segunda-feira, fevereiro 24, 2025

Com a ajuda externa a retrair-se, impõe-se uma nova atitude

 

Uma sondagem do jornal Financial Times publicada no início da semana revelou que 60% dos americanos concordaram com a medida de congelamento da ajuda internacional americana sob a direcção da USAID tomada por Donald Trump e implementada por Elon Musk. Só 12% dos sondados discordaram da ideia que montantes significativos dos fundos da ajuda são desperdiçados em corrupção e nos custos administrativos, em detrimento dos realmente necessitados. A constatação de que a maioria da população considera que a ajuda tem sido mal utilizada já serve de travão a eventuais acções do partido democrata em procurar contrariar o bloqueio da ajuda externa. E no mundo já se percebe que o impacto vai ser enorme, considerando que a contribuição americana de 40 bilhões de dólares anuais através da USAID corresponde a 40% da ajuda internacional.

De facto, é de esperar o efeito desastroso que a diminuição drástica dos fluxos da ajuda terá tanto directamente sobre muitos necessitados de alimento e medicamentos como indirectamente sobre as organizações de apoio que sem o suporte americano dificilmente vão poder prosseguir com a sua actividade humanitária. Uma outra consequência da medida é que poderá levar à imitação em outros países, designadamente na Europa, se os avanços da direita radical se traduzirem numa maioria que questiona a efectividade dos programas actuais de redução da pobreza, de ajuda humanitária e de apoio ao desenvolvimento e à luta contra as alterações climáticas. Sem doações substantivas dos dois maiores contribuidores, EUA e UE, muitos países e populações poderão ficar em situação difícil, particularmente em casos de catástrofes naturais, guerras e perseguições políticas, étnicas ou religiosas.

Não é fácil para qualquer país encontrar a fórmula certa para o crescimento económico e para o desenvolvimento. O baixo número de casos bem-sucedidos deveria ter servido de aviso. Aliás, a história da humanidade, que aponta para a revolução industrial, há trezentos atrás, como o momento quando se tornou possível o aumento da produtividade que levou ao crescimento e à criação sustentada de riqueza, deixa entender precisamente isso. Não obstante, insistiu-se na ideia que a ajuda externa podia substituir lideranças competentes, políticas próprias baseadas nas especificidades dos países e a vontade engajada das populações para se atingir o desenvolvimento. Sem desprimor pelos benefícios reais conseguidos com a generosidade internacional, permitiu-se que muito dos recursos disponibilizados tenham sido mal aproveitados, alimentando burocracias internacionais e nacionais e levando agora à percepção em várias franjas da população dos países doadores que afinal a ajuda não chega a quem mais precisa.

Para vários países em desenvolvimento a ajuda externa passou a representar algo similar ao chamado “resource curse”, ou maldição dos recursos, em que países com petróleo, diamante e outros minérios ricos são mal governados, têm instituições frágeis, apresentam grandes desigualdades sociais e não conseguem libertar-se da extrema pobreza. Segundo um paper do Banco Mundial “Aid and Resource Curse”, a ajuda externa também pode ser um factor para os governos não fazerem reformas, para serem despesistas, para optarem por projectos financiáveis e não pelos prioritários e para propiciarem rendas a clientelas políticas. Um outro efeito negativo referido no texto é o facto da administração dos projectos com os seus altos salários “subtrair” quadros qualificados ao Estado, enfraquecendo as instituições.

Quando o país em desenvolvimento se deixa apanhar por alguma forma do “aid curse”, é interessante notar como desenvolve narrativas, adopta atitudes e faz opções que racionalizam a sua permanência por largas décadas como recipiente da ajuda internacional. Alimenta, por exemplo, a narrativa que os recursos do país são objecto de cobiça dos estrangeiros e com isso justifica a desconfiança no investimento estrangeiro e no turismo. Nutre o ressentimento em direcção aos maiores doadores, ao mesmo tempo que incentiva uma cultura de vitimização histórica. Opta por políticas de distribuição de rendimento que não põem suficiente ênfase na necessidade de crescimento e criação de riqueza, mas privilegiam a formação de clientelas para a conquista e manutenção do poder.

O resultado é que não se consegue potenciar os fluxos de capital e os fluxos turísticos que teimam em chegar ao país, nem mobilizar a iniciativa, a criatividade e o espírito empresarial a quem se incutiu a ideia que há ganho em ser vítima e que a vantagem maior é ficar bem colocado na “cadeia alimentar” com o Estado no topo para ter acessos, favores e oportunidade de rendimento. Um outro resultado é que o país, apanhado num círculo vicioso, não consegue desenvolver uma ideia de desenvolvimento que podia contrapor às agendas das organizações de ajuda internacional, ficando sob uma espécie de tutela. Submetendo-se, o país aprofunda ainda mais a atitude do Estado rentista em que a política partidária deriva cada vez mais para soluções populistas que se alimentam do ressentimento social e incidem sobre a redistribuição de rendimentos, sem correspondência com a realidade presente e sem muita preocupação com o futuro.

Em Cabo Verde, nos últimos dias é interessante notar como os problemas do país são geralmente percebidos. A propósito do acordo de pesca com a União Europeia, a atenção geral fixou-se numa afirmação que Cabo Verde estaria a vender o atum por 13 escudos o quilo. É uma das tais afirmações que ressoam com narrativas bem estabelecidas segundo as quais o país é rico em peixe e, se não parece ser, é porque está sendo roubado. Devia ser evidente que Cabo Verde não vende peixe. Vende quem investe em navios e equipamentos e contrata pescadores para captura e depois leva o pescado ao mercado. No quadro do acordo com a UE cobra-se uma licença para explorar um recurso que na sua trajetória migratória passa pela sua zona económica exclusiva. Não há como confundir preço de venda de um produto pelo custo de uma licença de exploração de um recurso. Só se insiste nisso para reforçar a narrativa que alimenta fantasias e vitimiza a população, mas não leva a acção consequente.

De facto, se há um recurso como o peixe, porque não explorá-lo. Se se quer evitar que seja delapidado ilegalmente por outros, por que não fiscalizar a ZEE do país. Em quase cinquenta anos de independência, não se criou capacidade de captura industrial de peixe, nem se explorou acordos de pesca com países vizinhos: eles sim, são ricos em peixe. Também não se optou pela aposta numa guarda costeira para fiscalização das águas do país. Ou seja, não se agiu numa perspectiva de desenvolvimento do sector das pescas e a cooperação com vários países no sector ao longo de todos esses anos serviu outros propósitos que não os que deviam ser óbvios. Mesmo quando a UE facultou a possibilidade de exportação de peixe enlatado com isenção de tarifas, não foi compreendido que o país tinha um tempo para adquirir capacidade de captura para beneficiar das isenções. As derrogações à regra das normas de origem têm um prazo, findo o qual há consequências para as conserveiras, para os trabalhadores e para as exportações do país. Tudo parece não importar enquanto numa mistura de deleite e indignação se traz à colação a questão da extinção dos tubarões fundamentalmente para dar mais vitalidade à narrativa que o país tem recursos e estão a ser roubados.

Há, porém, que perceber que o mundo está a mudar e rapidamente. Os Estados Unidos congelaram a ajuda internacional e se não a retomarem, nem a UE poderá compensar o buraco. Se a tendência para a revisão da política de ajuda continuar, menos recursos serão disponibilizados para os países em desenvolvimento. Se os países que se deixaram imobilizar, apanhados pelo “aid curse”, não saírem do torpor, as consequências poderão ser terríveis. Em Cabo Verde, com o mundo a transformar-se radicalmente não se pode ficar por mais tempo a deixar-se embalar por narrativas fantasiosas que impedem o desenvolvimento, vitimizam as populações e desresponsabilizam as instituições. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1212 de 19 de Fevereiro de 2025.

segunda-feira, fevereiro 17, 2025

Campanhas eleitorais prematuras tiram tranquilidade e foco ao país

 

O mundo inteiro continua a observar com um misto de fascínio e inquietação as primeiras semanas do governo Donald Trump. Chama a atenção a rapidez com que se move para desarticular estruturas como a USAID e para se intrometer em sectores-chave da administração federal com objectivos claros de forçar a saída de altos funcionários, de moldar o comportamento das instituições com prejuízo para o cumprimento da lei e de se posicionar para aceder a informações privilegiadas de privados, empresas e outras entidades. Fica evidente a dificuldade dos poderes legislativo e judicial em enfrentar o autêntico blitzkrieg que tem sido a acção do poder executivo de Trump e uma das razões para isso é que não funcionam à mesma velocidade.

Nas democracias liberal e constitucional o equilíbrio dos poderes é fundamental para a estabilidade do sistema político. Contudo, devido à sua própria natureza, não agem com a mesma rapidez. Do governo espera-se capacidade de reacção rápida perante novas situações e perante imprevistos e mesmo crises. O legislativo tem o seu tempo próprio na feitura das leis, recorrendo ao contraditório. Os tribunais então são ainda mais lentos em dirimir conflitos, a defender a legalidade e a proteger direitos. Se não houver um acordo de todos os actores políticos e da sociedade civil para salvaguardar a integridade do sistema, a diferença de velocidade dos poderes pode ser explorada para o desequilibrar numa deriva autoritária, como aparentemente está a acontecer nos Estados Unidos, mas que já se notava, por exemplo, na Hungria, na Turquia, na Tunísia e na Índia.

Por razões óbvias, o protagonista principal nesses processos é normalmente o poder executivo. Quando, porém, o sistema político prevê um presidente da república eleito directamente, mas sem poder executivo e função governamental, abre-se a possibilidade, de sérias consequências com impacto geral no sistema, na eventualidade de um desajuste pronunciado na velocidade de actuação do PR e do Governo. Em Portugal, com um presidente hiperactivo eleito nesse quadro até se assistiu recentemente à dissolução de uma maioria absoluta. Cabo Verde, num quadro constitucional similar, depara-se actualmente com uma intensa actuação interventiva do PR na área governativa, com consequências que claramente não são positivas para a estabilidade do sistema político, nem para o país no seu todo.

Só nos últimos dias pôde-se constatar vários momentos desses. Em visita às câmaras municipais, o PR aparece a pedir a reconfiguração da relação entre o Estado e os municípios no que respeita à transferência de poderes e recursos num momento em que a proposta de lei do novo estatuto dos municípios está para aprovação no parlamento. A sua interferência nas negociações entre sindicatos e o governo já atingiu tal magnitude que sindicalistas em declarações à imprensa referem-se ao PR como parceiro. Em matéria de revisão constitucional, que é de exclusiva competência dos deputados, permite-se fazer propostas e indicar datas e, ainda, agir como activista numa matéria que os apoiantes, por razões de lutas identitárias, querem manter fracturante. Coloca-se na primeira linha na denúncia pública da perseguição dos jornalistas no país simplesmente porque o Ministério Público, perante indícios de violação do segredo de justiça, abre instrução para averiguar factos puníveis e responsabilizar agentes.

Um dos problemas neste tipo de intervenção, que claramente extravasa as competências do PR enquanto árbitro e moderador do sistema político, é que o governo é fiscalizado e pode ser censurado e até derrubado no parlamento pela condução das suas políticas. E na Assembleia Nacional os deputados dos diferentes partidos exercem o contraditório e fiscalizam-se. O PR, pelo contrário, não responde a ninguém. Não há mecanismo constitucional para o censurar ou destituir e até pode ignorar a censura pública. Claro que todas essas as prerrogativas constituem uma responsabilidade grande e deviam ser um incentivo para um exercício de mandato em linha com a preocupação central do presidente da república de garantir o regular funcionamento das instituições.

