pode renunciar ou ficar impedido. Em qualquer dos casos realizam-se eleições que iniciam novo mandato ou uma nova legislatura. É evidente que nestas condições não é possível manter uma eleição única para todos os órgãos de poder político. A excepção são as eleições autárquicas. Realizam-se todas no mesmo dia.
Ninguém consegue aprender o jogo de xadrez insistindo em usar regras do jogo de damas”. O que é óbvio neste dito popular devia também sê-lo quando aplicado às democracias. Cultura democrática ganha-se no jogo democrático respeitando as regras existentes. Em Cabo Verde muita da crispação política, do conflito de competências entre os órgãos de soberania e entre outras instituições do Estado e também muito da desresponsabilização pelo que acontece no país deriva da atitude em tomar as regras e a lei como algo que só se aplica e se respeita quando for vantajoso para pessoas ou para alguma entidade em particular. A ausência de um árbitro dedicado, que neste caso deveria ser o Tribunal Constitucional, eterniza conflitos, deixa impune quem prevarica na violação das regras do jogo e deixa desprotegido minorias e cidadãos. Mais uma razão para se conseguir a instalação do Tribunal Constitucional o mais rápido possível.

quarta-feira, outubro 22, 2014

Marasmo institucional




JORNAL 673 DE 22 DE OUTUBRO DE 2014


O Presidente da República a dado momento do seu discurso na abertura do Novo Ano judicial fez um veemente apelo a todos os caboverdeanos:     Não tenhamos receio de enfrentar a realidade, não nos deixemos levar por interpretações convenientes, não tenhamos medo de buscar a verdade”. O apelo justifica-se. Não se pode ignorar mais a atitude conformista, acrítica e passiva das pessoas enquanto os problemas, designadamente económicos e sociais, se amontam e soluções para o futuro são adiadas.
O governo optou por lidar com o país pela via do marketing político e pela propaganda. Questões como a debilidade da economia, os problemas do desemprego, a insegurança, a inadequação do ensino e formação e a degenerescência do tecido social são “desvalorizadas” ou atiradas para “debaixo do tapete”. A governação é demasiado condicionada pela política do curto prazo, pela gestão das expectativas e pela preocupação em manter tudo e todos sob controlo. Constroem-se barragens, portos e aeroportos, inauguram-se centenas de habitações sociais, investem-se centenas de milhões em sistemas eléctricos mas os problemas continuam. Opções desajustadas, prioridades trocadas e ineficiências no uso das infraestruturas, levaram a que os resultados dos investimentos ficassem aquém dos previstos. Não se conseguiu alavancar o crescimento económico, nem consolidar o sector privado nacional e nem resolver o problema do desemprego.
O Cabo Verde dos rankings internacionais e da “boa governação” não coincide com o país real. Todos sentem isso mas, em geral, só reagem, e defensivamente, quando isso é apontado por estrangeiros em artigos de jornal ou recentemente num documentário televiso.
A Justiça é um dos sectores em que a percepção geral é de que funciona mal. As críticas feitas ao sector centram-se normalmente na questão da morosidade. Na intervenção referida anteriormente o PR fez questão de demonstrar que o sentimento de falta de justiça por parte da população tem uma base mais alargada. É afectado, por exemplo, pela relação com a administração pública onde por vezes princípios constitucionais como isenção, imparcialidade e de fundamentação não são aplicados. Também é afectado pela relação com a polícia de quem se espera prontidão, discernimento e efectividade na defesa dos direitos dos cidadãos e nas operações de combate ao crime, mas que demasiadas vezes não acontece. Prejudica ainda a justiça a incapacidade, por exemplo, de dotar o Ministério Público de meios essenciais para conduzir a investigação criminal e garantir que os processos presentes ao tribunal não padeçam de quaisquer falhas.  
É evidente, como diz o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que para se conseguir resultados em matéria de Justiça importa ir além da “terapêutica única da exigência de mais meios e interpelar a nossa atenção, a nossa criatividade e o nosso esforço”. Há que acrescentar a isso também vontade política de realizar a Constituição e cumprir as leis da república. Das intervenções no início do ano Judicial, pode-se concluir que muitas das falhas no sector da justiça derivam da inacção dos poderes públicos. O facto de não se ter instalado o Tribunal Constitucional e os tribunais de Relação levou à situação do bloqueio actual. Juízes já na categoria de juízes conselheiros via concurso público não podem ocupar os lugares no Supremo Tribunal porque este tribunal ainda se assume como tribunal constitucional. O mesmo acontece com os juízes desembargadores também seleccionados para os dois tribunais de 2ª instância que, de acordo com a lei, em três anos deveriam ter sido instalados. Isso não é aceitável.
Seria sempre de esperar que negociações para se conseguir maiorias qualificadas para eleger juízes do Tribunal Constitucional levassem o seu tempo. Não é razoável que que o processo já se aproxime dos 15 anos. Em 2010 fez-se uma revisão constitucional. Se algum dos partidos não concordasse com o modelo existente deveria ter apresentado propostas de alteração. Não se compreende é que logo a seguir o partido no governo venha mostrar dúvidas e, na sequência, as negociações se tenham arrastado até hoje.  
O que se passa no sector da justiça espelha muito do se passa em outros sectores. Basta ver a questão da insegurança e da criminalidade e as dificuldades da polícia em lidar com a situação. A mesma coisa no Banco Central, uma instituição fundamental para a gestão macroeconómica do país, em que o governo mantém uma situação de indefinição na nomeação dos seus órgãos. Há que mudar a atitude, encontrar saídas e acabar com o marasmo.