Fazer o papel de activista, de facilitador de negociação sindical, de indignado a favor de posturas corporativas é que não é próprio. Nem tão-pouco pretender ser colegislador, ou apresentar-se como champion das câmaras municipais e permitir que partidos cortejam ou alinhem pelas suas posições políticas arriscando-se a ser visto no papel de oposição ao governo que a Constituição não lhe confere. Muito pouco razoável é insistir em ver como diminuído em legitimidade o exercício de cargos públicos com mandatos já caducados, mas que são essenciais para o equilíbrio do sistema e o funcionamento pleno do Estado de Direito democrático. Pior se isso for visto como uma espécie de pressão sobre quem cuida da legalidade, arbitra os conflitos e protege direitos. A verdade é que uma das razões pela qual não há abandono de lugar no exercício de cargos públicos é o reconhecimento que o tempo dos diferentes órgãos de soberania não é o mesmo e tudo deve-se fazer para garantir a continuidade do regular funcionamento do poder judicial.

Não deixa, porém, de causar estranheza o facto do protagonismo do PR estar aparentemente a marcar a agenda política, quando o normal devia ser o governo que, enquanto executivo, tem os recursos, a máquina administrativa e o mandato para fazer as coisas acontecerem. A postura omissa do governo e a clara falta de liderança nos dois meses após as autárquicas têm deixado um vazio que num ambiente de excessiva politização é naturalmente preenchido por vários actores entre os quais o PR. A remodelação ministerial tardia parece que visa só mais eficácia governativa e não mudanças na agenda e postura. A falta de uma visão energeticamente promovida pelo governo nesta nova fase pós-autárquica acaba por garantir que a corrida para as legislativas, e já agora para as presidenciais, se inicie prematuramente, tirando ao país a possibilidade de pensar aprofundadamente sobre os tempos conturbados que se está a viver no mundo.

No MpD, o cerrar de fileiras à volta do chefe, numa lógica defensiva, irá limitar o debate e prejudicar a sintonia com o tempo actual e os anseios da sociedade. Já no PAICV, a corrida à liderança mais parece configurar um processo de captura do partido no qual o ingresso de 3.000 novos militantes em condições pouco claras, segundo a comissão de fiscalização do partido, relembra manobras clássicas de assalto aos partidos. Acompanhado do discurso anti- elite que, como é a regra, vai procurar mobilizar todos os ressentimentos para conseguir resultados eleitorais, certamente que os seus efeitos negativos sobre o partido e o país serão sentidos. No rescaldo da crescente crispação, a ostensiva partidarização das comemorações dos 50 anos de independência também irá afectar o PAICV nesta nova fase, em que aparentemente prefere identificar-se com o legado da luta na Guiné e do governo dos primeiros quinze anos do que com os quinze anos do seu governo neste século, como se viu na discussão à volta da NATO. É mais provável que da conjugação da atitude dos dois partidos saia uma maior polarização política da sociedade.

Nos Estados Unidos, a rapidez com que o executivo marca a agenda, procura criar um Estado mais receptivo à visão e aos objectivos dos vencedores das eleições. Tem os seus riscos, mas não há dúvidas de quem tem responsabilidade em caso de fracasso. Em Cabo Verde, falhas na liderança do governo e omissões em momentos-chave deixam todos expostos a uma politização extrema em que ninguém se sente responsável pela perda de confiança nas instituições e quebra de esperança no futuro.

Pelo contrário, depois de se acusarem mutuamente pelos tais resultados, os partidos e outros actores políticos voltam ao mesmo comportamento que anteriormente os provocou. De alguma forma há quem acredita que no caos ou no mal-estar criado acabará por sair vencedor. A conquista do poder parece suplantar quaisquer outros objetivos. Se para isso é necessário recorrer à demagogia e ao populismo, com o seu lado de autoritarismo, de arbitrariedade e de negação de direitos, que assim seja. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1211 de 12 de Fevereiro de 2025.

segunda-feira, fevereiro 10, 2025

Excessiva politização prejudica a democracia

 

Num mundo em rápida transformação sob o impulso das políticas de Donald Trump, aumento de tarifas alfandegárias, fricção nas relações com aliados e adversários, congelamento da ajuda externa, deportação forçada de migrantes e hostilidade a organizações multilaterais, não se vê em Cabo Verde muitos sinais que a classe política esteja a incomodar-se com o que está a passar.Tão preocupada em continuar na sua actuação diária a fazer o mais do mesmo, talvez considere que afinal se trata somente das duas primeiras semanas do novo governo americano e que as coisas dificilmente irão piorar ou desviar-se do expectável. A realidade prenhe de consequências que está a emergir não parece constituir suficiente alerta para provocar mudança de atitude que permitisse enfrentar os novos desafios e eventualmente beneficiar de oportunidades abertas.

A confirmar que se continua na mesma linha das velhas disputas fracturantes, nota-se que do ambiente mundial a configurar-se de forma diferente foi a questão da relação de Cabo Verde com a NATO é que atraiu mais atenção e causou mais polémica. E não por razões de disparidade de políticas dos sucessivos governos quanto à Aliança Atlântica. De facto, a NATO já foi autorizada a instalar bases temporárias no país para conduzir exercícios militares (operação Steadfast Jaguar 2006) e a cooperação na segurança marítima no Atlântico Médio tem vindo a aprofundar-se ano após ano em governos de cor política diferentes. A polémica tem mais uma base político-identitária que aproveita discussão de matérias como SOFA, NATO, Ucrânia e Israel para alardear posições antiamericanas e anti-imperialistas datadas dos tempos da Guerra Fria e, por essa via, uns, ditos patriotas, apontar o dedo a outros, supostos vendedores da terra.

É o atiçar da chama que se sabe que cria crispação, exacerba o discurso político e retira espaço para se fazer política com normalidade para enfrentar os problemas do país. O resultado é que se deixa instalar o que Samuel Huntington, na sua conhecida obra A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, chama de fenómeno de politização geral das forças sociais nos países subdesenvolvidos. Segundo o autor, “em tais sociedades, à política falta autonomia, complexidade, coerência e adaptabilidade”. Isso porque todas as forças sociais (corporações, sindicatos, universidades, igrejas, empresas, associações, ONGs) se engajam na política, e a tendência é para não ficarem claro os procedimentos a serem usados para resolver as disputas, para nomear para cargos e para definir políticas.

Em Cabo Verde, vêem-se sinais desse fenómeno notado por Huntington no que, em geral, as pessoas chamam de excessiva politização da sociedade. Tudo parece envolver política, as pessoas movem-se por conveniência, calam ou omitem-se para se protegerem e as causas sociais e laborais parecem sempre ter motivações políticas ou são acusadas de as ter. A relação entre verdade e mentira e entre factos e opiniões enfraquece num ambiente no qual cada um reclama ter a sua verdade e a sua opinião. O problema que vem logo a seguir é que, nesse relativismo próprio do mundo pós-verdade ampliado pelas redes sociais, o excessivo individualismo que é gerado acaba paradoxalmente por propiciar a tribalização da política e a emergência de líderes absolutos, rodeados de fiéis seguidores.

Uma das vítimas directas desse processo são os partidos políticos que perdem grande parte da sua vida interna, devido às exigências de subordinação ao chefe, e que, apanhados pelas suas próprias narrativas, diminuem a disponibilidade para ouvir os anseios da sociedade e aumentar a participação política dos cidadãos. Com tudo isso, fragiliza-se a democracia e incentivam-se tendências iliberais e anti-sistema. É só ver a facilidade com que se procura descredibilizar o sistema democrático perante insuficiências das democracias em resolver problemas de desigualdade social e de pobreza, ou então a enfrentar dificuldades de sobrecarga no sistema de saúde em parte devidas a mudanças epidemiológicas e demográficas. É o proverbial acto de querer deitar fora o bebé com a água do banho.

Não se vê é um igual esforço em forçar os partidos a cumprir com o seu papel de promover o pluralismo, a apresentar propostas de políticas credíveis e a ter candidatos a cargos públicos devidamente preparados. Muito menos se nota a pressão para os partidos defenderem a ordem constitucional, seguir os procedimentos democráticos e manter funcional os pesos e contrapesos do sistema político. A qualidade da democracia depende da qualidade da prestação dos seus actores e da vontade de todos os cidadãos em reger-se pelo princípio de respeito pela dignidade humana, pela honestidade e decência. Como disse Edmund Burke: “A única coisa necessária para o triunfo do mal é que os homens bons não façam nada”.

Sendo a democracia um sistema suportado no pluralismo e no exercício do contraditório no processo de tomada de decisões, espera-se iniciativa, criatividade e capacidade de adaptação dos actores políticos face a situações complexas e a imprevistos. Algo não vai bem quando, com o mundo em mudança rápida e muitas incertezas a ensombrar o futuro, o partido no governo (MpD) tarda em mostrar que tem uma perspectiva de como ultrapassar as dificuldades que se anunciam e que está preparado para as enfrentar. A urgência é maior se acabou de perder as eleições autárquicas e se as legislativas vão acontecer num futuro próximo. Infelizmente, é uma urgência que não demonstrou reconhecer com a aparente falta de acção, seja do partido que levou mais de um mês depois das eleições para se reunir numa direcção nacional, onde o líder foi reconfirmado por aclamação, seja do primeiro-ministro que tomou tempo quase igual para remodelar o governo.

Com isso o país perdeu tempo com o partido a seguir e a aclamar o chefe em vez de reflectir e renovar-se. Voltou a perder tempo com o governo a cumprir a sua agenda como se as eleições, revelando descontentamento da população com as políticas governativas, não tivessem acontecido. Deixou-se um vazio que poderá ser um incentivo para a oposição não se cuidar também de pensar os problemas actuais e futuros do país e apresentar políticas alternativas adequadas. Pode simplesmente cair na tentação de se limitar a arregimentar apoios políticos para a conquista do poder sem preocupação em saber o que vai fazer no dia seguinte. E o que o país menos precisa é de governantes a querer fazer gestão corrente de um modelo já esgotado, como reconhecido pelo próprio Banco Mundial, particularmente com as mudanças a acontecer na economia global.

Um mau sinal de que é a conquista de poder pelo poder que se pretende, é a proposta de substituir as eleições internas do PAICV por uma sondagem de opinião pública que seleccionaria um único candidato a presidente do partido e a primeiro-ministro. É geralmente reconhecido que primárias e eleição directa do presidente serviram em vários países para sufocar a vida democrática dos partidos e permitir a ascensão de populistas, demagogos e caciques. Os órgãos colegiais dos partidos deixaram de ser palco de grandes debates partidários e de servirem para a selecção dos melhores candidatos a deputados e a governantes. O uso de sondagens para a escolha de candidatos, em que o MpD foi pioneiro, não parece que melhorou a prestação nos cargos eleitos nem tão-pouco enriqueceu a vida interna dos partidos.

Infelizmente, as vias preferidas, tanto pelos partidos políticos como por certos titulares de órgãos de soberania na conquista e manutenção do poder, não têm contribuído para a diminuição da politização das forças sociais, referida por Huntington, que retira eficácia à política. Pelo contrário, a tentação é potenciá-las, mesmo com prejuízo para os envolvidos e aumentando a conflitualidade social. Neste momento de necessidade e de viragem no mundo, seria benvinda uma outra atitude que pusesse em primeiro lugar o bem-comum. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1210 de 5 de Fevereiro de 2025.

segunda-feira, fevereiro 03, 2025

Ter claro a natureza e o papel das FA é fundamental para a estabilidade democrática

 

Os dados do estudo publicados pela Afrosondagem em Dezembro último apontavam as Forças Armadas como a instituição de maior confiança dos cabo-verdianos, apesar do nível ter baixado de 74%, em 2022, para 56%, em 2024, em linha com a queda geral de confiança nas instituições da república.  Entre as razões encontradas para o descrédito da população estão a excessiva polarização político-partidária e as tensões entre órgãos de soberania devidas a acções e omissões no exercício das suas competências.

As Forças Armadas (FA), talvez pela sua natureza apartidária, parecem estar menos sujeitas, mas não imunes a essa erosão de confiança. Evitar que fossem afectadas pelo ambiente político crispado existente, que tende a aprofundar-se no ciclo eleitoral já iniciado, devia ser a prioridade de todos. Infelizmente, não é o que se constata com a pretensão do presidente da república em incluir as Forças Armadas na agenda da chamada Semana da República entre 13 e 20 de Janeiro a qual, ano após ano, tem-se revelado como uma semana da discórdia. Uma semana reconhecidamente de desconforto institucional e de manifestações de divisões e mágoas antigas que vêm à superfície a reboque do esforço de exaltação de figuras que foram o rosto da ditadura durante quinze anos.

Realmente não se vê que propósito poderia servir a inclusão das Forças Armadas em celebrações que sempre se revelaram divisivas. Aliás, durante anos manteve-se sempre o 15 de Janeiro, Dia das Forças Armadas, fora das contendas da Semana da República. Recentemente, na lógica cada vez mais adoptada por certos actores políticos de reforçar ou reiterar atitudes com claros efeitos negativos no sistema político, percebe-se que a insistência em fazer diferente é para ter mais um momento de exaltação das figuras reconhecidamente partidárias que teriam formado o núcleo fundador das Forças Armadas.

O problema é como reconciliar a evocação dessas figuras com o que caracteriza as FA como forças armadas republicanas. De acordo com a Constituição de 1992, as FA estão ao serviço da nação, são rigorosamente apartidárias e mantêm estrita imparcialidade e neutralidade políticas. Quer dizer que não são instrumento de nenhum partido ou órgão de soberania, subordinam-se aos órgãos de soberania nos termos da Constituição e da lei e não podem aproveitar da sua função para qualquer intervenção política. E enquanto componente militar da defesa nacional cumprem os seus objectivos com respeito pela ordem constitucional e pelo Estado de Direito democrático. Não se vê como se pode compatibilizar esses princípios e valores das FA com um suposto passado em que teria existência antes da independência, seria o braço armado do partido único e teria intervenção repressiva do povo em defesa da ditadura do partido único.

Mas é o que o PR tentou fazer no seu discurso na cerimónia de condecoração das FA quando diz que as forças armadas devem ser republicanas como “têm sido até este momento, desde a independência”. Na prática, acaba por alimentar a confusão sobre a natureza das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) e das FA. As FARP eram uma força supranacional com comando geral na Guiné e um ramo cabo-verdiano e estavam definidas no texto da proclamação da independência de Cabo Verde como “braço armado do PAIGC”. Na Constituição de 1980, artigo 18º nº 3, as FARP são definidas como uma instituição da Unidade dos povos da Guiné e de Cabo Verde. O dia comemorativo das FARP era, como é ainda na Guiné-Bissau, o de 16 de Novembro, dia da sua criação, em 1964, na sequência do congresso de Cassacá do PAIGC. A data só deixou de ser comemorado em Cabo Verde, em 1988, quando se adoptou o dia 15 de Janeiro (decreto nº5/ 88) para celebrar o juramento do “núcleo fundador”, em 1967, em Cuba.

Um outro elemento da confusão da natureza entre FARP e as FA é o de as ligar à putativa luta armada pela independência de Cabo Verde. Mas como diz Agnelo Dantas, um dos do grupo de Cuba treinado durante dois anos e meio para desembarque em Cabo Verde, “não tínhamos uma ideia real do que se passava em Cabo Verde de modo a podermos avaliar se as necessárias condições objectivas e subjectivas [para a luta] pudessem estar já criadas” (Jornal Voz di Povo, 16/1/88). No livro ”Biografia da Luta” da autoria de Rosário da Luz, Manecas Santos, também do grupo, fala do “reconhecimento da impossibilidade de desencadear uma luta armada no arquipélago com sucesso”, o que teria levado Amílcar Cabral a cancelar a aventura.

Só depois da morte do líder fundador do partido e na sequência do II congresso do PAIGC, realizado em 1973, e sem o seu contraditório, é que se iria criar uma Comissão Nacional de Cabo Verde (CNCV) para dinamizar a acção política nas ilhas. Ainda de acordo com Manecas Santos no referido livro, ele que era um dos combatentes mais proeminentes na estrutura militar do partido, não foi convidado para a integrar. A CNCV, segundo ele, foi estabelecida fundamentalmente para coordenar a distribuição do poder no futuro Estado de Cabo Verde. A questão que clama por uma resposta é por que insistir em ligar as forças armadas de uma democracia à uma jogada de poder que implicou a criação de um ramo do braço armado do PAIGC (FARP) no país depois da independência, tendo no topo comandantes criados por decreto-lei 8/75, 18/80 assinados pelos próprios.

O cientista político Samuel Huntington nos seus livros ”O Soldado e o Estado” e “Ordem Política em Sociedades em Mudança” chama a atenção para a problemática central das relações entre o poder civil e os militares na estabilidade das democracias. Dependendo do caminho seguido na institucionalização da democracia e em relação às forças armadas, não poucas vezes tendem a ficar resquícios de um papel político interventivo anterior que faz os militares resistirem ao completo regresso aos quartéis, ou os mantêm sensíveis a apelos para alguma interferência no processo político. Ultrapassar ideias pretorianas a favor de certos actores políticos ou de tutela sobre o regime democrático é fundamental para a estabilidade das democracias. Portugal levou seis anos (Revisão Constitucional de 1982) para se libertar do Conselho da Revolução enquanto órgão de soberania e de ter as forças armadas e não o Estado a garantir a independência nacional e o regular funcionamento das instituições (artigo 273º da CRP original). A Turquia só muito recentemente se viu livre da tutela dos militares. Vários países em África foram há poucos meses alvos de golpes militares e é facto notório que boa parte da instabilidade política na Guiné-Bissau vem da cultura de intervenção política das FARP, outrora braço armado do partido.

Em Cabo Verde, claramente que não devia servir a ninguém a evocação de tradições militares que não têm base na realidade vivida na Pátria cabo-verdiana ou de memórias de um papel institucional em directo conflito com o princípio de subordinação da organização militar ao poder civil constitucionalmente legitimado. Hoje não se tem a mesma situação de 1975 quando a designação do presidente da república como comandante supremo das FARP era a única referência às forças armadas na Lei de Organização Política do Estado (LOPE). Na Constituição de 92 são competentes em matéria de defesa nacional os vários órgãos de soberania, o Presidente da República, enquanto comandante supremo das FA e presidente do Conselho Superior da Defesa Nacional, a Assembleia Nacional, cabendo ao Governo a condução da política de defesa e a função de órgão superior da administração militar. Não há que criar equívocos a esse respeito.

Como diz o constitucionalista Vital Moreira “num Estado de direito constitucional não deve haver lugar para o excesso ou abuso de poder dos titulares de cargos políticos, muito menos por parte do principal magistrado institucional da República”. Assim evita-se em boa medida a perda de confiança nas instituições que todos parecem lamentar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1209 de 29 de Janeiro de 2025.

segunda-feira, janeiro 27, 2025

A oscilação entre o antigo regime e a democracia desune o país e não deixa focar no futuro

 

Donald Trump tomou posse na segunda-feira, dia 20, e confirma-se que o mundo mudou. A ordem política e económica instituída na sequência da segunda guerra mundial vai dar lugar a uma outra ordem cujos contornos ainda não se vislumbram. A presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen já veio dizer que a economia mundial já começou a fracturar ao longo de novas linhas e que em relação ao comércio global é de se evitar uma corrida para o fundo.

Outros observadores referindo-se à perspectiva de Trump em controlar o Canal do Panamá, de comprar a Gronelândia e fazer do Canadá o 51º Estado da União falam de uma nova era imperialista de mudança de fronteiras e de aplicação da Doutrina Monroe, não excluindo o uso da força. Também há países a se prepararem para receber os deportados expulsos no seguimento da aplicação das políticas de controlo das fronteiras e do combate aos ilegais nos EUA.

A estas medidas vão somar-se outras com impacto global nas organizações internacionais como é o caso da saída dos EUA da OMS logo no primeiro dia do mandato. O mesmo deverá acontecer com outras organizações multilaterais devido a posicionamentos do governo Trump em relação à chamada ideologia do género, às políticas de diversidade, equidade e inclusão e à luta contra as alterações climáticas. Por aí vê-se que as transformações na política global devidas ao princípio agora adoptado de “América em primeiro lugar” não irão afectar só aliados (NATO, UE, Japão, Coreia do Sul) e potenciais rivais como a China e outros dos BRICS. Também o efeito desse reposicionamento será sentido nos países dependentes da cooperação multilateral, como é o caso de Cabo Verde.

São razões mais do que urgentes para a nação cabo-verdiana se focar na compreensão dos problemas que têm limitado o seu desenvolvimento designadamente na atracção do investimento externo e expansão do turismo, mas também na diversificação da sua economia e na capacitação do seu capital humano. Tudo isso num quadro de crescimento insuficiente que o FMI, no seu mais recente documento (17 de Janeiro de 2025) projecta para uma média de 4,8% do PIB até o fim da década. E sabe-se que a falta de perspectivas tem consequências complicadas. Causa insatisfação, leva à saída de quadros qualificados e à escassez de mão-de-obra em sectores-chave e diminui a confiança nas instituições e no futuro do país.

Infelizmente, parece que não é para aí que a atenção dos actores políticos está virada, mas sim para a conquista de poder. Nesse sentido quer-se o poder não para lidar com os problemas e realizar um projecto de desenvolvimento, mas para fundamentalmente, e em termos pessoais e de grupo, ter acessos especiais, dominar o Estado e estar em posição de criar clientelas. Por isso a política fica num nível baixo, crispado e fulanizado e alheio aos principais desafios do país. Quando sinalizados os problemas, são tratados numa perspectiva populista e crescentemente anti elites que explora sentimentos e emoções, transforma adversários em inimigos e vitimiza os mais vulneráveis. A polarização, que daí resulta, garante que as grandes questões não são discutidas, que se vai insistir em fazer o mais do mesmo e que quando se verificam alternâncias no governo não se verificam mudanças significativas na condução do país. Não estranha que a desesperança tende a instalar-se.

É só com essa motivação de conquista do poder pelo poder que se pode compreender a ofensiva político-ideológica que tem fixado a atenção de todo o país, do Estado e da sociedade no último ano e que está prometida para o novo ano. Em 2024, a ofensiva funcionou sob o chapéu do centenário de Amílcar Cabral e agora, em 2025, vai ser sob a capa dos 50 anos da independência nacional. Não deve haver dúvidas que alguém espera ganhar com essas investidas ideológicas, em boa medida comparticipadas pelo Estado, que incluem entrevistas, documentários, seminários, conferências, actos públicos, publicação de livros e até incursões de doutrinação nas escolas. Poderão iludir-se outras forças políticas, mas o mais natural é que seja ganhador o partido que reivindica Amílcar Cabral como seu fundador e que tem os seus antigos dirigentes como os únicos heróis da história do país.

Se há um ganhador, entende-se que há perdedores e um deles certamente que é o sentido da unidade da Nação e a ideia da república como comunidade autónoma de cidadãos livres e iguais. Vê-se isso na chamada Semana da República que, de facto, é uma semana da discórdia. A oscilação, de que fala Tocqueville, entre o antigo regime, consubstanciado no 20 de Janeiro, dia dos heróis nacionais, e a democracia e liberdade do 13 de Janeiro, só agrava a polarização ano após ano. Apesar disso, continua-se a realizá-la nos mesmos moldes. Provavelmente há quem queira vencer renitentes pelo cansaço ou então construir uma identidade na base da rejeição do outro para melhor ganhar os embates políticos.

Curiosamente, o primeiro-ministro nas cerimónias do 20 Janeiro veio contra toda a evidência dizer que “o sentimento de tolerância relativamente a posições e leituras diversas dos fenómenos históricos de Cabo Verde ajudam a “tranquilizar” o ambiente político-social”. De facto, não há leituras diferentes quando é o próprio Estado, as suas escolas e a sua comunicação social que impõem uma versão da história praticamente igual à perfilhada pelo regime de partido único. Sacrificados no processo são o pluralismo, a liberdade de expressão e de informação e o pensamento crítico. Todos eles princípios e valores fundamentais da Constituição de 1992 que estabeleceu a dignidade humana e a vontade soberana do povo como bases da república. Que tranquilidade pode trazer a sua supressão em troca de idolatrias impróprias das democracias.

Também não tem sentido homenagear, como fez o presidente da república na celebração do Acordo de Lisboa e do Governo de Transição, um processo político, e seus dirigentes, que se serviram da divisão, da coacção e da intimidação das pessoas para garantir que o direito dos cabo-verdianos à autodeterminação não seria exercido através de um referendo. E também para se assegurar que, com a independência, conseguida após eliminação de outras forças políticas, ter-se-ia um único partido a exercer o poder por tempo indeterminado. Certamente não é uma homenagem que gera a unidade da nação, particularmente porque não acompanhada de um pedido de desculpas pelos que foram presos, maltratados e forçados a sair da sua terra. Também não é um bom momento para falar de “extremismos e criação do caos e de polarização” como faz o PR quando procura valorizar o acto de maior radicalismo que é o de um partido se proclamar força política única e com legitimidade para fazer uso de todos os meios, e, se necessário, de toda a violência, para atingir os seus objectivos.

Pelo que se vêm assistindo é claro que não é pelo reforço da unidade nacional e pela construção do consenso em questões fundamentais que se batem as forças políticas neste momento crítico do mundo e também do país. Aliás, um sinal nesse sentido seria a disponibilidade em acatar as regras do jogo democrático. E não é isso que se verifica quando, por exemplo, se nota o protagonismo do PR em promover comemorações do Estado sem o respaldo jurídico-constitucional das leis da Assembleia Nacional ou do Governo. E a verdade é que sem respeitar o princípio da separação dos poderes, os pesos e contrapesos do sistema político é a própria democracia liberal e constitucional que fica em perigo. Apelos feitos nesse contexto para a unidade nacional e para se credibilizar a democracia não soam autênticos, caem em saco roto e acabam por minar a confiança de que tanto se precisa para focar nos problemas actuais do país e enfrentar os desafios emergentes no mundo actual. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1208 de 22 de Janeiro de 2025.

quinta-feira, janeiro 23, 2025

O papel dos partidos na crise de confiança na democracia

 

Por altura da celebração do 34º aniversário do 13 de Janeiro convém relembrar o que o cientista político Jorge Carlos Espada quis dizer ao afirmar que “a democracia é obra comum de partidos rivais, sob a autoridade comum de regras gerais e iguais para todos”. E também ter em atenção ao alerta de outro cientista político, Robert Dahl, de que “as perspectivas de uma democracia estável num país melhoram se os seus cidadãos e líderes apoiarem fortemente as ideias, os valores e as práticas democráticas”.

Assim é porque as comemorações do Dia da Liberdade e da Democracia serviram fundamentalmente para lamúrias dos partidos e órgãos de soberania sobre o actual estado da democracia sem que fossem acompanhadas de qualquer assunção de responsabilidades.

Os apelos proferidos para inverter a perda de confiança nas instituições perdem-se no ar porque são dirigidos fundamentalmente a quem os faz. E a realidade é que são os próprios actores políticos que, ao não cumprirem rigorosamente as regras e ao não se mostrarem defensores a todo o tempo das ideias, valores e práticas democráticas, fragilizam a democracia, alimentam a abstenção e minam a confiança dos cidadãos.

Mesmo a porem-se na posição de lamentar o estado da democracia, percebe-se que não há qualquer intenção de mudar a actuação política seguida até ao momento. Pelo contrário, usa-se a insatisfação das pessoas revelada em sondagens para evidenciar insuficiências da democracia e pôr em causa a capacidade do regime democrático em satisfazer as aspirações das pessoas em ter uma vida feliz e próspera.

Na verdade, se se nota perda de confiança nas instituições não é porque há descrença na democracia, mas provavelmente porque os actores políticos fogem às regras de funcionamento democrático, umas vezes omitindo-se no exercício das suas competências e outras vezes ultrapassando-as. Criam tensões desnecessárias no sistema nas duas circunstâncias e passa-se a impressão com essa postura que a democracia não é obra comum e que qualquer fragilidade pode ser sempre imputada ao adversário político.

Pelas mesmas razões sentem-se livres para perfilhar princípios e valores em conflito directo com os existentes na Constituição sem preocupação com a tribalização da política. O sectarismo tribal que daí resulta impede que as questões e os desafios presentes e futuros do país sejam discutidos construtivamente e, parafraseando Alexis de Tocqueville, cria-se um ambiente político caracterizado pela perpétua oscilação entre o Antigo Regime e a Democracia. De seguida, hipocritamente, lamenta-se que as pessoas estão desesperançadas e procuram emigrar.

De facto, a democracia enquanto possibilidade de expressão livre e plural da voz soberana do povo está de boa saúde no seu essencial como se viu no passado dia 1 de Dezembro nas eleições autárquicas. Não obstante alguns ruídos, tudo funcionou. Verificou-se alternância política em vários municípios e a posterior transferência de poder correu sem sobressaltos. A abstenção registada deve-se em grande medida à incapacidade dos partidos de mobilizar os cidadãos ou de lhes oferecer políticas alternativas à altura dos desafios dos seus municípios ou do país.

Realmente quem parece estar em falta nesta democracia são os partidos que evitam cumprir as regras do jogo democrático, não assumem a sua responsabilidade pela qualidade da democracia, virados como estão para a manutenção ou conquista do poder, e mostram-se incapazes de apresentar propostas credíveis na actual conjuntura particularmente desafiante do país e do mundo. Neste 13 de Janeiro os olhos de todos devem estar voltados para a situação real existente nos partidos.

O MpD, o partido no governo, levou quase um mês e meio depois da derrota nas autárquicas para tomar uma posição quanto à orientação a seguir nos cerca de 14 meses que restam da legislatura. Da reunião da Direcção Nacional veio a mensagem de possíveis ajustes no partido e no governo, de se ter optado pela não mobilização dos militantes e simpatizantes no âmbito de uma convenção extraordinária, e de total apoio, por ovação e aclamação, da recandidatura do actual líder.

Parece pouco importante para o partido no seu todo discutir como desvanecer a imagem de derrotado antecipado que, entrementes, por inacção, tem deixado cimentar. Não parece querer compreender as razões por que é penalizado nas eleições com a economia a crescer à volta dos 5% do PIB e projecção de crescimento no mesmo nível para os próximos anos. Não quer se esforçar por saber porque, em certos casos algum segmento do eleitorado prefere candidatos provadamente incompetentes e ignora os resultados positivos da governação.

Quanto ao PAICV, o partido que saiu vencedor nas eleições autárquicas, a impressão é que tudo se acelerou. Em menos de um mês o líder auto excluiu-se de futuras candidaturas. Em seu lugar projecta-se para a pole position na corrida para presidente do partido um newcomer, lançado pela vitória nas eleições para a Câmara da Praia (CMP), cuja notoriedade veio anteriormente de disputas com a sua própria maioria na CMP e com os outros órgãos municipais e também do discurso marcadamente populista e anti-elitista. Pelas suas características, parece configurar uma tentativa de captura do partido por outsiders, a exemplo do que se passou noutras paragens.

Também numa veia populista já se procura desqualificar a democracia e a actual dinâmica económica com base em percepções captadas por sondagens, que evidenciam falta de confiança e vontade de emigrar, particularmente entre os jovens. Põe-se foco nas desigualdades quando a questão é como aumentar a produtividade e a competitividade da economia para produzir riqueza e depois poder distribuir. Não se dá a devida atenção à criação de uma ordem económica, que use de forma eficiente os recursos existentes, em particular, os do capital humano, obrigando os jovens a ir procurá-la na Europa e na América. Nem se tem a preocupação de apresentar propostas novas de políticas para enfrentar os desafios à governação do país de forma a não se correr o risco de chegar ao fim do mandato com a economia a crescer como das outras vezes: a 0,7% em 1990 e 0,9% em 2015.

É evidente que são os partidos a falhar no papel que deles se espera no sistema democrático ao se centrarem na conquista e manutenção do poder em detrimento do dever de servir a colectividade nacional no debate de ideias e na implementação de políticas com competência, seguindo o interesse geral. A descredibilização da democracia vem daí, assim como o novo ânimo de forças sempre presentes que procuram explorar todas as oportunidades para exprimir o seu ressentimento anti-democrático contra a liberdade e o Estado de direito democrático, que fez dos cabo-verdianos cidadãos livres e iguais.

Para ultrapassar a actual situação é fundamental exigir aos partidos políticos que cumpram as regras do jogo democrático e que valorizem os princípios e valores da democracia. Também é fundamental que saibam criar sinergias com a sociedade de forma a aumentar a participação política dos cidadãos e a sintonizarem-se com os reais problemas do país evitando assim que se transformem numa clique dependente das benesses do poder. A celebração anual do 13 de Janeiro é uma oportunidade perfeita para se renovar sobre todos os actores políticos a pressão pelo cumprimento dos ideais da Liberdade e da Democracia, que tão profundamente ressoaram no coração do povo nesse dia mágico. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1207 de 15 de Janeiro de 2025.

quinta-feira, janeiro 09, 2025

Ano de 2025 vai exigir muita serenidade e responsabilidade

 O ano de 2024, que hora finda, mostrou-se rico em mudanças que poderão vir a revelar-se prenhes de consequências para os anos vindouros. Em particular, na economia e na geopolítica global, as alterações no quadro existente há várias décadas, caracterizado por uma ordem liberal nas relações comerciais e pela posição hegemónica dos Estados Unidos, vão continuar a aprofundar-se. A invasão da Ucrânia e o prolongamento do impasse na guerra tendem a incentivar outras tentativas de ganho territorial via agressão militar. As tensões comerciais entre a China e os EUA, no âmbito de uma competição estratégica, podem reconfigurar as cadeias de valor e de abastecimento, acelerando um processo de desglobalização.

Por outro lado, a opção verbalizada pelo próximo presidente dos EUA, Donald Trump, de prosseguir com políticas de protecionismo económico, via tarifas, de reformular a relação com os aliados sob ameaça de desengajamento e de não ser o “farol” do mundo na defesa dos direitos humanos e da democracia liberal, abre caminho para um mundo multipolar. A partir daí, ter-se-á de lidar com as dificuldades de conciliação de interesses entre os países emergentes como a Índia, o Brasil e a Rússia e os países mais desenvolvidos, além do enfraquecimento do multilateralismo no sistema económico global, com prejuízo directo para os países menos desenvolvidos, particularmente da África. Com as incertezas, às quais podem vir a juntar-se imprevistos vários, o ano de 2025 já se anuncia como um mar revolto que não vai tornar fácil atingir os objectivos preconizados pelos mais optimistas.

Em Cabo Verde, à semelhança do que aconteceu em várias outras democracias, houve eleições que, apesar de terem natureza autárquica, não deixaram de mostrar algum sentimento anti-incumbente. Em 2024, realizaram-se eleições em mais de 60 países e, na generalidade, os resultados não favoreceram quem governava. Uma outra tendência visível em vários casos foi a deriva iliberal, que sacrifica direitos fundamentais, e a deriva autocrática, que enfraquece as instituições, hostiliza a oposição e limita a possibilidade de alternativa política futura. Especialmente preocupante, em vários casos, foi o recurso a políticas identitárias e à mobilização de emoções com base no medo, no ressentimento e na xenofobia. A ascensão de forças políticas suportando-se no etnonacionalismo, na nostalgia da grandeza do passado e no combate às migrações revela o sucesso da política feita nessa base. Daí, igualmente, a tentação de imitação que se verifica não só nos partidos chamados de direita radical ou de extrema-direita como também noutros partidos ditos de esquerda, transvestidos de roupagem nacionalista e identitária.

O ambiente sócio-político nas democracias, marcado pela progressiva descredibilização das instituições, tem favorecido esse extremar de posições em todas as matérias, não deixando espaço para o diálogo, para o compromisso e mesmo para o exercício do bom senso na avaliação das situações. Em Cabo Verde, assistiu-se, em primeira mão, ao longo do ano de 2024, ao exacerbar da conflitualidade social com anúncios frequentes de greves em vários sectores, particularmente nos ligados ao Estado. Também foi notório o recrudescer da tensão política entre os órgãos de soberania, com os seus titulares a protagonizar, por acção ou omissão, os vários episódios, que acabaram por contribuir para uma acelerada perda de confiança nas instituições. Nem os órgãos do poder judicial ficaram incólumes neste processo, sendo às vezes alvos de ataques directos e outras vezes chamados pelos actores políticos a agir ou a se pronunciarem em situações que podiam configurar judicialização da política ou politização da justiça. Não estranha que a queda de confiança fosse tão pronunciada como se constatou nas sondagens da Afrosondagem.

Para a derrota do MpD nas eleições autárquicas, certamente que terá contribuído o ambiente de tensões sócio-políticas que atingiram o rubro nos meses que as antecederam. Essa derrota é também reveladora dos limites de uma acção governativa que faz da sua bandeira a construção do “maior Estado social de sempre”, quando o país não tem hoje os recursos para distribuir a todos, nem o nível de produtividade e de competitividade da economia que possa assegurar a sua sustentabilidade futura. É evidente que a insatisfação perante a realidade vivida não deixaria de se manifestar no primeiro pleito eleitoral a ser realizado, como veio a acontecer. Algum equívoco na leitura dos resultados poderá, entretanto, surgir se as eleições autárquicas forem tomadas como determinantes das eleições legislativas, em vez de servirem de matéria de reflexão sobre a democracia, sobre a qualidade das políticas governamentais e sua eficácia, e sobre a adequação e justeza das políticas municipais.

E o problema é precisamente esse e começa a desenhar-se. O governo, por omissão, falta de pronunciamento e ousadia, corre o risco de projectar uma imagem de derrotado por antecipação. O primeiro-ministro, na mensagem de Natal, prometeu o que configura ser “mais do mesmo” quando provavelmente não vai ser tomado como suficiente. Do lado do maior partido de oposição, poderá estar a manifestar-se a euforia que advém da possibilidade, se não certeza, da conquista do poder. Estando as eleições a uma distância de cerca de 14 meses, a questão que se coloca é o que, nesse intervalo, se vai assistir.

Irá prosseguir a perda de confiança nas instituições porque os actores políticos vão manter a mesma postura, agora exacerbada pela proximidade de uma eventual tomada de poder? Nas autarquias, com os seus órgãos renovados, a prioridade será a procura de soluções para os problemas do município e dos munícipes ou o foco vai ser colocado na instrumentalização do poder e dos recursos municipais para vencer as legislativas? Na administração pública a perspectiva de mudança na liderança do Estado não irá reduzir a eficácia do Estado, com mais conflitualidade laboral, movimentação do pessoal e menos produtividade? As comemorações dos 50 anos de independência, em 2025, vão servir para unir a nação na consciência de um destino comum enquanto comunidade de cidadãos livres e iguais, ou vão ser mais uma oportunidade, à semelhança do que aconteceu durante o ano de 2024, sob o patrocínio do presidente da república, para a exaltação de dirigentes partidários que submeteram os cabo-verdianos e o país a 15 anos de ditadura?

Parece que há consenso geral que a estabilidade política e governativa é um dos grandes activos de Cabo Verde. Um factor importante de estabilidade é o cumprimento efectivo dos mandatos. E um dos pressupostos para isso é não se viver em campanha eleitoral a todo o tempo: razão por que estão claramente definidos os períodos eleitorais. O governo deve ser o primeiro a respeitar isso e o mesmo se aplica à oposição e aos órgãos do poder político nas autarquias. Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de estar em permanente campanha eleitoral. Muito menos quando há a sensação de perda de confiança nas instituições democráticas e a percepção de que o país não está a responder às expectativas dos cidadãos.

O actual momento no mundo é particularmente complexo e complicado demais para o país se deixar distrair em lutas pelo poder fora do tempo eleitoral. Quando questões preocupantes e realidades novas deverão ser esperadas, é fundamental que haja condições para que sejam encaradas com serenidade e ousadia, beneficiando do contraditório num quadro plural. Para que o ano de 2025 traga esperança, há que exigir responsabilidade dos governantes e de todos os actores políticos para reforçar o espírito de solidariedade e de união, a fim de enfrentar os tempos incertos e, provavelmente, difíceis, que aí vêm. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1205 de 31 de Dezembro de 2024.

segunda-feira, dezembro 23, 2024

Ainda falta o pedido de desculpa

 A Afrosondagem publicou ontem dia 17 de Dezembro os resultados do estudo feito sobre a qualidade da democracia e a governação em Cabo Verde. As sondagens apresentadas revelam uma queda significativa na confiança nas instituições. Só as forças armadas ficam acima dos cinquenta por cento. A confiança no presidente da república caiu de 65%, em 2022, para 57 %, enquanto no caso do Primeiro-ministro passa de 57% para 31 %.

Também os tribunais ficam pelos 42%, enquanto o parlamento dos 48% que trazia de 2022 ainda desceu para 29%. Ainda a níveis mais baixos da confiança ficaram, como de costume, as câmaras municipais (30%)e os partidos políticos (29%). Para o panorama nacional ainda se destacou a polícia nacional como sendo para 26 % dos entrevistados a instituição mais corrupta.

Claramente que o quadro revelado está longe de ser o ideal e a tendência para piorar é evidente. Contudo, é preciso ter em consideração o facto de que actualmente nas democracias está a verificar-se o mesmo fenómeno de perda de confiança nas instituições chamado de recessão democrática. Ao nível nacional certamente que factores específicos contribuem para abrandar ou acelerar a tendência para a descredibilização das instituições. Nos municípios, compreende-se que devido à proximidade do poder local, o excessivo eleitoralismo facilmente cria desconfiança e divisão nas pessoas.

Quanto aos partidos políticos - cada vez mais tidos como máquinas de conquista do poder e como tal mais aptos a fazer falsas promessas, a tribalizar-se, sem uma vida interna rica e plural, e a servir um chefe - nota-se que falham no diálogo social e na captação dos anseios dos eleitores, tirando a voz a segmentos da população. No que concerne à polícia, a percentagem de pessoas que ainda a consideram a instituição mais corrupta mina a confiança que deve inspirar para fazer respeitar a autoridade do Estado e garantir a ordem e tranquilidade pública.

No topo da hierarquia do Estado, e em relação à assembleia nacional, a queda na confiança não cai fora do normal. Os parlamentos na generalidade das democracias não têm grande cotação pública devido, entre outras razões, à percepção de alguma ineficiência nos trabalhos parlamentares e ao partidarismo excessivo. Mas já é preocupante quando se trata do presidente da república, do primeiro-ministro e do governo porque indicia questões mais complicadas, designadamente a relação entre o PR e o Governo como parecem sugerir as sondagens apresentadas. Ou seja, para além do que são tensões normais entre órgãos de soberania, ou desgaste natural resultante do exercício do poder, eventualmente haverá outros factores a provocar a erosão da confiança pública.

Uma constatação feita nas democracias é a do papel exercido pelos partidos e pelos políticos na aceleração da descredibilização das instituições democráticas. Fazem-no com discursos demagógicos e populistas, contornando normas e procedimentos democráticos, ou adoptando comportamentos inéditos e desafiantes do sistema político que, por não serem imediatamente contrapostos, criam a imagem de impunidade. Os exemplos multiplicam-se por todo o lado. De facto, contribui-se para minar a confiança nas instituições pondo em causa as regras do jogo, ultrapassando ou omitindo no exercício das competências próprias e mobilizando forças ou algum sentimento anti-sistémico existente no país.

Em Cabo Verde é bem provável que parte da perda de confiança identificada nas sondagens tenha origem nessa espécie de guerrilha institucional que se instalou entre o PR e o Governo e a sua maioria parlamentar. A tensão no actual nível não devia existir considerando que o país tem um governo de maioria absoluta que não deixa muito espaço para iniciativas presidenciais potencialmente conflituantes como aconteceria se se tratasse de um governo minoritário. Mas a verdade é que se deixaram desenvolver as tensões para níveis anormais que obrigaram à auditoria do Tribunal de Contas e à investigação do Ministério Público e, na sua esteira, a fricção entre órgãos judiciais e a presidência da república. É evidente que tudo isso causa alguma perplexidade na sociedade e cria desconfiança quando questões como legalidade, transparência e responsabilização política não são tidas em devida conta. Pior ainda, quando se procura abrir outras frentes de confronto com agendas potencialmente fracturantes.

De facto, das iniciativas vindas da presidência da república não se devia esperar matéria que pusesse em causa a unidade da nação, a ordem constitucional e a unidade do Estado. A evidente união dos esforços do PR e da Fundação Amílcar Cabral e organizações afins que defendem o legado do regime de partido único na exaltação do que chamam de “memória histórica e colectiva” não é normal. Aliás, o PR teve que apressadamente vir num post no Facebook de segunda-feira, dia 16 de Dezembro, prestar “singela homenagem a todos os que terão sido presos injustamente, mesmo em períodos radicalmente revolucionários” para se distanciar do que lhes tinha acontecido nos dias 14, 15 e 16 de Dezembro, cinquenta anos atrás. Mas não pediu desculpas em nome do Estado de Cabo Verde.

Estava a referir-se aos que ele chamou de “70 opositores tidos como opositores da independência e membros da UPICV e da UDC nas ilhas de S.Vicente, Santo Antão, Fogo, Brava, Sal e Santiago” que foram encarcerados no campo do Tarrafal, reaberto para o fim, e a anteceder o Acordo de Lisboa que seria assinado no dia 19 de Dezembro de 1974. E o paradoxal é o PR estar a promover a comemoração desse acordo entre o governo português e o PAIGC, acordo esse que pressupunha essas prisões, no quadro da supressão de toda e qualquer força política, para que o PAIGC fosse partido único em Cabo Verde. Mais estranho é que tenha convidado o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, para testemunhar o acto fundante da ditadura que iria ser imposta aos cabo-verdianos nos quinze anos seguintes até o resgate da liberdade, no 13 de Janeiro de 1991.

É interessante relembrar a forma como o ministro português Almeida Santos, autor do Acordo de Lisboa, o interpretou em entrevista ao jornal Público de 11/4/2004: Assinamos o acordo e ficou descolonizado Cabo Verde. Fiz uma lei eleitoral. Houve uma grande participação da população. Eles ganharam por 92%. Elaboram uma Constituição. Acabou. Salvamos a face. A forma despachada como se referiu a isso talvez traduzia o momento do chamado PREC, Período Revolucionário em Curso, dominado pelos comunistas que, iniciado a 28 de Setembro de 1974, terminou com o levantamento de 25 de Novembro de 1975 que estabilizou a democracia liberal em Portugal. Curioso é que o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, depois de celebrar o fim do Verão Quente de 1975 em Portugal, agracie com a sua presença o golpe de força do PAIGC no Dezembro Quente de 1974 em Cabo Verde.

Os resultados da Afrosondagem vieram lembrar como em tão pouco tempo, dois anos, pôde verificar-se uma significativa erosão de confiança nas instituições. Saber as razões é fundamental para a combater, ciente do facto que são precisas instituições sólidas e inclusivas para se garantir Liberdade e criar condições para o desenvolvimento. Não é fácil, mas pelo menos dos actores políticos, dos partidos deve-se exigir que respeitam as regras do jogo democrático e salvaguardem a ordem constitucional. Da sociedade deve vir mais pressão para evitar que cinismo e hipocrisia dominem a vida política e que no fim, com o relativismo e o niilismo, se deixe para o povo só a consolação da idolatria. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1203 de 18 de Dezembro de 2024.

segunda-feira, dezembro 16, 2024

Evitar ser governado pelos piores

 

Os resultados das eleições autárquicas mudaram as expectativas dos actores políticas e da sociedade quanto ao futuro próximo e ao ciclo eleitoral já iniciado. Perante a magnitude da vitória do Paicv na Praia e o nas restantes autarquias (15 em 22) os cerca de 15 meses que separam as legislativas das autárquicas quase que colapsaram ligando imediatamente as duas eleições. Para as lideranças, para os militantes e para a base eleitoral dos dois maiores partidos é como se o futuro passasse a ser agora. Euforia de um lado e pessimismo de outro.

A reacção do líder no Paicv tendo em conta a dimensão da vitória na Praia foi cautelosa patrocinando a ideia de se escolher no congresso próximo o melhor candidato para o futuro primeiro-ministro nas legislativas e procurando não se impor-se como líder incontornável. O alinhamento pode não lhe ser favorável, mas diz privilegiar a unidade do partido em antecipação das eleições. Quanto ao MpD, o partido do governo e o derrotado nas eleições, a ausência de pronunciamento do líder do partido e primeiro-ministro causa alguma perplexidade.

De facto, não é compreensível o tempo tomado para reunir órgãos do partido e ter uma posição pública para o país e os militantes e simpatizantes. Deixa um vazio em termos de decisão e orientação para o futuro que contribui para, na mente e na atitude das pessoas, se juntar duas eleições, quando na realidade estão separadas por mais de um ano. E o país precisa funcionar normalmente e não se deixar adiar por se ver em estado de campanha eleitoral permanente meses a fio.

Na sociedade o mais normal é que depois da surpresa inicial, perante a inesperada mudança na correlação de forças, pelo menos em certos segmentos se acabe eventualmente por observar posicionamentos de conveniência à medida que a data das eleições se aproximar, criando alguma agitação social e política. Greves e reivindicações diversas poderão proliferar enquanto diferentes classes sociais e grupos corporativos procuram explorar fraquezas para impor novas condições ou garantir que promessas feitas sejam cumpridas antes do fim do ciclo político. Agrava-se a situação se não se estabelecer um ambiente político que permita o país funcionar sem polarização desnecessária e sem descredibilizar as instituições com suspeições avulsas de se estar a privilegiar uma ou outra força política.

Já o posicionamento do presidente da república logo a seguir à divulgação dos resultados autárquicos deixa entender que vai ser mais actuante nos próximos tempos. Considerando o que tem sido a relação entre os órgãos de soberania, o mais provável é que dessa interacção não resulte um ambiente de tranquilidade institucional. Um exemplo é a insistência do PR na questão dos órgãos externos por nomear com foco na legitimidade dos actuais titulares com mandato terminado.

Deixa transparecer outras motivações, designadamente o desacordo entre a presidência da república e o tribunal de contas quanto às conclusões do relatório de auditoria financeira aos serviços da Casa Civil, que retiram eficácia à sua intervenção. Também no discurso do início do ano judicial tinha apresentado os mesmos argumentos quando a lei é clara que dentro do princípio da continuidade do Estado quem exercer cargos públicos deve manter-se em funções até a tomada de posse do seu substituto. Deslegitimar cargos públicos não é a melhor via para garantir o regular funcionamento das instituições.

Nas democracias as eleições são absolutamente necessárias para renovar mandatos, escolher governantes e legitimar o exercício do poder. Para serem funcionais e cumprir com as promessas de liberdade, segurança e prosperidade não se pode estar permanentemente em estado de campanha eleitoral com toda a polarização que isso acarreta. Nem tão pouco se deve criar um ambiente de guerrilha institucional que alimenta o cinismo em relação à democracia e à política e desmobiliza as forças da solidariedade baseada no sentido de pertença a uma comunidade livre e igualitária. A crise actual das democracias provém em boa parte de não se conseguir inflectir a tendência para o individualismo, o narcisismo e o relativismo, que põe em causa o princípios e valores liberais, aumenta a descrença nas instituições e desincentiva a busca da verdade e do conhecimento, mas que expõe as pessoas à tentação de se reverem em demagogos, que potenciam o seu medo e ressentimento para ganhar eleições.

Não ajuda o facto que no mundo de hoje, cada vez mais, ganha eleições e poder quem traça uma linha directa para a vitória, sem olhar aos meios e sem respeitar as regras do jogo. Com o repetido sucesso de alguns, há um forte incentivo no sentido de todos os actores políticos fazerem o mesmo, o que a acontecer levaria ao fim da democracia. Impedir que se vá por esse caminho é fundamental e devia ser a responsabilidade primeira de governantes e lideranças partidárias. Infelizmente muitas vezes não é o caso e, pelo contrário, são os próprios que promovem essa deriva na luta pelo poder a todo o custo. Por isso é que é fundamental a sociedade insistir no cumprimento das regras e procedimentos democráticos e com essa pressão forçar os titulares dos cargos políticos e os partidos políticos a cumprirem com as suas competências e a se mostrarem responsáveis pelo equilíbrio no funcionamento da democracia, não obstante as suas imperfeições.

Razão pela qual também é preciso combater o cinismo político promovido por supostos independentes e críticos da democracia a partir dos média institucionais e também das redes sociais. O cinismo desarma os cidadãos face às derivas autocráticas e iliberais que quando se tornem reconhecíveis é demasiado tarde. Da mesma forma é preciso contrariar a tendência para a tribalização política que acompanha a liderança demagógica e populista. Ao capturar partidos tradicionais o líder reduz os militantes a seguidores do chefe e põe a conquista do poder como objectivo único, deixando o partido de servir efectivamente a sociedade com visão, conhecimento e competência executiva.

Aliás, uma das marcas da ascensão ao poder de demagogos e populistas é a incompetência que demonstram na condução dos assuntos do Estado, às vezes com consequências catastróficas para o país. Hoje fala-se da caquistocracia ou Kakistocracia, o sistema de governo pelos piores, menos qualificados e/ou mais sem escrúpulos, que se está a espalhar pelo mundo. Até a revista The Economist já propôs a expressão caquistocracia como palavra do ano 2024. E assim é porque infelizmente pelos resultados de algumas eleições recentes nota-se que na maior parte dos casos não é o partido mais capaz ou seguidor das regras democráticas que vence.

Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de cair nessa tentação. Para isso é fundamental que todos sejam plenos cidadãos e, em caso de militância num partido, serem engajados e participativos e não simples seguidores que prestam vassalagem ao chefe em troca de migalhas do poder. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1202 de 11 de Dezembro de 2024.

segunda-feira, dezembro 09, 2024

No rescaldo das eleições autárquicas novas lideranças partidarias poderão surgir

 

As nonas eleições autárquicas aconteceram no passado dia 1 de Dezembro e, como era esperado, aumentou o número de câmaras municipais (CM) lideradas pelo PAICV. O que não se contava é que tal desfecho se traduzisse numa vitória inequívoca desse partido, passando a dominar o espaço autárquico com quinze municípios, contra os sete sob o controlo do MpD. O aumento das CM do PAICV nestas eleições em parte reflecte a tendência para a retoma do equilíbrio autárquico perdido em 2016, quando o PAICV ficou com duas CM e o MpD com 18, que já em 2020, com a subida do score do PAICV para sete CM, tinha começado a manifestar-se.

Para a dimensão da vitória do PAICV terão contribuído, entre outros factores, o desgaste natural da governação na fase final do segundo mandato e a excessiva exposição do governo com o envolvimento intenso do primeiro-ministro e de outros membros do governo na campanha eleitoral. É de recordar que a vitória retumbante do MpD nas autárquicas de 2016 se deveu, em boa parte, ao empenhamento inusitado do primeiro-ministro, eleito poucos meses antes, o que acabou por esbater, nas populações, a diferença entre eleições locais e nacionais. A partir daí, estabeleceu-se um padrão de aproximação governamental aos municípios que, eventualmente, terá trazido benefícios políticos e eleitorais, mas que, posteriormente, prejudicou quando mudou a percepção das pessoas em relação às políticas do governo.

Um outro factor a ter em conta para compreender a nova realidade autárquica é a tendência em várias democracias do eleitorado em punir os incumbentes, votando na oposição. Depois de passada a crise pela Covid-19 e os efeitos da guerra da Ucrânia e a inflação em queda, as pessoas sob stress e descontentes com o ritmo de recuperação pós-crise apostam, em renovar os governos, mesmo que a alternativa não dê sinais inequívocos de não ser igual ou pior que o actual incumbente. A manter-se esse sentimento anti-incumbente é de esperar que venha a ter impacto sobre as eleições legislativas, a realizar-se em meados de 2026, e que cálculos políticos já estejam a ser feitos para, conforme o caso, se atenuar ou amplificar os seus efeitos.

Nesse sentido, a questão central é a das lideranças partidárias que vão ser os protagonistas na disputa eleitoral das legislativas. Do lado do MpD, com o novo quadro político marcado pela vitória do PAICV nas autárquicas coloca-se o problema de saber se o actual primeiro ministro mantém a promessa de se candidatar para um terceiro mandato ou se abre o caminho para uma renovação da liderança do MpD. De facto, Ulisses Correia e Silva não deverá sentir-se obrigado a manter o compromisso depois da derrota sofrida, que também é pessoal, considerando o nível do seu envolvimento na escolha das candidaturas e na campanha eleitoral. A acontecer, o partido terá de procurar uma outra liderança para os novos tempos.

Do lado do PAICV é expectável que, com a vitória nas eleições e o protagonismo reforçado de Francisco Carvalho, se queira avançar com um novo líder. Se assim for espera-se a resistência do actual presidente do partido que certamente vê como natural assumir para si os resultados positivos das eleições. De facto, a vitória eleitoral na Praia está a ser construída como feito pessoal do presidente da câmara, que já se projecta no país definindo metas e a preparar o futuro, o que, naturalmente, irá condicionar as relações de força no congresso do partido previsto para 2025. Problemático será se a mensagem populista de vitimização, antielitista e desafiadora das normas e das instituições for adoptada pelo partido, reproduzindo a prática bem sucedida de certas forças políticas em algumas democracias na Europa e na América.

Nas eleições autárquicas viu-se a tentação de ir por esse caminho. Porém no final, da generalidade dos participantes e dos observadores veio a confirmação de que o processo eleitoral tinha corrido bem e que a actuação da CNE foi competente e efectiva. Despertou particularmente a atenção a denúncia contra a participação do PCA do NOSI na campanha deixando entender que isso podia pôr em causa a neutralidade e a imparcialidade da instituição na divulgação dos resultados eleitorais provisórios. O facto de que, nos cerca de 14 anos a prestar esse serviço, nunca se questionou a filiação ou actividade partidária dos administradores do NOSI, por ser irrelevante, dá a sensação de que, a exemplo do que vem acontecendo noutras paragens, se procurou, em antecipação dos resultados eleitorais, pôr em causa a integridade do processo. Depois, se se ganha, não há reclamação, mas, se se perde, justifica-se imediatamente que houve fraude.

A verdade é que o processo eleitoral em Cabo Verde está consolidado e que apesar de denúncias pontuais de compra de votos ou de bilhetes de identidade, os resultados são aceites pelas forças políticas envolvidas e pela sociedade. Por isso é que, na sequências das eleições, não há distúrbios: os vitoriosos festejam e os vencidos concedem a derrota. Não deixa, porém, de ser importante que, em sede própria do parlamento, se revisite o código eleitoral para clarificar certas normas e, talvez, adequa-lo ao actual estado de maturidade dos eleitores e das instituições eleitorais.

Não se compreende por exemplo que não seja possível publicar sondagens durante o período eleitoral ou que seja proibida publicidade patrocinada nos órgãos de comunicação sociais e agora estendida às redes sociais. Talvez fizesse sentido nos primeiros anos para evitar influência excessiva no eleitor, quando se estava a iniciar-se, como cidadão pleno, a escolher os seus representantes e os governantes do país. Também parece excessivo, em nome da neutralidade das entidades públicas, querer coarctar os actos de governação, a ponto de quase os limitar aos de um governo de gestão, mas sem respaldo constitucional. Muito menos sentido fez o acto inédito de suspender deputados, em plena sessão plenária, por serem candidatos partidários nas eleições autárquicas.

Há que, de facto, haver alguma contenção, como previsto no código eleitoral, para assegurar a igualdade de oportunidade das candidaturas, mas sem desproporcionalmente limitar a liberdade de expressão e de informação e o direito de participação política dos cidadãos. A falta de clarificação nessas e noutras matérias poderá dar azo a que se usem as denúncias como arma eleitoral para se pôr em causa o processo eleitoral e, eventualmente, contestar as eleições e perturbar o processo normal de transferência de poder. Já se viu isso noutras paragens. Com mais actos eleitorais no horizonte, é fundamental que se procure salvaguardar o direito ao voto e a credibilidade das instituições de administração eleitoral para que momentos como os vividos no domingo último, de aceitação pacífica dos resultados das eleições, se repitam periodicamente, para a consolidação e prestígio da nossa democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1201 de 04 de Dezembro de 2024.

segunda-feira, dezembro 02, 2024

É crucial fazer o melhor uso do financiamento climático

 Terminou em Baku, no Azerbaijão, a conferência sobre mudança climática (COP25) com decisões sobre o financiamento de projectos para adaptações relacionadas com a transição energética e para mitigar os efeitos das alterações climáticas, embora sem satisfazer plenamente as expectativas. Pretendia-se chegar a um compromisso de financiamento de 1,3 milhões de milhões (trilion) de dólares até 2035, mas ficou-se apenas por 300 mil milhões (billions) de dólares, a serem disponibilizados pelos países mais desenvolvidos. Desde a conferência de Paris de 2015 e das suas grandes promessas, o mundo mudou muito e, com o regresso de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, o cenário pode ainda piorar, tornando mais difícil conseguir os consensos necessários para as cumprir.

Entretanto, o facto de que os extremos do clima têm, nos últimos anos, tornado incontornável a realidade das mudanças a nível global constitui um incentivo à inovação na mobilização de financiamento. Nesse sentido, procura-se com maior afinco encontrar fontes diversificadas, tanto de natureza pública como privada, e tenta-se explorar fundos bilaterais e multilaterais, assim como recursos alternativos de capital. As necessidades são crescentes, tanto nos países pobres, que, proporcionalmente, mais sofrem com as consequências das alterações climáticas, sejam elas derivadas de furacões, secas, cheias ou aumento do nível médio das águas do mar, como nos países de crescimento médio, que têm de acelerar a transição energética.

A instituição de uma taxa de carbono é uma das vias inovadoras que tem sido explorada, ainda que paulatinamente, tendo como alvo as indústrias poluentes, a indústria do plástico e as emissões de gases provenientes de barcos e aviões alimentados por combustíveis fósseis.

A par disso, já há algum tempo, têm sido consideradas as chamadas taxas de solidariedade como uma forma de preencher o défice deixado pela diminuição de fundos públicos, em particular dos países ricos. Crises recentes nesses países, ao forçarem o redireccionamento de recursos para responder a necessidades urgentes de defesa, melhorias nos serviços de saúde e investimento em infra-estruturas, limitaram a disponibilidade para outras causas. Em compensação, progressivamente, tem-se introduzido taxas de carbono para passageiros transportados por via aérea e marítima, explorando-se também a possibilidade de taxar fluxos financeiros, criptomoedas e grandes fortunas. A ideia, ao que parece, é chegar ao COP30, em Novembro de 2025, no Brasil, com um número considerável de países que adoptaram alternativas de financiamento suportadas pela taxa de carbono.

São 21 os países, segundo o jornal Financial Times de 20 de Novembro, que actualmente já avançaram com taxas de solidariedade, entre os quais Portugal e Suécia, que incidem sobre passageiros de linhas aéreas e marítimas. São evidentes as vantagens para o combate às mudanças climáticas resultantes da arrecadação de receitas, que, segundo estimativas desse jornal, em termos mundiais, poderão chegar a 164 mil milhões (billions) de dólares anuais. Cabo Verde, que, a partir da aprovação na semana passada da taxa de carbono, passou a integrar esse grupo de países, também poderá beneficiar dessas vantagens. Com uma taxa de 550 escudos (5 euros), prevê-se arrecadar mais de um milhão de contos, que, de acordo com o ministro das Finanças, em declarações no parlamento, serão utilizados exclusivamente para financiar acções de mitigação e adaptação aos efeitos das alterações climáticas.

Há, porém, quem aponte desvantagens, considerando que essas taxas constituem um custo extra que sobrecarrega os viajantes em geral, particularmente os de menores recursos. Pode também interferir no fluxo turístico. Nos países com um volume estável de passageiros, os efeitos serão mínimos; mas, noutros, onde o turismo ainda está por consolidar-se e tem maior peso na economia, não se pode descurar eventuais impactos negativos na competitividade do destino. Para que as vantagens sejam reais, é fundamental que as acções de mitigação e adaptação às alterações climáticas sejam bem definidas, estabelecendo prioridades, garantindo sustentabilidade e articulando pequenos projectos com uma estratégia nacional e uma visão de futuro.

De facto, é essencial focar na construção de um país mais resiliente face aos extremos climáticos e mais preparado para beneficiar da transição energética em termos de crescimento e competitividade. O grande esforço de mobilização de fundos que está a ser feito neste momento não deve ser encarado como mais um dos exercícios feitos no passado para promover o crescimento económico global. É sabido como esses esforços ficaram aquém do pretendido, resultando em desperdícios extraordinários de recursos e na persistência de grandes manchas de pobreza em várias regiões do globo.

Faz sentido que hoje se procure uma maior mobilização de recursos financeiros, mas impõe-se que esta seja acompanhada de outras medidas. Realmente é de não repetir práticas que não resultaram em instituições inclusivas. Nem de manter a mesma cultura de governação que, em muitos países, levou a fracos crescimentos e ao aumento da desigualdade. Deve-se também rever a governação multilateral, que frequentemente impõe regras sem dar a devida atenção aos resultados, às especificidades locais e aos seus anseios. O combate à vitimização, que enfraquece o esforço global, e à desresponsabilização, que impede a cooperação necessária, é essencial para ultrapassar o momento crítico que enfrentamos. Está em jogo o futuro global perante ameaças potencialmente existenciais. Não há muita margem para fracassos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1200 de 27 de Novembro de 2024.

segunda-feira, novembro 25, 2024

Desafios e perspectivas de governança local

 

Com as eleições autárquicas a serem realizadas no dia 1 de Dezembro, as câmaras municipais (CM) e as assembleia municipais (AM) vão ser renovadas. As novas configurações de forças políticas, partidos e grupos de cidadãos, que saírem do acto eleitoral poderão traduzir-se em maiorias absolutas ou relativas, deixando antever, logo à partida, as probabilidades de se ter, conforme o caso, quatro anos de mandato estável ou períodos de instabilidade e até de bloqueio. A crescente crispação partidária aliada à incapacidade de negociar ou manter acordos entre as forças políticas, recentemente demonstradas nos municípios de S. Vicente e da Praia, poderão já ser o sinal de crises mais frequentes a verificar-se na governação municipal.

Estabilidade municipal normalmente está garantida com uma maioria absoluta na câmara municipal. Tratando-se de uma maioria relativa, que resulta em CM partilhada, tudo acaba por depender da disponibilidade das forças políticas para negociar, tanto na CM para a aprovação das propostas, em particular do plano de actividades e do orçamento, a serem apresentados à AM, como no órgão deliberativo para dotar o município dos seus instrumentos fundamentais de gestão. A novidade neste ciclo autárquico que está a terminar foi a situação caricata criada na CM da Praia em que a maioria nesse órgão recebida das eleições foi perdida, mas o presidente, em confronto com a prática estabelecida e o estipulado nos Estatutos dos Municípios, reivindicou o direito de apresentar propostas de orçamento à AM, sem aprovação prévia no órgão colegial executivo.

A verdade é que esse diferendo não foi dirimido e a prática impôs-se com a repetida aprovação pela AM do orçamento e do plano de actividades sem que todos os procedimentos legais tivessem sido seguidos. Uma questão que se coloca é se isso não abre um precedente para situações futuras de conflitualidade, instabilidade e ineficácia dos órgãos municipais, com todas as consequências e custos que acarretam. Outra questão é se a AM ao aceitar debater e votar propostas sem prévia aprovação da CM não estará a cumprir a Constituição que faz o orgão colegial executivo responsável perante ela. Claro que aqui se põe o problema de saber se. efectivamente na Lei, foram criadas as condições e disponibilizados os meios para AM poder escrutinar os poderes das câmaras municipais e os actos do presidente da CM. Para os munícipes que vão votar na AM é fundamental que reconheçam utilidade no órgão que vão eleger, sob pena de se aumentar o descrédito nas instituições do poder local e incentivar o caciquismo autárquico.

A estabilidade futura das autarquias vai depender muito da capacidade negocial e compromissória das forças políticas nos órgãos municipais, em particular na AM. Já se viu pelo caso de S. Vicente que acordos podem ser conseguidos na câmara e depois bloqueados na assembleia. A possibilidade confirmada pelo Tribunal Constitucional de haver candidaturas só para um dos órgãos municipais pode constituir-se num convite a uma maior fragmentação da AM ou numa não correspondência na representação de forças políticas nos dois órgãos. Em qualquer dos casos obriga a um maior esforço negocial e disponibilidade para construir coligações ou firmar acordos pontuais.

Se não houver um sentido aguçado de que o poder do órgão não está em eternizar o bloqueio mas em dotar o município dos instrumentos de gestão tudo ficará mais difícil. A CM e a AM são eleitas directamente e nenhum dos órgãos pode derrubar o outro como acontece com o governo que perde a maioria num sistema parlamentar. Isso faz com que não devam se subordinar um ao outro e, pelo contrário, num sistema de pesos e contrapesos, se obriguem a respeitar e a fazer cumprir as regras do jogo democrático. Quando isso não acontece, como no caso da proposta de orçamento da Praia, cria-se um ambiente de incumprimento que diminui a eficácia na resolução dos problemas do município e dos munícipes. Aos titulares desses órgãos de poder político é esperada uma responsabilidade muito especial reforçada pela proximidade dos eleitores e pelo impacto directo da acção municipal na vida corrente das pessoas.

Aliás, a própria existência do poder local parte da convicção de que populações num determinado território têm interesses específicos que não se esgotam no interesse nacional e que importa dotá-las de poder próprio para os administrar. A democracia local pretendida, marcada pela proximidade, deve ser cultivada para, de um lado, evitar bloqueios e ineficácia e, de outro, para não ser desvirtuada pelo caciquismo. Nesse sentido, é fundamental existir uma preocupação com a viabilidade dos município, em particular na criação da autarquia e concomitantemente com a contribuição dos munícipes para a sustentabilidade dos mesmos.

Tributação e representação vão a par e passo na democracia, ou seja paga-se imposto porque se está representado no órgão que os cria e que controla como são gastos as receitas obtidas. De outra forma vão surgir figuras providenciais e, muitas vezes, aspirantes a caciques a tentar conseguir receitas em permanente guerra de recursos com o Estado central, enquanto tudo fazem para enredar os munícipes numa malha de dependência, condicionando o acesso aos recursos mobilizados. Também acaba-se por criar um eleitorado que, ao não se sentir como contribuinte, pouco interesse terá no controlo da qualidade das despesas feitas com o erário público.

Em Cabo Verde, provavelmente, há municípios a mais e a sustentabilidade de vários deles é demasiado precária. Dos municípios , num total de vinte e dois a partir dos 14 existentes em 1993, segundo um estudo datado de 2015, as receitas próprias representam, em média, 32% das receitas totais, variando entre os municípios de 3% a 58%. As transferências do Estado representam em média 45% das receitas totais e variam entre 97% a 19%. E o esforço para arrecadar receitas fiscais é bastante baixo. Daí que as condições para a democracia local não sejam as ideais. Compreende-se assim porque persistem muitas das insuficiências que ainda pesam na afirmação da democracia local, nomeadamente as fragilidades na responsabilização política e na prestação de contas, a tentação para o caciquismo, a transformação dos municípios em campo de batalha entre o governo e a oposição e o eleitoralismo permanente que induz dependência na população.

É evidente o desenvolvimento autárquico verificado em Cabo Verde desde das primeiras eleições em Dezembro de 1991 e os extraordinários ganhos que representou para as populações de todas que ilhas. No entanto, é preciso identificar e ultrapassar as fragilidades na governança local e focar mais na melhoria da qualidade de vida das pessoas e do ambiente circundante, com mais segurança, acesso à habitação e a espaços público e mais conectividade. Também será importante saber dosear o papel de promotor e facilitador de iniciativas diversas, sociais, culturais ou empresarias, e contribuir para fazer dos munícipes os verdadeiros protagonistas na arena pública.

As próximas eleições são as nonas a ter lugar e já convinha equacionar os problemas dos municípios noutra óptica, considerando os desafios que o país tem pela frente. Há que ter presente que Cabo Verde não se confunde com o somatório dos seus municípios, que a entidade concreta da ilha nas suas especificidades deve ser assumida e que, para prossecução do interesse nacional, ter-se-á que potenciar estrategicamente todas as valências existentes. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1199 de 20 de Novembro de 2024.

segunda-feira, novembro 18, 2024

O mundo mudou

Os resultados das eleições americanas de 5 de Novembro apontam para mudanças nas regras do jogo a vários níveis nas relações internacionais. A eleição de Donald Trump para a presidência com maioria folgada juntamente com o controlo do Senado e da Câmara dos Representantes pelos republicanos vai-lhe conceder poder suficiente para pôr em prática as promessas mais disruptivas das políticas feitas durante a campanha eleitoral. Sem grande perspectiva de ver esse poder controlado pelo Supremo Tribunal de Justiça, considerando a sua composição com uma maioria confortável nomeada pelo próprio Trump e a sua aversão aos checks and balances do sistema político, aumenta a probabilidade de que o impacto dessas políticas seja profundo e abrangente.

Outrossim, a rapidez com que nos últimos dias Trump designou altos dirigentes para supervisionar essas políticas juntamente com o perfil radical deles dá ideia do seu forte comprometimento em fazer com que tais mudanças aconteçam.

Para além das consequências eventualmente complicadas na América, decorrentes dessa reorientação na política, tudo leva a crer que haverá um choque mais profundo e doloroso no resto do mundo. Assim, com o aumento drástico das tarifas para os produtos importados o mais provável é que haja um reflexo negativo nas relações comerciais globais e impacto directo na capacidade de exportação, no emprego e no crescimento económico de vários países espalhados pelo mundo. E ao pôr em prática as drásticas políticas contra a imigração aumentam as tensões nas fronteiras, a mão de obra pode escassear em sectores importantes da economia e os lucros das redes de tráfico humano tendem a tornar-se maiores.

Qualquer sinal de desengajamento com o mundo, seja no enfraquecimento da confiança na relação com os aliados na Europa, na Asia e noutros continentes, ou com outros parceiros em várias áreas de governança global, acarretará sérias consequências. As tensões geopolíticas poderão aumentar e a capacidade de resposta global a situações de crise, designadamente em saúde pública, instabilidade financeira ou desastres naturais, certamente diminuirá. Serão menores ainda as possibilidades de concertação na abordagem de problemas como fluxos migratórios intercontinentais, mudança climática e transição energética. Problemático, no mesmo sentido, poderá vir a revelar-se o papel futuro das instituições multilaterais, designadamente ONU, FMI, Banco Mundial e OMC, num mundo multipolar e com o bloco de países liberais efectivamente enfraquecido por divisões internas e desconfianças mútuas.

A realidade é que para o mundo inteiro a vitória de Donald Trump é um verdadeiro game changer. Não só lidera uma maioria significativa nos Estados Unidos ,que já mostrou querer mudar radicalmente o que até então se tinha como consensual em matéria da democracia liberal e constitucional, como também, com o seu exemplo, constitui um enorme incentivo em outras democracias para que movimentos similares de direita radical ou da extrema direita procurem formar maiorias absolutas para governar. Por outro lado com a preferência para o populismo e para a demagogia e para práticas políticas iliberais, que sacrificam os direitos fundamentes e descredibilizam o pluralismo e a separação de poderes, acaba, na verdade, por legitimar as autocracias e torná-las numa alternativa atractiva.

Curiosamente parece não afectar a forma como certas esquerdas, activistas e radicais identitários contrapõem às tácticas ultranacionalistas baseadas no medo e em preconceitos e ressentimentos. Mantêm as narrativas de sempre e a mesma perspectiva simplista que divide a sociedade em opressor e oprimido. Parece não lhes interessar que a reacção cada vez maioritária da sociedade como demonstrada pelo Trump esteja a encaminhar-se por vias que acabam por limitar os direitos fundamentais e por minar a democracia. Fica-se com a impressão que o niilismo que caracteriza os extremos se sobrepõe a tudo, mesmo às causas que clamam defender.

Para os países em desenvolvimento o mandato de Donald Trump, constitui um problema sério e um desafio enorme. Um problema porque entre outras coisas a imposição de tarifas e de outras políticas proteccionistas constituem um travão para o crescimento económico, aumentando as desigualdades intra e inter-países e diminuindo as possibilidades de investimento em novas tecnologias e de integração em cadeias de valor globais. Um desafio porque deve levar a uma urgente reflexão e acção estratégica e concertada para potenciar os recursos do país, combater as ineficiências e a corrupção e mobilizar a vontade da nação para enfrentar situações complicadas que surjam, sejam elas de causas naturais por razões de mudanças climáticas, ou derivadas de redução do mercado de exportação ou de fluxo turístico, ou induzidas pelo ambiente de tensão próprio de um mundo multipolar em emergência.

Para Cabo Verde com as fragilidades de um país arquipélago, população reduzida e recursos limitados uma mudança nas regras do jogo constitui um problema mais grave e um desafio maior. O novo ciclo eleitoral aproxima-se e, considerando a actual tendência nas democracias vê-se que os resultados não estão a favorecer o partido incumbente, o que pode levar eventualmente a alguma instabilidade governativa. Além disso, os efeitos já perceptíveis de alterações climáticas seja no regime das chuvas ou nas temperaturas elevadas devem servir de alerta para a ocorrência de fenómenos extremos (chuvas intensas, ondas de calor, secas, ventos fortes) frente aos quais o país não está suficientemente preparado. A emigração, por sua vez, poderá enfrentar mais obstáculos à medida que cresce o sentimento anti-imigrante e que novas medidas de controlo do fluxo migratório são implementadas nos países de destino.

O desafio que uma nova realidade mundial pode representar devia ser assumido por todos e, com esse ponto de partida, trabalhar com sentido de urgência e responsabilidade para fazer das diferenças de opinião uma fonte de inspiração e enfrentar as dificuldades nascentes com criatividade e acção vigorosa e no tempo certo. Fundamental seria mobilizar um esforço colectivo para combater as ineficiências, potenciar o capital humano e investir no capital social que se revela na confiança interpessoal, no civismo e na existência de instituições credíveis. Infelizmente a tendência é para a constituição de tribos políticas em que os extremos tendem a monopolizar a atenção, anulando o diálogo.

Sem debate e sem possibilidade de compromissos, porém , o país pode não ficar preparado para enfrentar um mundo em mudança acelerada. Há que parar por um instante e tentar perceber que se está a viver um desses momentos na história em que,de repente, o mundo muda. E lembrar que Mikhail Gorbatchev em 1989, num desses tais momentos históricos, já avisava: Os que se atrasam são punidos pela vida. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1198 de 13 de Novembro de 2024.